Desde o início de junho, o município de São Vicente, no litoral paulista, se tornou um dos poucos no país a dispor da sua própria Política de Cultura Oceânica. O projeto de lei que instituiu a nova política foi sancionado pelo prefeito Kaio Amado por ocasião do Dia Mundial dos Oceanos, celebrado em 7 de junho, e tem como objetivo promover e fomentar a cultura oceânica no município. A nova legislação é fruto de um ano de debates e discussões entre vários atores no âmbito do Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente e da Secretaria de Educação, e teve entre os envolvidos dez docentes do Instituto de Biociências da Unesp, campus do Litoral Paulista. Dentre estes docentes está a bióloga Alessandra Augusto, que também é integrante do Instituto de Estudos avançados do Mar da Unesp (IEAMAR) e CAUNESP.
A docente da Unesp coordena dois projetos de extensão que têm como foco de atuação o litoral paulista e são apoiados financeiramente pela Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (PROEC). Um destes projetos, intitulado “Ciência para transformação da sociedade: promoção da cultura oceânica no litoral paulista”, desenvolvido em parceria com a USP, Unicamp e Unifesp, tinha como um de seus objetivos justamente a implantação e implementação da nova lei. “Hoje, no Brasil, existe um movimento para incluir a educação oceânica nos currículos escolares”, diz ela. Esta iniciativa, no entanto, ainda não encontrou grande repercussão no âmbito federal. “Então, as cidades começaram a desenvolver suas próprias leis municipais de educação oceânica”, explica Alessandra.
Falta de formação é um dos problemas
A implementação da cultura oceânica na educação brasileira esbarra em alguns problemas. Um deles é a falta de conteúdos específicos nos currículos escolares, que muitas vezes não abordam, de forma abrangente e integrada, temas como biodiversidade marinha, conservação dos oceanos, impactos da atividade humana nos ecossistemas marinhos e a importância dos oceanos para o equilíbrio ambiental e a sustentabilidade. E a formação dos professores nem sempre inclui capacitação adequada em cultura oceânica. Por isso, outra iniciativa associada aos projetos coordenados por Alessandra é um curso sobre cultura oceânica que os docentes da Unesp do campus do Litoral Paulista têm ministrado gratuitamente, ao longo do ano, a professores da rede municipal de duas cidades: Praia Grande e São Vicente.
O curso de capacitação para professores acontece todos os sábados, das 8h30 às 12h, no campus de São Vicente. Ele abrange o conceito de cultura oceânica e escolas azuis, noções básicas em oceanografia e biologia marinha, poluição do ambiente costeiro, mudanças climáticas, pesca, gerenciamento costeiro e perda da biodiversidade marinha, além de oficinas com projetos e atividades práticas. As aulas são ministradas por 10 docentes do campus e Alessandra é a coordenadora. Atualmente, cerca de vinte professores da rede assistem aos encontros, e cada um pode levar até cinco alunos para, concomitantemente, participarem do curso de educação oceânica voltada para crianças. O foco são crianças entre 10 e 14 anos, mas também há alunos da primeira infância, entre 4 e 6 anos. No total, contando docentes e discentes, são quase 100 alunos.
Graças a essa formação, logo depois da sanção da nova lei, três escolas municipais puderam aderir voluntariamente ao chamado projeto Escola Azul. O projeto Escola Azul é parte do programa Maré de Ciência, uma iniciativa da Universidade Federal de São Paulo que é coordenada pelo docente Ronaldo Christofoletti. O nome serve como uma espécie de selo que indica que a instituição de ensino está comprometida a promover a educação sobre os oceanos e a sustentabilidade marinha. Um dos objetivos da nova legislação é que todas as escolas de São Vicente recebam o selo de Escola Azul.
Alessandra diz que a importância das Escolas Azuis está na formação de jovens cidadãos conscientes sobre a relevância da sustentabilidade marinha. Através da educação e da prática, os alunos desenvolvem habilidades e conhecimentos que os capacitam a atuar como agentes de mudança em suas comunidades, incentivando o consumo responsável e as práticas sustentáveis para a preservação dos oceanos. Eles podem se engajar, por exemplo, em atividades de limpeza de praias, visitas a áreas costeiras e projetos de ciência cidadã. Também estabelecem parcerias com organizações ambientais e científicas, participando de redes para compartilhar experiências e incentivar práticas sustentáveis, como a redução do uso de plásticos e a reciclagem. As atividades podem ser desenvolvidas, inclusive, em cidades que não são litorâneas. “Isso é o que a escola, o aluno e a população precisam entender: o resíduo que se produz lá no interior de São Paulo cai no rio, e do rio chega ao mar. O final, frequentemente, é o mar”, diz Alessandra.
O secretário-adjunto de Meio Ambiente de São Vicente, Mário Bueno da Silva Júnior, destaca o caráter colaborativo da nova lei, elaborada graças a uma parceria que envolveu, além da universidade, representantes da secretaria municipal de educação e meio ambiente e do legislativo municipal entre outros. Ele diz que, após a criação da lei, o próximo passo é instituir um plano Municipal de Cultura Oceânica, que servirá de base para programas e projetos mais específicos. E ressalta que os elementos da cultura oceânica serão apresentados também fora da sala de aula, durante os muitos eventos culturais que fazem parte da agenda oficial da cidade.
Ele destaca o caráter estratégico da ação nas escolas. “Temos a maior rede de ensino municipal da Baixada, com 100 escolas e mais de 40 mil alunos”, diz. A ideia é iniciar o trabalho com os alunos pequenos, e depois ir alcançado os jovens, como parte de uma estratégia para disseminar a consciência ambiental nos bairros, partindo da comunidade escolar e sensibilizando os parentes e familiares dos alunos. A expectativa é que até o final do ano, 20 escolas municipais de São Vicente tenham ganhado o status de escolas azuis, e nos próximos anos todas as unidades alcancem este patamar. “É um trabalho de médio e longo prazo”, diz ele.
Reflexo da Década dos Oceanos
O termo cultura oceânica é a tradução adotada para o português de Ocean Literacy. O conceito foi elaborado em 2002 por um grupo de educadores e cientistas dos Estados Unidos, insatisfeitos com a pouca visibilidade e entendimento do público quanto à importância do oceano para a vida na Terra como um todo, e especificamente para a vida humana. Esta iniciativa culminou na publicação, em 2005, de um documento que descrevia os pontos principais para entender a importância dos oceanos. São eles: “A Terra tem um oceano global e muito diverso”; “O oceano e a vida marinha têm uma forte ação na dinâmica da Terra”; “O oceano exerce uma influência importante no clima”; “O oceano permite que a Terra seja habitável”; “O oceano suporta uma imensa diversidade de vida e ecossistemas”; “O oceano e a humanidade estão fortemente interligados dentro de um sistema socioecológico” e “Há muito por descobrir e explorar do oceano”.
O grande impulso para sua divulgação, porém, começou a partir de 2017, quando a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) estabeleceu o período entre 2021 e 2030 como a “Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável”, ou simplesmente “Década dos Oceanos”. A iniciativa é uma resposta ao lamentável estado do ambiente oceânico que, devido às ações humanas e às mudanças climáticas, está experimentando uma série de graves problemas, que incluem a acidificação dos oceanos, a contaminação extrema por plásticos, a elevação da temperatura das águas e a pesca excessiva, que ocasiona o desaparecimento de espécies inteiras da vida marinha. A Década visa gerar conhecimento científico, desenvolver políticas de conservação marinha, fortalecer a capacitação em países em desenvolvimento e aumentar a conscientização sobre a importância dos oceanos para o bem-estar humano e o equilíbrio ambiental.
Para o jornalista Alfredo Nastari, organizador da “São Paulo Ocean Week”, o mais tradicional evento de cultura oceânica do país, embora o Brasil possua uma costa de mais de 7 mil km contínuos, a população ainda valoriza pouco o oceano, e compreende menos ainda os problemas que o afligem. “O maior desafio é estabelecer a relação que existe entre o oceano e as atividades humanas. Fazer a população entender que aquela garrafa pet jogada no córrego da periferia de São Paulo, com grande probabilidade, vai parar no oceano ou vai se transformar em microplástico, que demorará algumas centenas de anos para se degradar completamente’, diz. Ele destaca a crescente visitação de escolas públicas e particulares ao evento, que vai para a quinta edição, como um sinal de que aos poucos a mudança está ocorrendo. “Uma das principais proposições da Década dos Oceanos é chegar a 2030 com uma geração de alunos dotados de uma melhor formação em cultura oceânica, uma ‘geração azul’. Isso se consegue em sala de aula, e por meio de em eventos como o nosso”, diz.
E mesmo São Vicente, que, além de ser litorânea, é a cidade mais antiga do Brasil, precisa valorizar mais seu patrimônio natural associado ao Atlântico, diz Silva Júnior. “Há um contraste muito grande. Temos a orla urbana mais bonita do estado e, ao mesmo tempo, territórios vulnerabilizados, que carecem do básico de infraestrutura , e o resultado é que muitos moradores descartam lixo no estuário, e esse material vem dar às praias. Nossos mangues, principalmente na área Insular, foram muito maltratados ao longo do tempo. Essa política vem também para ajudar a resgatar um sentimento de pertencimento: para mostrar que esses ambientes prestam serviços ecossistêmicos para nós, e que são importantes para a nossa própria sobrevivência”, diz. “Então vamos começar a trabalhar para restaurar o que dá para melhorar e viver em harmonia com esses ecossistemas. Esse é um dos motes para investirmos nessas políticas.”
Imagem acima: atividade de cultura oceânica no campus da Unesp em São Vicente. Crédito: acervo pessoal.