O primeiro ciclo de exploração humana da Lua foi bastante curto. Entre 1969 e 1972, seis missões ligadas ao programa Apollo conduziram seis astronautas, todos norte-americanos e homens, à superfície do satélite, para estadias que variaram entre apenas algumas horas, no início, até três dias, no caso da Apollo 17, que encerrou o projeto. Desde 2010, surgiu um interesse renovado pela exploração do satélite – articulado, porém, em bases diferentes. No lugar da competição tecnológica entre superpotências que marcou o século 20, o foco está agora na perspectiva de acessar a água e os recursos minerais que, hoje sabemos, estão presentes em solo lunar. E, num nível mais ousado, há quem já esteja desenhando o projeto de uma estação espacial no terreno, que sirva de ponto de parada para viagens a outros planetas do Sistema Solar.
A efervescência de ideias e projetos vem da interação entre indústrias privadas e agências governamentais, e já demonstra resultados. Um deles foi o lançamento da sonda Odysseus, colaboração entre a SpaceX e a Nasa, que pousou na Lua no dia 22 de fevereiro deste ano. E a agência espacial americana está conduzindo, ainda que em ritmo lento, o Programa Artemis, que promete retomar a presença humana em nosso satélite – desta vez, levando mulheres na tripulação.
No Brasil, pelo menos uma iniciativa busca inserir o país nessa retomada de interesse pela exploração lunar. O projeto Garatéa-L, concebido pelo engenheiro aeroespacial Lucas Fonseca, quer enviar uma sonda brasileira para a órbita lunar. A bordo da sonda estarão experimentos projetados para estudar os mecanismos de sobrevivência de bactérias e leveduras extremófilas aos efeitos da radiação espacial. Outro objetivo será fotografar o polo sul da Lua, onde está localizada a bacia Aitken, que é rica em água e minerais. Este segundo objetivo exige um cuidadoso estudo da trajetória a ser seguida pela sonda, de maneira que se possa aproveitar ao máximo a janela de oportunidade.
Pensando nisso, os pesquisadores da Unesp Giulliano Assis Sodero Boaventura e Silvia Maria Giuliatti Winter, da Faculdade de Engenharia e Ciências, câmpus Guaratinguetá, publicaram, em março deste ano, o artigo “Analysing orbits around the Moon for Garatéa-L Mission”, na revista científica Astrophysics Space Science. Em sua pesquisa, Boaventura e Giuliatti Winter testaram órbitas com diferentes características para identificar aquela que melhor se adequava aos objetivos da missão. “Focamos especialmente o segundo objetivo da Garatéa-L, que é o de fotografar o polo sul lunar, Isso exigiu que identificássemos as órbitas que mantêm a sonda sobrevoando a região de interesse pelo maior tempo possível”, relata Boaventura.
Uma caixa de sapatos em torno da Lua
Além de ser uma missão espacial inteiramente brasileira, outro diferencial da Garatéa-L é seu baixo custo. Lucas Fonseca, criador do Instituto Garatéa e da missão Garatéa-L, diz que o valor para produção e lançamento da sonda gira em torno de R$ 30 milhões, valor muito inferior aos US$ 118 milhões investidos pela Nasa para o projeto Odysseus, que também tem como um de seus objetivos estudar o polo sul lunar.
Fonseca explica que a redução nos custos foi possível porque, ao invés de partir do zero para o desenvolvimento dos componentes eletrônicos e dos hardwares da sonda, o projeto aposta em “peças de prateleira”, ou seja, materiais que já são fabricados comercialmente por empresas. Outro diferencial é a opção pela tecnologia dos cubesats, satélites em miniatura construídos num formato padronizado de cubo com medidas de 10x10x10 cm. Isso caracteriza uma unidade, ou 1U. “Parte do barateamento vem do uso dos produtos de prateleira. Ao mesmo tempo, o custo de lançamento é reduzido, porque o formato do satélite é sempre o mesmo. Então, para a empresa que faz o lançamento, é mais fácil dialogar com alguém que está sempre entregando o mesmo tipo de formato”, diz Fonseca, que fundou e lidera sua própria empresa espacial, a Airvantis.
A utilização do formato de 1U permite ampliar o design por meio do encaixe e acoplamento de mais unidades, como se fossem peças de lego, sempre seguindo uma matriz padrão. Isso garante que qualquer pessoa saiba qual será o formato do satélite a partir da especificação do número de unidades. A Garatéa-L irá seguir um modelo 6U, ou seja, 6 cubos, formando um retângulo que medirá 10x20x30 cm. “Será um pouco maior do que uma caixa de sapatos”, compara Fonseca. O benefício da opção por padronizar o formato e o tamanho do aparelho está na possibilidade de que os foguetes que servirão de lançadores para conduzir o satélite até a órbita lunar desenvolvam mecanismos de disparo que funcionem para diferentes missões, ligadas a diferentes projetos.
Boaventura passou a se envolver com a Garatéa-L na sua tese de doutorado, “Análise de Órbitas: Missão Garatéa-L e Órbitas Periódicas”, orientado por Silvia Giuliatti Winter no Programa de Pós-Graduação em Física e Astronomia. O trabalho, defendido em 2023, teve como resultado o artigo publicado neste ano e um contato próximo entre Boaventura e Fonseca, que cedeu todas as informações necessárias para que o físico realizasse sua pesquisa.
A partir de trabalhos anteriores, sabia-se que o ponto de maior aproximação entre a sonda e a Lua deveria ser da ordem de, mais ou menos, 300 km, e o mais distante alcançaria em torno de 3.000 km. Partindo desses parâmetros, e combinados com as especificidades do projeto da sonda, a dupla Boaventura e Winter passou a testar diferentes possibilidades para a órbita, alterando, principalmente, os valores para a sua inclinação.
“Acreditávamos que a órbita precisava ter uma inclinação alta, de aproximadamente 90º, para que a sonda passasse pelo polo sul. Por isso, começamos as simulações testando vários graus de inclinações diferentes, partindo dos 60º”, explica Boaventura. O objetivo era conseguir encontrar a órbita que, obedecendo aos pontos mais próximos e distantes da Lua, permitisse que a sonda ficasse o maior tempo possível na região da bacia Aitken, para conseguir capturar o máximo de fotografias possível.
Além da inclinação, os cálculos também precisaram levar em conta a gravidade do astro, que é uma das principais forças responsáveis por manter a sonda na trajetória desejada. Entretanto, a dupla também achou importante acrescentar a gravidade que a Terra exerceria sobre a sonda nos cálculos.
“Uma vez em órbita, a sonda vai sofrer interferência de vários fatores, como a pressão da radiação solar e o albedo lunar, mas as duas interferências mais relevantes são a gravidade da Terra e a da Lua. Somadas, elas respondem por praticamente 80% das forças envolvidas nos cálculos de órbita”, diz o pesquisador. Este quadro levou a dupla a lidar com o chamado problema dos três corpos, contexto que envolve a movimentação de objetos que sofrem influência de uma das forças físicas, no caso, a gravidade. Os três objetos envolvidos são a Lua, a Terra e a sonda.
Graças às simulações, Boaventura e Giuliatti Winter determinaram que a órbita ideal deve ter uma inclinação entre 60º e 65º, um valor bem abaixo das expectativas iniciais. Estes parâmetros asseguram manter as determinações para a trajetória, que pode variar entre 200km e 400 km no ponto mais próximo, e entre 2.500 km e 3.500 km no ponto mais distante. Como benefício adicional, esta órbita possibilitará à sonda permanecer na região da bacia Aitken por 180 dias.
Extremófilas no espaço
O principal objetivo da missão, entretanto, é levar uma cultura de bactérias e leveduras extremófilas para o espaço para expô-las à radiação espacial e, caso sobrevivam a essa interação, entender os mecanismos que promovem essa resistência. Seres extremófilos são organismos capazes de sobreviver em ambientes extremos, que desafiam as condições habitáveis para a maioria das formas de vida. Microrganismos extremófilos como bactérias e leveduras podem viver em ambientes de frio intenso, como a Antártica, ou em condições de pressão, acidez e salinidade extremas. Tais particularidades têm fomentado cada vez mais estudos, especialmente nas áreas da biotecnologia e da astrobiologia, para entender suas estratégias de sobrevivência e obter insights de como identificar e aplicar esses mecanismos em outros seres.
“Queremos entender quais são as expressões genéticas desses seres que permitem a eles sobreviver em ambientes extremos, e verificar quais os mecanismos de proteção os extremófilos podem apresentar no espaço”, diz Fonseca. A partir do entendimento de como as bactérias e fungos sobrevivem a radiação, abre-se a possibilidade de replicar esses mecanismos em outros projetos. “Vamos dizer que você quer plantar batata-doce na Lua. Se descobrirmos que existe uma expressão genética de um extremófilo que o protege contra a radiação do ambiente espacial, poderemos tentar fazer alguma alteração genética na batata que lhe permita sobreviver melhor nesse ambiente”, explica.
Ainda não está decidido quais espécies de extremófilos serão enviadas para o espaço. Um estudo conduzido pelos pesquisadores da USP Fabio Rodrigues, do Instituto de Química, e Douglas Galante, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas, avaliou a resistência de três espécies de fungos e uma de bactérias que foram levados, por meio de balões, a 25 km de altitude. O experimento apontou as espécies de fungo Naganishia friedmannii e Exophiala sp como as mais bem-sucedidas no quesito de resistência às inteméries. Os resultados foram apresentados em artigo publicado em 2018.
Para os experimentos que serão enviados à órbita lunar, o grupo planeja empregar uma cultura acondicionada em um meio seco, e outra em meio aquoso. O benefício do primeiro arranjo é o baixo custo e a maior estabilidade. Entretanto, é preciso levar em conta que as bactérias e os fungos começam a crescer a partir do momento em que são colocados no recipiente específico. Já o meio aquoso permite controlar o momento em que as bactérias e fungos irão começar a se desenvolver, por meio de um mecanismo de bombeamento de nutrientes. Isso é vantajoso porque permite observar como se dá o crescimento da cultura apenas no local de estresse desejado. Este arranjo, entretanto, implica riscos de vazamento do líquido, ou de mau funcionamento das bombas responsáveis por injetar os nutrientes.
O futuro da Garatéa-L
O planejamento inicial situava a Garatéa-L como uma missão espacial privada, com data provável de lançamento em 2019. Porém, esbarrou em obstáculos como a falta de investimento e a eclosão da pandemia de Covid-19, que resultaram em adiamento de prazos e na busca de novas possibilidades. Agora, a Garatéa-L está passando por um processo de qualificação por parte da Agência Espacial Brasileira (AEB). O pedido foi enviado no dia 7 de novembro do ano passado e, no momento, encontra-se na fase final de qualificação pelo ProSAME, o Procedimento para Seleção de Missões Espaciais da AEB.
A qualificação, se bem-sucedida, resultará na inserção da Garatéa-L no Portfólio de Missões Espaciais oficial do Governo Federal. Esse status abre a possibilidade de que ela “pegue uma carona” para ir ao espaço nos lançamentos de foguetes previstos para o Programa Artemis, da Nasa, do qual o Brasil é signatário juntamente com outros 39 países.
Além de esse ser um pré-requisito para participar da investida da Nasa, a qualificação também é uma garantia de investimento por parte do Governo Federal, o que consolidaria o viés público-privado do projeto. No momento o Governo Federal está em fase de discussão para definir quais as melhores formas de contribuição com o projeto. A primeira investida é um projeto da Embrapa para desenvolver o cultivo de alimentos do espaço.
Imagem acima: Ilustração retratando a Terra, a Lua e a Garatéa-L/divulgação.