Censura, censuras: a literatura infantil e juvenil em xeque

Atento ao intenso criticismo que se abateu, nos últimos anos, sobre livros de reconhecida qualidade literária, grupo de trabalho de Leitura e Literatura Infantil e Juvenil da Associação Nacional de Pós-Graduação em Literatura e Linguística edita obra apresentando o debate acadêmico sobre o tema ao grande público. Autores apontam caráter raso, equivocado e até contraditório de parte das críticas, e assinalam retorno de um ímpeto de censura em pleno regime democrático, agora adaptado ao contexto da vida digital.

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O tema não é novo e a preocupação com seus desdobramentos também não.

A novidade está no ressurgimento, em vários pontos do país, de movimentos de contrariedade aos livros para crianças e jovens leitores, sustentados por motivos diversos, não raramente contraditórios entre si.

O retorno desse “ímpeto de censura”, assim como sua efetivação, para aqueles que viveram, no Brasil, o final dos anos 1960 e, em particular, a década de 1970, é, certamente, um fenômeno perturbador, na medida em que esse tipo de questão degradante parecia há muito superado. Afinal, é preciso considerar que já se contam quase quatro décadas que a ditadura militar (1964-1984) foi deixada para trás e a democracia reinstaurada em nosso país.

Naquela época, setores significativos da população foram afetados de diferentes maneiras pela censura, seja na condição de produtores, mediadores ou fruidores da cultura e da arte. Abundavam proibições de cunho institucional aos mais variados produtos culturais e artísticos. Revelou-se, à época, a face de um governo policialesco, opressor e castrador, que impunha ao cidadão, de forma arbitrária, limitações ao acesso de um sem-número de livros, jornais, revistas, filmes, novelas, canções, peças de teatro, espetáculos musicais, exposições, palestras etc.

Contando com as tecnologias do momento, a censura vem se espalhando nos últimos anos sob outros formatos, outras feições. O “cancelamento” tem sido uma delas, ponto do qual a busca por retirar, jogar no lixo, expurgar livros de bibliotecas e escolas logo se mostrou apto a receber a aprovação de bolhas nascidas e mantidas a favor do “bem”.

Essas ações buscam “fazer barulho” e, se possível, incendiar as famigeradas redes sociais, inflamando ânimos e sempre visando àquela quota de milhares (ou milhões?) de likes de estridentes usuários da internet. Jean-Yves Mollier, importante pesquisador francês sobre leitura, já chamou a atenção para esse caráter “cíclico” do surgimento da censura: “Como uma fênix capaz de renascer das próprias cinzas, a censura vive períodos de recuo, mas nunca desiste de fato, alimentando-se da própria imprecisão e da recusa daqueles que a exercem em explicitar seus motivos para autorizar ou proibir um livro ou um filme”, declarou ele em artigo publicado na revista Concinnitas, em 2018.

É neste cenário atual em que reverberam questões antigas, mas continuamente pertinentes aos defensores dos livros e da literatura, que surge a proposta do livro Literatura infantil e juvenil na fogueira.

O livro foi concebido por iniciativa do Grupo de Trabalho “Leitura e Literatura Infantil e Juvenil” da ANPOLL – Associação Nacional de Pós-Graduação em Literatura e Linguística, composto por pesquisadores de diversas instituições de nível superior, públicas e privadas, de diferentes regiões do Brasil. Trata-se de produto resultante de reflexões e debates, cada vez mais frequentes, em reuniões regulares da entidade, congressos e seminários acadêmicos e, até mesmo, bancas de qualificação ou de defesa de trabalhos de Mestrado e Doutorado.

Desse modo, procura-se apresentar nessa coletânea que vem agora a público capítulos que problematizam, por meio de ampla reflexão, a questão da censura (incluindo neste debate também o fenômeno conhecido como “politicamente correto”). Para tanto, toma-se como objeto central sobretudo um conjunto de obras literárias editadas especificamente para crianças e jovens e que, nos últimos anos, têm sido alvo de críticas pesadas, as quais nos parecem fortemente despropositadas e fundadas em percepções rasas, equivocadas.

A discussão embasada e a escuta atenta cedem espaço, no calor da hora dos likes com suas aprovações e reprovações públicas, a censores de olho no “o quê”, à medida que deixam de olhar para o “como” ou mesmo o “porquê”. Em uma de suas últimas aparições públicas, Umberto Eco (1932-2016), ao receber o título de doutor honoris causa da Universidade de Turim, na Itália, causou polêmica ao afirmar que as redes sociais teriam dado voz a uma legião de “imbecis”, enaltecendo o “idiota da aldeia” que já se fazia presente no mundo da TV, conforme ainda lembrado em diversos meios de comunicação. O episódio pode ser tomado como um ponto de reflexão, por analogia, ao tema desta obra: a censura a obras infantis e juvenis.

Como professores, pesquisadores e defensores, de modo geral, da literatura, nossa analogia com as proposições de Umberto Eco se constrói, imediatamente, na perspectiva de que o ato de censurar equivale à mobilização de atores obtusos quanto ao próprio objeto que avaliam. Se isso é verdade em muitos casos, também é real a complexidade vinculada a esse movimento. O debate cultural mobiliza valores, visões de mundo e projetos de sociedade, aspectos com enorme potencial de inquietude entre as subjetividades e as coletividades. É por isso que o avanço de estudos acadêmicos sobre o tema também contribui para qualificar o debate.

Esta obra pretende, assim, trazer para uma esfera mais ampla o debate sobre a qualidade literária desses textos de destacadas obras de literatura infantil e juvenil e o questionamento franco da legitimidade dos ataques que vêm sofrendo, em variadas esferas, tais como redes sociais, jornais, revistas, rádio, televisão, eventos de natureza educacional, política ou editorial, entre outras instâncias. Tem se revelado aviltante esse fenômeno da censura de diversas ordens, o qual se verifica não apenas no Brasil, mas também em muitos outros países com sólido mercado editorial, atingindo obras de reconhecido valor literário, premiadas localmente ou no exterior, traduzidas para várias línguas, recomendadas por especialistas e intensamente apreciadas por seus leitores e mediadores de leitura de reconhecida excelência. Trazer a público o debate qualificado sobre o tema, enfim, torna-se um compromisso para os autores da obra.

Nota do Editor: no próximo dia 03 de maio, às 19h, haverá a noite de lançamento de Literatura infantil e juvenil na fogueira na livraria Megafauna, na Av. Ipiranga, 200, em São Paulo. E no dia 04 de maio, às 9h, ocorre o “Encontro Intermediário de Pesquisa do GT da ANPOLL Leitura e Literatura Infantil e Juvenil – Literatura e Censura: debates na Pós-Graduação”.  Será no prédio da Unesp na Rua Dom Luís Lasanha, 400, no bairro do Ipiranga, em São Paulo.

João Luís Cardoso Tápias Ceccantini é professor do Programa de Pós-graduação em Letras da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, campus de Assis.

Thiago Alves Valente é professor de Literatura da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP-Cornélio Procópio) e coordenador do Grupo de Trabalho (GT) Leitura e Literatura Infantil e Juvenil da ANPOLL.

Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira, professora na graduação e pós-graduação em Letras da FCL Assis, também coordena o Programa de Pós-Graduação em Letras da Unesp, câmpus de Assis.

Os artigos de opinião assinados não refletem necessariamente o ponto de vista da instituição.

Imagem acima: Madame Anastasie – A Censura (1874), caricatura de André Gill. Crédito: Wikimedia Commons.