O Governo Federal lançou, no último dia 6 de dezembro de 2023, um programa que pretende estimular a conversão de pastagens degradadas em produções agropecuárias ou florestais de perfil sustentável, que apliquem nas propriedades boas práticas de manejo capazes de promover a captura de carbono. O objetivo da iniciativa é audacioso: converter 40 milhões de hectares de pastagens degradadas em dez anos, o que, segundo o governo, teria o potencial de dobrar a produção de alimentos no país sem precisar desmatar novas áreas de vegetação nativa.
Especialistas ouvidos pelo Jornal da Unesp destacam que a proposta elaborada pelo governo federal representa uma quebra de paradigma por tratar, pela primeira vez, a qualidade do pasto como um problema relevante para a produção agropecuária e para o meio ambiente. Ainda assim, a ação poderia exigir dos proprietários rurais que aderirem ao programa compromissos na regularização da propriedade às legislações ambientais. Os pesquisadores apontam ainda para o desafio de o programa alcançar, capacitar e financiar os pequenos e médios proprietários de terra, onde está localizada a maior parte desse pasto empobrecido.
Não é exagero dizer que as pastagens degradadas são um problema crônico da pecuária brasileira. Segundo o Censo Agropecuário de 2017, dos 351 milhões de hectares que o país tem em sua matriz produtiva, 159 milhões são ocupados por pastagens, praticamente o tamanho do estado do Amazonas, o maior da federação. Entretanto, destes 159 milhões de hectares, aproximadamente 52% apresentavam algum nível de degradação, segundo levantamento produzido pelo MapBiomas, em 2022.
Pastagens podem ser consideradas degradadas quando perdem a sua capacidade de produzir biomassa. Neste cenário, além de reduzirem a produtividade da produção pecuária pela restrição de alimento ao gado, essas áreas também causam prejuízos ao meio ambiente ao comprometerem o crescimento das raízes das plantas, diminuindo assim a capacidade de produção de folhas. “Este processo causa perda de atividades de microrganismos e da matéria orgânica do solo, causando emissões de CO2, metano e óxido nitroso, gases que contribuem para o efeito estufa”, explica Ricardo Reis, especialista em pastagem e sustentabilidade na produção pecuária. “Além disso, a ausência de proteção do solo, com pasto ou folhas, por exemplo, acaba resultando em erosão”, afirma.
O professor da Unesp no câmpus de Jaboticabal explica que este processo de degradação em geral está associado à falta de adoção de técnicas adequadas de manejo das pastagens. “Lamentavelmente, muitos pecuaristas não enxergam o pasto como uma cultura. Eles querem ter a terra, mas não assumem que os animais precisam comer bem para produzirem”, afirma.
Expansão rápida e desordenada
A grande extensão de áreas degradadas no Brasil, embora seja uma fotografia atual, tem sua origem principalmente em meados dos anos 70, um período de intensa expansão das fronteiras agrícolas. Segundo o professor José Marques Jr., especialista em Ciência do Solo da Unesp, esse movimento em busca de novas áreas ocorreu de forma rápida e sem o devido planejamento da ocupação, como a elaboração de um estudo da aptidão das terras para o uso. Uma das consequências dessa expansão desordenada foi que, após desmatadas de sua cobertura original, as melhores terras foram sendo ocupadas com as culturas agrícolas, e as piores foram sendo deixadas para a criação do gado, com pouca atenção dedicada ao manejo adequado dessa pastagem.
A iniciativa proposta pelo governo federal, chamada Programa Nacional de Conversão de Pastagens Degradadas em Sistemas de Produção Agropecuários e Florestais Sustentáveis (PNCPD), estabelece o período de dez anos para recuperar 40 milhões de hectares, o que, segundo o governo, permitiria dobrar a produção de alimentos no país sem a necessidade de expandir para áreas de vegetação nativa. Segundo o decreto que institui a criação do programa, o leque de opções para essa conversão inclui, além da recuperação da própria pastagem, o estabelecimento de lavouras de cultura temporária, floresta plantada ou agrofloresta, obedecendo técnicas sustentáveis de manejo.
O texto afirma ainda que o Ministério da Agricultura e Pecuária, juntamente com o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), irão captar recursos externos para financiar a execução da iniciativa, inclusive apresentando o programa em eventos internacionais, como a COP28, realizada em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos. Aos beneficiários será exigido como contrapartida a inscrição no Cadastro Ambiental Rural (CAR).
Ações e financiamento devem ser analisadas caso a caso
Especialistas ouvidos pelo Jornal da Unesp, de forma geral, vêem com otimismo a iniciativa do Governo Federal, principalmente por reconhecer que pastagens de má qualidade são um problema de ordem ambiental e socioeconômica que exige investimento e orientações técnicas para sua solução. “O grande beneficiado, na minha perspectiva, é o pequeno e médio produtor, onde esse processo iria demorar muito a acontecer”, afirma José Marques. “Esse perfil de produtor não tem o mesmo acesso a financiamento e precisa de ajuda para melhorar suas áreas”.
Marques, por outro lado, lamenta que, assim como ocorreu na expansão agrícola durante os anos 70, o estado brasileiro mais uma vez não está levando em consideração a aptidão das terras para orientar esses novos usos previstos no programa. “O potencial produtivo das terras é diferente e algumas terras estão mais degradadas do que outras, e o arsenal de práticas de recuperação que temos são específicas de acordo com o grau de degradação”, aponta o docente do câmpus de Jaboticabal. “Da mesma forma, os financiamentos também devem ser diferenciados, uma vez que não é correto liberar o mesmo recurso para áreas em diferentes graus de degradação”, avalia.
Segundo um estudo publicado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), o investimento para recuperar um hectare de pasto degradado pode variar mais de 110%, dependendo do grau de degradação e do bioma em que a área está localizada. De acordo com o trabalho do Observatório de Conhecimento e Inovação em Bioeconomia da FGV, enquanto a recuperação de um pasto com degradação moderada na Mata Atlântica tem um custo médio de R$ 979,42 por hectare, um pasto severamente degradado nos pampas pode custar até R$ 2.100,71 por hectare.
Nesse sentido, um dos desafios apontados para a implementação do programa está na necessidade de esse financiamento alcançar o produtor rural que tenha pastagens degradadas em sua propriedade e, principalmente, capacitá-lo a realizar o processo de recuperação ou conversão.
Os especialistas ponderam que ainda é preciso esperar para que se defina melhor os detalhes do programa antes de avaliar as estratégias adotadas para alcançar esse produtor. O decreto publicado em dezembro de 2023 menciona a criação de um comitê gestor – nomeado oficialmente no último dia 9 de janeiro -, e afirma que esse grupo deverá se reunir para definir diretrizes, metas e ações para o programa dentro do prazo de 90 dias. “A assistência técnica e o acompanhamento das etapas de formação das pastagens, manejo das mesmas é fundamental para garantir a persistência do sistema de produção, pois o manejo das pastagens requer o acompanhamento das transformações que ocorrem no pasto em decorrência do clima, fertilidade do solo e manejo dos animais”, aponta Ricardo Reis.
Governo deve ser mais específico e exigente
Apesar da análise geral sobre o programa ser positiva, para o promotor de justiça do Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG), Carlos Valera, o decreto peca por ser ainda muito genérico em alguns pontos, um problema que ele espera ser corrigido após a apresentação detalhada das diretrizes, metas e ações que estão sendo elaboradas pelo comitê gestor.
Uma das questões levantadas por Valera é que o texto do decreto não deixa claro quem teria prioridade no financiamento. “Seria a agricultura familiar? Seria o pequeno produtor? Apresentar essa informação de forma mais específica diminuiria a influência política sobre essas decisões”, afirma o promotor, que é egresso do Programa de Pós-Graduação em Ciências do Solo, no câmpus da Unesp em Jaboticabal.
Outro ponto que merece revisão é que a proposta, até o momento, não prevê sanções administrativas para o produtor que não alcançar o resultado exigido, ou mesmo para aqueles proprietários rurais que simplesmente não quiserem se enquadrar no programa. “Nós precisamos ter instrumentos na esfera administrativa para dar uma sanção a esse produtor nesse caso. Uma restrição de crédito, por exemplo. Senão você acaba desestimulando o produtor que adere ao programa e está fazendo o certo”, destaca Valera. O argumento do promotor do MP-MG é que o solo é, por força da lei, um recurso ambiental protegido pelo artigo 225 da Constituição. Sendo assim, a sua degradação configura um dano ambiental, permitindo a possibilidade de o infrator sofrer uma punição administrativa, penal e civil por não manejá-lo adequadamente.
Especialistas vêem como uma oportunidade perdida a exigência somente do CAR para viabilizar a participação do produtor no programa. Os pesquisadores apontam que o Cadastro Ambiental Rural, embora seja um mecanismo importante, oferece pouca informação sobre a propriedade rural e que o governo poderia ir além e ampliar a relação de documentos necessários para aderir ao programa. Exigir apenas o CAR, argumentam, deixa passar uma oportunidade para cobrar um pacote mais robusto de regularização das terras.
Para os especialistas, este seria um bom momento para cobrar, dependendo do caso, a outorga para o uso dos recursos hídricos ou o licenciamento ambiental da área. “O programa precisa prever direitos e obrigações para não se tornar apenas uma medida paternalista. O estado ajuda e o produtor cumpre sua parte regularizando as demais situações que eventualmente estejam erradas na sua propriedade rural, além da pastagem degradada”, finaliza.
Na imagem acima: gado ocupa pastagem com grau moderado de degradação. (Crédito: Ricardo Reis)