Projetos incentivam alunos de escolas públicas a se aprofundarem no conhecimento da cultura brasileira por meio das danças tradicionais

Atuação de docente da Unesp junto ao mestrado profissional em educação física orienta professoras da educação básica no atendimento às leis que zelam por raízes multiculturais do país e contribui para evitar apagamento da riqueza de ciclos festivos populares nacionais.

“Lá vai meu boi/ Levantando poeira/ Vem ver, morena/ No descer da ladeira/ Brilho da noite brilha/ Como brilham as estrelas/ Em noite de Lua cheia.”  Talvez poucas pessoas nas regiões Sul e Sudeste associem a toada Levantando poeira, de mestre Tião Carvalho, do Grupo Cupuaçu, às tradicionais festas celebradas nos meses de junho e de julho por todo o Brasil. No Maranhão, é costume que tais festejos abram espaço para apresentações de Bumba Meu Boi, nas quais, ao som deste e de outros cantos, integrantes dos diversos grupos de boi presentes no estado dançam e encenam a história do animal.

A dança realizada durante a encenação do Bumba Meu Boi é apenas uma entre muitos exemplos de coreografias tradicionais praticadas ao longo de todo o ano por festeiros em diferentes partes do território nacional. Como elemento fundamental de boa parte destas celebrações, a dança oferece um conhecimento rico para a melhor compreensão da história e da cultura das comunidades que abrigam essas festividades. Entusiasta desta pluralidade, Andresa Ugaya, docente do Departamento de Educação Física da Faculdade de Ciências da Unesp, no câmpus de Bauru, dedica-se a estudar a formação dessas danças a fim de compartilhar com estudantes, dentro do ambiente escolar, os resultados de suas pesquisas. 

Um dos frutos desse trabalho é a dissertação de mestrado Ciclos Festivos na Escola, defendida por sua orientanda Juliana Meira, em novembro de 2023. O projeto foi desenvolvido no âmbito do Programa de Mestrado Profissional em Educação Física em Rede Nacional (ProEF), da Capes, que tem como objetivo oferecer formação continuada a professores que estejam atuando na rede pública de ensino, de forma a contribuir para a melhoria da qualidade da educação básica do país.

O projeto de Juliana no ProEF teve como proposta a formatação de uma disciplina eletiva, voltada para estudantes de ensino médio de uma escola estadual no município de Itapetininga, interior de São Paulo, em que foi apresentado aos estudantes a história, a cultura, a tradição e os costumes dos três grandes ciclos festivos brasileiros: carnavalesco, junino e natalino. Em maio deste ano, a pesquisa de Juliana recebeu o prêmio Suraya Darido no II Congresso Internacional de Educação Física Escolar (CIEFE), realizado na capital paulista.

Andresa Ugaya explica que o projeto da orientanda, quando levado à sala de aula, permitiu aos alunos o contato com tradições brasileiras pouco contempladas no ambiente escolar e com um conteúdo que se contrapõe aos conhecimentos hegemônicos europeus tão presentes durante a formação escolar. “Muitas vezes o ensino das danças na escola e na educação física é voltado para execução, ou seja, para o aprendizado dos passos, o que também é importante, mas não pode se resumir só nisso. É importante que se contextualize”, diz. Para a professora da Faculdade de Ciências da Unesp, um estudo mais aprofundado das tradições que envolvem esses ciclos festivos oferece subsídios para que os alunos possam refletir a respeito de aspectos importantes da cultura nacional e se distanciar de reproduções estereotipadas e preconceituosas de coreografias. 

Estudantes representando os palhaços da Folia de Reis fazem selfie para exibir os trajes confeccionados durante a disciplina (Crédito: Juliana Meira)

A proposta pedagógica está orientada pelas leis federais 10.639/03 e 11.645/08, que incluíram o ensino da história da África e das culturas afro-brasileiras e dos povos originários no currículo da educação básica. Nesse contexto, Meira pôde, por exemplo, discutir as raízes multiétnicas da sociedade brasileira presentes nas danças típicas de cada época. “As matrizes europeias, indígenas e africanas vão se intrincando. Dessas trocas e diálogos surgem diferentes expressões, que vão formando nossas culturas, as culturas brasileiras”, explica Andresa Ugaya. “Dentro dessa perspectiva das relações étnico-raciais, é importante compreender que povos indígenas, ribeirinhos, quilombolas, caiçaras, entre outros, são produtores de conhecimentos diversos”, afirma.

Os alunos também foram levados a pensar criticamente sobre o apagamento das festas populares, principalmente durante o período de formação do Brasil. “É fundamental que a escola coloque em pauta essa descaracterização das festas desenhada pela indústria cultural, que torna homogêneo o que é tão diverso”, relata. “Como parte da disciplina eletiva, todos os alunos ajudaram a construir a festa. Eles ficaram responsáveis por cuidar de tudo, desde decoração, identidade visual, comida, confecção de figurinos e máscaras, música e até confecção de instrumentos. Ou seja, para trabalhar com as danças no processo pedagógico, é preciso trazer os valores intrínsecos a essa dança durante o período da aula”, diz a docente.

Despertando a curiosidade

Em 2020, Ugaya também orientou uma dissertação de mestrado que convidou estudantes da escola pública do município de Lençóis Paulistas, no interior de São Paulo, a refletirem sobre diferentes elementos da cultura brasileira a partir da dança, outra iniciativa no âmbito do ProEF. Intitulado Danças Tradicionais Brasileiras, a pesquisa propôs a criação de uma disciplina eletiva com alunos de ensino médio de tempo integral na qual os participantes puderam eleger algumas danças brasileiras para recriar durante o semestre. As selecionadas foram Maculelê, Balainha, Carimbó e Frevo. A professora responsável e autora do trabalho, Camila Pieroni, contextualizou essas expressões populares para que os estudantes pudessem confeccionar vestimentas e acessórios, selecionar músicas e ensaiar coreografias para uma apresentação ao final do disciplina.

Ugaya defende que a dança pode ser uma porta de entrada para que estudantes descubram as diversas realidades e culturas dentro do país. “Para conhecer uma dança, é preciso saber quais são seus valores intrínsecos, quem são as pessoas produtoras e o porquê aquela dança existe”, conta. O trabalho manual e a construção coletiva das festividades de que os alunos participam fazem parte da imersão nas tradições brasileiras.

Pieroni também produziu um material didático com os resultados da sua pesquisa, que detalha o referencial teórico e a metodologia utilizada em sala de aula, a fim de incentivar e guiar outros professores de educação física a ensinarem as danças brasileiras de forma contextualizada nas escolas. O desenvolvimento em sala de aula dos conceitos trabalhados no projeto é uma das etapas do programa de mestrado profissional da Capes. 

A recepção dos estudantes das duas disciplinas eletivas foi positiva, despertando nos alunos o interesse em conhecer outras manifestações culturais brasileiras. “Trabalhar as danças de forma aprofundada permite que os estudantes consigam entender os ciclos festivos de uma maneira mais crítica, além de compreender que as pessoas que são produtoras desse conhecimento merecem respeito e devem ser valorizadas”, diz Andresa Ugaya. “Despertar essa vontade e curiosidade epistemológica de querer saber mais sobre o mundo e sua cultura leva o estudante a querer outras coisas. Por exemplo, uma aluna de ensino médio que cursou a disciplina eletiva ‘Ciclos festivos na escola’ e criou a sua identidade visual vislumbrou a possibilidade de fazer artes visuais como uma graduação porque se sentiu motivada”, relata.

Imagem acima: alunos exibem itens confeccionados para celebração da festa do Bumba-meu-boi (Crédito: Juliana Vieira)