Reconhecido como um dos principais nomes do reggae feito no Brasil, o músico, cantor, compositor e radialista Fauzi Beydoun está perto do marco de quatro décadas de carreira. E chega a esta etapa em plena atividade, tanto à frente da banda Tribo de Jah quanto em sua carreira solo. O que muitos ignoram, porém, é que sua obra é muito mais ampla, e abraça também outros gêneros e estilos musicais.
Natural de Assis, interior de São Paulo, Fauzi nasceu em 24 de setembro de 1958, de ascendência italiana e libanesa. “Na verdade, fui criado sem pai. Ele era libanês e foi embora quando eu tinha dois anos. Da parte da minha mãe, não tive nada que se relacionasse a música e arte. Entretanto, desde a infância eu era muito, muito sensível à música. Havia uma paixão intrínseca. A música teve um efeito muito intenso na minha formação, e tinha uma inquietação natural para ouvir, para conhecer e tal”, diz. Isso lhe abriu caminho para que formasse um gosto eclético, no qual o gosto por rock, blues, MPB e outros estilos chegou antes do interesse pelo reggae. “Minha formação musical foi espontânea. Captava tudo que aparecia durante a minha infância em Assis. Ouvia Beatles, Jovem Guarda, Milton Nascimento, Clube da Esquina, Zé Ramalho e outros”, diz.
Entre 1972 a 1976, a fim de conhecer seu pai, Fauzi decidiu ir morar na Costa do Marfim. A viagem foi transformadora. “Foi um choque cultural, uma experiência incrível. Tive a oportunidade de conhecer as raízes africanas, os tambores, o funk daquela época. E, por mais estranho que pareça, também tive contato com bandas de rock emblemáticas, como o Deep Purple, que ampliaram minha visão musical.”
Ao retornar da África, decidiu ingressar no curso de Ciências Sociais na USP. Foi nesse período que se deu sua aproximação com o reggae, e se estabeleceram as conexões que mudaram a sua vida.
“Minha afeição pela música já estava bem aflorada. Assistia tudo que era show: Mutantes, O Terço, Made in Brazil, festivais e músicos internacionais… Apesar de não ter grana, sempre dava um jeito de entrar nos shows. Para isso, fazia qualquer coisa. Escalei as tubulações do Estádio do Canindé para assistir o Rick Wakeman. Até cheguei a tocar em algumas bandas na capital e me apresentar no Lira Paulistana. Mas não havia nada ainda bem direcionado”, diz.
Nessa época, por meio de um amigo, conheceu o reggae. “Pirei naquela coisa de Caribe, África e tal. Já tinha um bom entendimento de inglês. Comecei a curtir porque no estilo havia muita política, uma visão libertária quanto à questão do sistema e da opressão. Mas também tinha a questão do emocional, e nuances que tinham tudo a ver comigo. Foi assim que eu conheci o reggae”, diz.
A seguir, Fauzi empregou-se em uma companhia suíça multinacional e começou a trabalhar em período integral como operador de telex. Após uma conversa com o presidente da empresa, conseguiu uma colocação melhor devido a sua capacidade de falar outros idiomas. Foi enviado ao Recife para um estágio e, após um ano, foi transferido para uma filial em São Luís do Maranhão. Lá, seus rumos se transformaram definitivamente.
“Ao chegar, me hospedei num hotel no centro da cidade e saí para andar. De repente, começaram a passar carros tocando reggae com som no último volume. E eram músicas mais bacanas do que as que eu conhecia. E eu já era colecionador de discos de reggae. Foi uma loucura, pirei. Realmente, havia me deparado com a Jamaica Brasileira. Porém, estava no gueto, era barra pesada”, diz.
Ele diz que se sentia pisando em ovos: afinal, havia chegado a um lugar em que 95% da população eram negras e onde a cultura afro era fortíssima. “Eu era aquele peixe fora d’água. Mas, com muito respeito fui fazendo amizade e frequentando espaços de reggae. Em seguida, consegui um trabalho como radialista e apresentador de programa de reggae na rádio Mirante FM. Mesmo recebendo inicialmente um salário básico, que só permitia pagar comida e aluguel, decidi deixar a multinacional e abraçar o universo do reggae e da música de forma geral”, conta.
A nova empreitada foi um sucesso total. O programa alcançou altíssimos índices de audiência e impactou a cena cultural do Maranhão. “Como já tinha experiência com o estilo, somada ao meu conhecimento de línguas, pude traduzir as letras das canções, citar os nomes dos cantores, dos músicos… Era a primeira vez que as pessoas ouviam essas informações. Me tornei uma celebridade no Maranhão”, diz. Com o sucesso do programa, ele passou a ganhar mais dinheiro por meio dos anúncios. “Havia diferentes tipos de anúncios. Desde festas de reggae até venda de porcos e notas de falecimento”, diz.
Com o dinheiro, montou uma radiola: uma equipe de som que usava aparelhos enormes, e que fazia mais sucesso do que as próprias bandas locais. “Esse movimento se tornou um fenômeno quase inexplicável. Inicialmente, invadiu os guetos e depois tomou toda cidade de São Luís, o interior do Maranhão e chegou até os estados vizinhos.”
Com o objetivo de adquirir um equipamento para montar uma banda, Fauzi chegou ao dono de um grupo de baile chamado Banda Reflexo. À época, integravam o grupo, como profissionais contratados, músicos que ainda hoje o acompanham. O conjunto tocava em bailes da capital maranhense e em cidades próximas. No repertório, todos os ritmos de sucesso da época, incluindo reggae, lambada, dance, serestas e merengues. Como peculiaridade, a banda contava com cinco músicos deficientes visuais, dos quais quatro eram cegos e um possuía visão parcial. Eles haviam se conhecido ainda meninos, na “Escola de Cegos do Maranhão” e despertaram para a música utilizando-se de instrumentos velhos da escola.
“Eu queria montar uma banda reggae e já havia escutado os meninos tocando de longe, na praia, porém, não percebi que eram deficientes visuais. Perguntei ao dono da banda na época se poderia ir ao local onde eles ensaiavam. Quando me dirigi a eles, o tecladista Frazão me reconheceu pela voz do programa no rádio. Conversei sobre o meu projeto de reggae e eles abraçaram a ideia. Até hoje eu tenho o recibo da compra do equipamento e da banda, em agosto de 1985. Iniciamos o trabalho naquele mesmo ano”, diz.
O nome “Tribo de Jah” surgiu em 1986. “Foi um período muito difícil. Foram seis anos no ostracismo e tinha que bancar a banda. Além disso, não havia estúdios no Maranhão, a captação de som era limitada, era uma luta para fazer uma gravação”, relembra.
Para fazerem os primeiros shows em São Paulo, tinham de viajar três dias de ônibus. Tocar no Recife exigia 24 horas de viagem; na Bahia, 30. Essa mobilidade permitiu que a Tribo, como é conhecida, se projetasse no cenário musical. Em 1995, a banda lançou oficialmente seu primeiro álbum, Roots Reggae. No repertório, faixas que se tornaram hits, como Babilônia em Chamas, 2000 Anos e Regueiros Guerreiros.
“Na verdade, gravamos o primeiro LP em 1992, Regueiros Guerreiros. Em 1994, gravamos o segundo, já com o nome Roots Reggae. Naquela época, ocorreu o advento do CD. Pensei em reunir os dois LPs num CD e, por questões mercadológicas, não entraram todas as músicas. Quando eu fechei contrato com a gravadora Indie Records – aliás a única gravadora que tivemos até hoje – , eles lançaram esse CD Roots Reggae. Quando a banda voltou a ser independente, e assim seguimos até hoje, produzi uma nova edição com 17 faixas”, explica Fauzi.
O músico diz que o pioneirismo da banda ajudou a introduzir a cultura reggae no Brasil. “A Tribo teve o honroso papel de trazer esse contexto ao país, de transpor para o português esse contexto reggae. Mesmo aqui, no Maranhão, que é considerado a ‘Jamaica Brasileira’, as pessoas não entendiam muito. E começaram a compreender melhor essa conotação das raízes do reggae: a devoção a Jah, o sistema da Babilônia e outras temáticas que abordamos”, diz. E essa influência não se limitou ao Maranhão.
“A Tribo despontou na cena reggae em São Paulo. Sem que o nosso som tocasse nas rádios, a gente fazia shows no Galpão da Barra Funda para 10 mil pessoas com ingressos esgotados. Isso também ocorreu no Rio Grande do Sul. Até influenciamos na criação de bandas como Maskavo e Chimarruts. Posso citar também Brasília, Natal, Fortaleza, diversas cidades do sertão as quais nunca haviam visto um show de reggae. Em Belém, foi a Tribo que fez o primeiro show de reggae e o mais popular já registrado lá. Enfim, desde os primórdios até os dias atuais, nós tivemos essa possibilidade de abrir mercados e desbravar diferentes lugares do país.”
Com inúmeros álbuns gravados, dois DVDs, um documentário e diversas premiações, a banda alcançou reconhecimento tanto no Brasil como no exterior, tendo excursionado por países como Guiana Francesa, Argentina, França e Itália. Especial foi sua apresentação no principal palco do reggae mundial, o Reggae Sunsplash Festival Jamaica, em 1995. Lá fora, gravaram o CD In Version em Interlaken na Suíça, e o Reggae’n Blue’s em San Diego, na Califórnia. Este contou com a participação de músicos que acompanharam Peter Tosh, como o baixista Geroge Fullwood, o baterista Santa Davis e o guitarrista Tony Chin, entre outros. Gravaram também um CD todo em inglês para o mercado externo intitulado Love to the World, Peace to the People.
Em 2018, a banda foi homenageada no Museu do Reggae do Maranhão. Em 11 de junho de 2021, lançam o álbum Até que o bem triunfe no final. Já em 2023, lançam o documentário “Tribo de Jah na Rota das Emoções”, sobre pontos turísticos no Maranhão.
Paralelamente ao trabalho com a Tribo de Jah, Fauzi Beydoun desenvolve um trabalho solo, no qual faz experimentações com outras vertentes musicais como o blues, bossa-jazz, soul music, etc., tendo o reggae apenas como um elemento adicional neste novo contexto.
“Lá se vão 39 anos de estrada. Quando penso sobre toda essa trajetória, vejo quase uma predestinação. Tipo a mão de Deus: ‘vai lá, meu filho, e faça sua história’. Me tornei um cara querido na comunidade, super popular, encontrei minha identidade. Era um cara sem pátria, forasteiro. De repente, me vi inserido num contexto cultural e social que me abraçou e me gerou uma nova vida, uma profissão nobre no rádio, e um ícone do reggae. Tenho muito orgulho de tudo isso.”
Confira abaixo a entrevista completa no Podcast MPB Unesp.
Imagem acima: divulgação.