O litoral brasileiro abriga uma vasta diversidade de crustáceos braquiúros, um grupo que agrupa os siris e os caranguejos: são mais de 300 espécies, das quais cerca de 65% são encontradas no litoral paulista. Mas é bem longe da plataforma continental que vive o Johngarthia lagostoma, o caranguejo-amarelo que, segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), é uma das duas espécies de caranguejos ameaçadas de extinção em território brasileiro (a outra é o caranguejo guaiamum – Cardisoma guanhumi). A fim de facilitar o desenvolvimento de ações que favoreçam a conservação do caranguejo-amarelo, uma equipe de pesquisadores do Instituto de Biociências, do campus do Litoral Paulista, foi até a Ilha da Trindade para conduzir um levantamento pioneiro sobre a espécie, expandindo o conhecimento sobre o seu estilo de vida, composição e abundância. Os resultados do estudo foram reunidos em um artigo científico publicado na revista Marine Ecology.
O primeiro autor do artigo é o biólogo Marcio Camargo Araujo João, doutorando no Programa de Pós-graduação em Ecologia, Evolução e Biodiversidade, sob orientação de Marcelo Antônio Amaro Pinheiro, que é o pesquisador sênior desse artigo e coordenador do Grupo de Pesquisa em Biologia de Crustáceos (CRUSTA), do qual João é integrante.
A Ilha da Trindade situa-se a 1.200 km da costa do Espírito Santo, e é um dos quatro territórios onde essa espécie é registrada em todo o mundo. (Os outros três são o Atol das Rocas e a Ilha de Fernando de Noronha, que também integram o território brasileiro, e a Ilha de Ascenção, território ultramarino pertencente ao Reino Unido.) É uma ilha oceânica com área de apenas 13 km2, que abriga um Posto Oceanográfico (POIT), uma estação científica (ECIT) e um destacamento militar da Marinha do Brasil.
O caranguejo-amarelo vive majoritariamente em terra, o que o torna particularmente suscetível aos impactos causados pela ação do homem. “Percebemos que, em Fernando de Noronha, a redução da população da espécie se deve, principalmente, aos impactos causados pelo turismo e pela introdução de espécies exóticas”, diz Marcelo Pinheiro. Existem relatos de que já existiu o consumo do caranguejo-amarelo pelos moradores dessas ilhas, embora hoje essa prática seja proibida por lei, e não mais relatada.
O trabalho de campo na Ilha da Trindade durou quatro meses e mostrou que dois ambientes, a Praia dos Andradas e o Morro do Príncipe, são vitais à reprodução e ciclo de vida dessa espécie, e, por isso, são estratégicos para ações destinadas à conservação do animal. “Até o momento, são esses os dois locais mais interessantes. O primeiro local pelo índice reprodutivo, que é importante para a continuidade da espécie na ilha, enquanto o segundo é importante para a conservação dose indivíduos juvenis, a fim de assegurar a manutenção populacional no futuro”, diz João. Os estudos também revelaram que a espécie desempenha um papel de destaque no ecossistema local, com sua extinção podendo causar um forte desequilíbrio ecológico naquela região.
“A depender da comunidade em que estiver inserida, essa espécie pode atuar como um predador de topo”, diz João. “De modo geral, devido ao seu comportamento migratório, que leva os indivíduos do topo das montanhas até as praias para reprodução, a espécie interage ecologicamente com toda a ilha”, continua. Assim, uma eventual extinção da espécie poderia causar uma “reação em cadeia” que certamente afetaria toda a comunidade insular.
A Ilha de Trindade é o território brasileiro que abriga a maior população conhecida de caranguejos-amarelos. Isso se deve à pequena população humana que nela transita, totalizando cerca de 40 pessoas. Os únicos residentes são os militares da Marinha do Brasil, que usam esse território como base oceânica para fiscalizar as fronteiras nacionais. “Trindade foi um importante ponto de partida porque é um lugar menos modificado, e com uma população de caranguejos muito densa. Conseguimos obter um retrato de como são as coisas em um ambiente estável, e podemos usar esta ‘fotografia’ para comparar com as outras ilhas”, diz João.
A expectativa é que os resultados da pesquisa possam servir de base para a formulação de orientações para que os orientar os marinheiros que lá vivem possam colaborar para a conservação da população de caranguejos-amarelos, e que ajudem a consolidar a ilha como referência para a espécie. O próximo passo é conduzir estudos no Atol das Rocas e em Fernando de Noronha, comparando cenários contrastantes entre as respectivas populações, o que está previsto para o doutorado de João, que tem o apoio da FUNBIO. Esses dados vão permitir a elaboração de uma estratégia nacional de proteção da espécie. “Estamos esperando ter uma camada maior de resultados já descritos para propormos sugestões de conservação para essa espécie junto ao ICMBio”, diz João.
Pesquisa refutou envelhecimento da espécie
Embora o caranguejo-amarelo esteja presente em três ilhas brasileiras, até a publicação do artigo não existiam informações científicas produzidas no Brasil sobre a espécie. Tudo o que se conhecia vinha de pesquisas feitas na Ilha de Ascensão, território britânico. Por esse motivo, algumas informações tidas como certas foram questionadas no paper.
“O estudo feito na Ilha de Ascensão mostrou que dos quase 4.000 animais coletados apenas 0.1% eram juvenis. Já no Morro do Príncipe, na Ilha da Trindade, constatamos que 20% de todos os animais que coletamos eram jovens. Então, imaginava-se que se tratava de uma espécie que estava envelhecendo, ou seja, que havia muitos indivíduos adultos, e poucos juvenis ingressavam nas populações. Em Trindade, porém, encontramos um resultado bem diferente”, diz João.
O trabalho na Ilha da Trindade é parte de um projeto maior, que tem sido conduzido pelo grupo CRUSTA, que visa produzir conhecimento básico sobre espécies ainda não pesquisadas em território nacional. Segundo Marcelo Pinheiro, mais artigos científicos estão em preparação e serão publicados nos próximos meses e anos, abordando tanto o caranguejo-amarelo quanto outras espécies marinhas. “O foco está em atendermos necessidades, não importando se isso vem de pesquisas básicas ou aplicadas. Para esta espécie, o levantamento de informações básicas ainda é uma necessidade, etapa necessária para chegar ao almejado plano de manejo em futuro próximo”, diz João.
Foto de abertura: Marcio Camargo Araujo João