Estudo propõe nova metodologia para calcular montante de carbono sequestrado por florestas tropicais

Métodos atuais, concebidos a partir da observação de florestas de clima temperado, registram apenas parte do total acumulado em solos brasileiros. Estimativas fiéis ao contexto tropical são fundamentais para o pleno funcionamento do mercado regulado de carbono, importante ferramenta para combater as mudanças climáticas, cuja criação está em debate no Congresso Nacional.

Os mercados de crédito de carbono surgiram no cenário internacional nas últimas décadas como um dos mais promissores instrumentos para mitigar a mudança climática causada pela emissão de gases do efeito estufa. Em sua essência, esse mercado articula diferentes atores e países de forma a possibilitar que as empresas que emitem carbono em suas atividades possam compensar essa emissão a partir da aquisição de créditos gerados por processos e atividades que capturem carbono, em quantidades equivalentes às liberadas pelas empresas. Nesta complexa equação, é essencial que haja uma metodologia certeira para estimar o carbono que é retirado da atmosfera e armazenado de diversas formas. O processo de regeneração florestal, por exemplo, devido à sua capacidade de estocar carbono, surge como um instrumento possível para a concessão desses créditos, e atualmente já existem empresas que compensam suas emissões por este caminho. Agora, um novo estudo, que envolveu a participação de docentes da Unesp e da Itália, questiona os métodos usados atualmente para desenhar essas estimativas, e propõe uma nova forma para o cálculo, concebida para as características particulares das florestas tropicais.

Hoje, as principais empresas certificadoras mundiais empregam praticamente a mesma metodologia, que é recomendada também pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), da ONU. Mas os autores do estudo executaram variadas análises de diferentes perfis de fragmentos da Mata Atlântica e concluíram que essa abordagem ignora as particularidades dos solos que estão sob as florestas tropicais. O resultado é que as avaliações que estão embasando as transações entre compradores e vendedores de créditos correspondem a apenas uma fração do montante de carbono que a floresta realmente captura. Como remédio, eles propõem o aumento da profundidade da coleta da amostra e o uso de equipamento mais preciso para o cálculo do carbono no solo. Os resultados da pesquisa foram publicados na revista Scientific Reports.

É preciso ir mais fundo

Um dos pontos centrais da metodologia que é objeto de crítica por parte dos pesquisadores é a orientação por parte do IPCC para que a coleta de amostras alcance uma profundidade de, no mínimo, 30cm a partir do sol. No caso da metodologia aplicada pelas certificadoras, tornou-se padrão recolher apenas os sedimentos situados entre a superfície e os 30 cm de profundidade. Os estudiosos argumentam que o material colhido até 30cm de profundidade não é suficiente para computar a quantidade de carbono no solo e sugerem a ampliação para um metro de profundidade. “A medida de 30cm é a mais fácil e adequada para a zona temperada, onde estão os países europeus e os Estados Unidos, porque os solos deles são mais jovens que os solos tropicais”, diz o engenheiro florestal Iraê Guerrini, um dos autores do artigo. “Por serem solos recentes, existem rochas próximas da superfície do solo que dificultam a coleta de amostras. Nesses ambientes, essas rochas ainda estão sofrendo ação de intemperismo, dos microrganismos e mesmo do sistema radicular das árvores. Esses fatores, ao longo de milhões de anos, transformam a rocha em solo”, aponta.

Guerrini, que é professor do Departamento de Ciência Florestal, Solos e Ambiente da Unesp, campus de Botucatu, explica que no caso da Mata Atlântica a coleta de amostras deveria ocorrer a uma profundidade de 1m. Esta mudança não implica uma maior complexidade ou dificuldade para o processo de coleta, mas se traduz em diferenças bastante relevantes na quantidade de carbono observada no resultado final. “Nas análises dos resultados, nós constatamos uma variabilidade que chegou a até 100% de aumento de carbono em relação às amostras de 30 cm de profundidade, com uma média em torno de 40%”, diz Guerrini. “Os resultados variam de acordo com o tipo de floresta, tipo de solo, entre outros atributos, mas, para a quantificação e sua transformação em créditos de carbono, essa diferença é importante”, diz.

De forma geral, existem duas formas de operação do mercado de créditos de carbono: o mercado voluntário e o mercado regulado. O voluntário é o único em vigor no país atualmente, e consiste na aquisição de créditos por empresas emissoras de carbono sem uma obrigatoriedade legal. A compensação é feita por conta própria, na maior parte das vezes motivada por políticas internas de responsabilidade socioambiental. 

O mercado regulado de carbono, cujo projeto de lei para sua criação encontra-se atualmente em tramitação no Congresso Nacional, envolve o estabelecimento de um teto de emissões para empresas com emissão intensiva de carbono, de forma que essas empresas possam compensar o excedente comprando créditos. No primeiro caso, a integridade dos créditos é atestada por empresas certificadoras, na maioria das vezes internacionais. No mercado regulado, a ideia é que essa responsabilidade fique com órgãos reguladores federais.

Procedimento de retirada das amostras na fazenda da Unesp em Lageado, Botucatu.

Em ambos os casos, o carbono estocado no solo pelas florestas em processo de regeneração pode ser negociado como crédito. Na visão dos pesquisadores, entretanto, é fundamental que a metodologia que calcula esse carbono esteja de acordo com as características locais. “O que estamos propondo não é uma forma de beneficiar o Brasil e os demais países tropicais que possuem florestas. Queremos ser justos. As florestas tropicais são diferentes. Nossas florestas têm uma variabilidade muito grande, abrigam a maior biodiversidade do mundo”, afirma Guerrini.

Método tem menor impacto ambiental

Outra proposta de melhoria na metodologia apontada pelos pesquisadores diz respeito ao método usado para quantificar o carbono na amostra. Atualmente, o mais utilizado é o método Walkley-Black, que determina o teor de matéria orgânica no solo por meio da oxidação da amostra com uso do dicromato de potássio. A crítica ao método é que, além de ser pouco preciso, envolve o uso de substâncias tóxicas que podem fazer mal à saúde humana e ao meio ambiente.

Em contraposição, os cientistas recomendam o uso do Analisador Elementar (CHN Elemental Analyser). Ele pode fornecer resultados mais precisos porque detecta todas as formas de matéria orgânica presentes por meio da queima da amostra a altas temperaturas, além de ser mais seguro, apresentar resultados replicáveis e evitar o contato com produtos perigosos. Por outro lado, explica Guerrini, o custo do aparelho pode ser impeditivo: sua aquisição custa aproximadamente US$ 150 mil, e o custo da análise pode ser até cinco vezes mais caro do que o método Walkley-Black. Para os autores, tal problema pode ser contornado por meio do estabelecimento de colaborações entre laboratórios e grupos de pesquisa bem equipados com parceiros em países com menor disponibilidade de recursos,

O trabalho analisou amostras de solo retiradas da fazenda experimental Lageado-Edgárdia, pertencente ao campus de Botucatu, cuja área total é superior a 2.500 hectares e que inclui uma área de preservação ambiental. No local, foram escolhidos quatro perfis diferentes de florestas estacionais semideciduais de Mata Atlântica, que variavam de acordo com grau de regeneração e de interferência humana, além de um fragmento marcado pela transição entre Mata Atlântica e Cerrado, que também sofreu intensa supressão vegetal por desmatamento, pecuária e outras atividades antrópicas. As amostras foram então analisadas e comparadas de acordo com a profundidade em que foram coletadas e o método de quantificação do carbono.

Quando comparados os dois métodos de análise, os resultados apontaram uma quantidade 40% maior de carbono com o uso do CHN Elemental Analyser, em comparação com o método Walkley-Black, sendo a maior diferença (99%), registrada nas amostras coletadas em fragmentos de floresta estacional semidecidual primária perturbada, uma formação caracterizada por distúrbios como extração de madeira e incêndios nos anos 80, mas onde não foram observadas alterações relevantes do uso do solo.

Amostras recolhidas antes do processamento

Quando comparadas as profundidades, os pesquisadores observaram que, em média, 58% do carbono estava retido nos primeiros 40 cm do solo, enquanto os 42% restantes estavam entre 40 cm e um metro de profundidade. Para os autores do artigo, ignorar as amostras situadas entre 30 cm e 1 metro de profundidade implica ignorar metade da quantidade de carbono estocado no solo. Os resultados também concluíram que, entre os diferentes perfis de fragmentos florestais, aqueles mais preservados e com menores intervenções humanas apresentaram as maiores quantidades de carbono estocado no solo.

No momento em que o projeto de lei que viabiliza a criação de um mercado regulado de carbono no Brasil se aproxima das últimas etapas do trâmite no Congresso Nacional, a expectativa do professor Guerrini é que o texto final contemple metodologias que calculem adequadamente o carbono estocado no solo das florestas tropicais. “O acréscimo de outras metodologias foi uma das mudanças fundamentais aprovadas pela Câmara no final do ano passado, e agora o texto está em debate no Senado. A gente espera que essa proposta de incluir metodologias que sejam adaptadas às regiões tropicais seja mantida na versão final do projeto de lei”, diz Guerrini.

Imagem acima: início do processo de extração de amostras. Créditos das fotos: acervo pessoal.