Para gerações de brasileiros que tiveram seu primeiro contato com a Inconfidência Mineira nos bancos escolares, dois nomes ficaram gravados na memória, juntamente com o papel que cada um desempenhou na conspiração que sonhava com um levante separatista: o do fazendeiro, coronel e traidor Joaquim Silvério dos Reis, e o do alferes, herói e mártir Joaquim José da Silva Xavier, cuja memória é celebrada com um feriado nacional em sua homenagem. Mas, para outros indivíduos que viviam à época na capitania das Minas Gerais, e que se envolveram na conjuração, a classificação como herói ou vilão não foi tão categórica. Na verdade, em alguns casos essa percepção chegou a variar bastante, dependendo de quem era a autoridade responsável por conduzir esta análise, e dos ventos políticos que sopravam quanto ela era feita.
Agora, uma pesquisa do historiador André Figueiredo Rodrigues, docente do departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, campus de Assis, está recuperando os altos e baixos de duas das figuras envolvidas na Inconfidência, e desvendando assim as dinâmicas políticas que permearam o Brasil no fim do período Colonial e no período inicial do pós-independência.
De exilados a deputados
José de Resende Costa Filho e o padre Manuel Rodrigues da Costa participaram do movimento mineiro contra a Coroa, foram presos e processados. Após o julgamento, estiveram entre os 23 condenados ao degredo. Os dois inconfidentes, entretanto, foram os únicos deste grupo a serem autorizados pela Coroa portuguesa a retornar ao Brasil quase três décadas depois, após o fim das penalidades. Essa volta, no entanto, ensejou uma radical transformação em suas posições ideológicas. Na verdade, passaram a defender o mesmo regime monárquico contra o qual haviam lutado sob risco de vida.
“Ambos não só conseguiram voltar ao Brasil, mas continuaram participando da vida política do Império”, explica Rodrigues, que é especialista na história do período Colonial. “Eles se envolveram com o processo de emancipação e consolidação política do Brasil, e nesse processo contrariaram tudo aquilo que defendiam como inconfidentes.”
A atuação política dos ex-degredados após o retorno ao Brasil incluiu, por exemplo, a participação na Assembleia Constituinte de 1823, eleita para elaborar a primeira Constituição da nação brasileira, recém-declarada independente, em 1822, mas que afinal acabou dissolvida por D. Pedro I.
Os detalhes das idas e vindas desses personagens, bem como a análise de seus discursos, foram objeto do artigo De traidores a patriotas: um ensaio sobre discursos e comportamentos políticos no processo de independência (1789-1823), publicado na revista História (São Paulo) juntamente com Luciano Figueiredo, da Universidade Federal Fluminense (UFF). No artigo, os historiadores acompanham o percurso e a atuação política de José de Resende e do padre Manuel da Costa desde a Inconfidência até sua reabilitação política. “Percorremos as suas participações nos debates sobre as exigências das cortes de Portugal no Brasil, em 1820 e, após a Independência, recuperamos as suas participações na Constituinte de 1823. Buscamos reconstituir as linguagens políticas adotadas por eles nas diferentes instâncias em que eles estiveram envolvidos, sem deixar de inseri-los em seus contextos históricos”, explica Rodrigues.
O historiador pesquisa a Inconfidência Mineira desde os tempos de iniciação científica. Nos últimos anos, seu olhar tem se voltado especificamente para os personagens menos conhecidos da conjuração. Entre seus objetivos está o de identificar o destino que esses indivíduos tiveram após a Devassa, nome dado ao processo criminal que apurou os crimes cometidos pelos envolvidos. “Até hoje se estuda muito o envolvimento dos inconfidentes durante o período anterior à Devassa, mas quase nada se pesquisa sobre o que houve após os julgamentos e condenações. E ainda assim, a maioria das pesquisas sobre o período posterior à Inconfidência Mineira se centra na figura de Tiradentes. Venho tentando escarafunchar detalhes de personagens e assuntos ainda negligenciados pela historiografia”, diz.
Nessa busca pela reconstituição dos caminhos geográficos e ideológicos percorridos por José de Resende Costa Filho e pelo padre Manuel Rodrigues da Costa, os autores consultaram os Autos da Devassa da Inconfidência Mineira, uma compilação de documentos contidos no processo que apurou os crimes cometidos pelos inconfidentes e que reúne, entre outros elementos, os depoimentos dos condenados por traição, as sentenças, os bens sequestrados e correspondências dos envolvidos. Também foram consultados os Anais da Assembleia Constituinte de 1823, dos quais foram selecionados e reproduzidos trechos de depoimentos dados pelos parlamentares. Os dois personagens nasceram na capitania de Minas Gerais, e eram ainda relativamente jovens quando se envolveram no movimento conspiratório. Sua atuação foi discreta, e envolveu basicamente conversas e a transmissão de informações entre os articuladores.
À época, Resende era um homem de apenas 26 anos que se preparava para estudar Direito no exterior. O padre Manuel da Costa era apenas um pouco mais velho, com 31 anos. Após a condenação pela Coroa, suas trajetórias tomaram caminhos diferentes antes que ambos se reencontrassem novamente em terras brasileiras, quase três décadas depois.
Na África, secretário de governo
Resende foi enviado à colônia de Cabo Verde, um pequeno arquipélago vulcânico situado no noroeste da África. À época, a função de secretário de governo era exercida por um natural do Brasil Colônia, o fluminense João Diogo da Silva Feijó. Em virtude da baixa oferta de mão de obra qualificada no país, Feijó convidou Resende a se integrar às atividades administrativas vinculadas à Coroa portuguesa. “Mesmo estando no degredo, ele ingressou no circuito administrativo português. Pouco importou se ele foi considerado traidor do rei anos antes. Afinal, Resende era branco, intelectualizado e se relacionava bem com famílias que sempre tiveram tratos com o Império”, diz o docente.
Em 1793, o ex-inconfidente foi designado auxiliar da Secretaria de Governo e oficial de escrituração do Real Contrato da Urcela, e dois anos depois foi promovido interinamente a secretário de governo, sucedendo o próprio Feijó. Em janeiro de 1796 assumiu o ofício de escrivão da Provedoria da Real Fazenda e exerceu a função até 1798, quando se tornou comandante da Praça da Vila da Praia, a antiga capital de Cabo Verde, com o título de capitão-mor do Forte de Santo Antônio, exercendo o cargo até 1803.
Em 1803, completaram-se 10 anos de sua sentença, e a punição foi extinta. Resende Costa Filho solicitou então licença para se mudar para Lisboa, onde contou com o apoio do brasileiro Manuel Nogueira Jacinto da Gama, importante figura da política na Colônia e futuro marquês de Baependi. Em Portugal, foi nomeado escriturário do Erário Real. Em 1809, o príncipe regente Dom João VI, já no Brasil, chamou-o para vir para o Rio de Janeiro a pedido de Nogueira da Gama, e nomeou-o administrador da Fábrica de Lapidação de Diamantes e contador-geral do Erário e escrivão da Mesa do Tesouro, cargos que exerceu até 1827.
No período da Independência, de 1820 a 1822, foi nomeado procurador da Câmara de São João del-Rei como defensor dos interesses mineiros na Corte. Em 1821 foi eleito deputado por Minas Gerais às Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação portuguesa, que foram instaladas em Lisboa, mas não chegou a voltar à capital portuguesa. Após a Independência do Brasil, totalmente integrado à vida política do país, foi eleito por Minas Gerais deputado à Assembleia Constituinte brasileira em 1823, encarregada de preparar a primeira Constituição para a pátria recém-nascida, e em seguida foi eleito deputado para a legislatura de 1826, permanecendo no cargo até 1829. Em 1825, por decreto real, recebeu o Hábito da Ordem de Cristo. Em 1827, após aposentar-se como escrivão da Mesa do Tesouro, recebeu o título de Conselheiro do Império.
Produtor rural próspero e inovador
O padre Manuel da Costa, por sua vez, integrou o grupo de religiosos que se envolveu na Inconfidência Mineira, porém foi deliberadamente poupado de penas mais severas devido à proximidade entre a Coroa e a Igreja Católica. Curiosamente, durante este período, não chegou a ser propriamente condenado: na prática, a Coroa portuguesa esqueceu-se de puni-lo. Foi enviado primeiro a um forte em Portugal, onde ficou recluso de 1792 a 1796, e depois a um convento, onde viveu até 1801 quando foi finalmente libertado. Durante o período de reclusão, o religioso dedicou-se a estudos relacionados à prática religiosa, à matemática e às ciências da Terra. Em 1804, retornou ao Brasil e às Minas Gerais. Lá, passou a trabalhar em uma fazenda de sua família, e pôde colocar em uso as modernas práticas de cultivo da terra sobre as quais havia estudado durante a reclusão, tornando-se uma referência local no plantio de alimentos difíceis de serem encontrados na Colônia e um próspero produtor rural.
Mas suas atividades não se limitaram à agricultura. Enquanto esteve recluso em Lisboa, procurou estudar diversas indústrias ali existentes, especialmente a de tecidos e a da fabricação de vinhos. Para isso, instalou em sua propriedade uma pequena fábrica de tecidos de lã para confeccionar uniformes militares e estabeleceu plantações de vinhas e oliveiras. Rodrigues explica que o padre agia assim motivado por seu desejo de “engrandecimento da pátria”. “De todos os envolvidos na Conjuração Mineira, o padre Manuel Rodrigues da Costa foi o único que conseguiu colocar em prática pelo menos um dos planos sediciosos: a implantação de manufaturas”, escreve o historiador.
Manuel Rodrigues destacou-se também como ardente promotor da Independência do Brasil na província de Minas Gerais. Por ela, foi eleito deputado para a Assembleia Constituinte de 1823 e para a legislatura de 1826, mas posteriormente solicitou dispensa da Câmara por questões de saúde e devido à idade avançada.
Rodrigues explica que a diferença entre o discurso contestatório dos personagens apresentado enquanto “traidores” participantes da conjuração, e aquele proferido na condição de “patriotas” revela dubiedade e um claro compromisso com os jogos de poder que vigiam então. O padre Manuel da Costa, por exemplo, se no fim do século 18 defendia um movimento republicano e estava comprometido com a liberdade religiosa, décadas depois, durante debates no âmbito da Assembleia Constituinte, se empenhou para que fosse rejeitada a liberdade de religião aos brasileiros, e chegou a ser acusado por seus pares na Igreja de ser “intolerante religioso”. Também durante a Assembleia Constituinte, se envolveu em uma comissão que defendia a catequese dos indígenas.
Já José de Resende Costa Filho, ainda que tenha tido uma atuação discreta e sem grandes manifestações “patrióticas” na Constituinte, manifestou sua fidelidade à monarquia em diversas oportunidades antes de 1823. Durante a presença da família real no Rio de Janeiro, por exemplo, o ex-inconfidente defendeu que as monarquias ibéricas deveriam se unir aos seus súditos para derrotar a ameaça francesa, reforçando assim os laços entre a metrópole e suas colônias. O mesmo sentimento de fidelidade e apoio ao monarca português foi mostrado durante seu posicionamento contrário à Revolução Pernambucana, um movimento de caráter republicano e independentista ocorrido em 1817.
Memórias de inconfidente excluíram referências a proposta republicana
Antes do fim de suas vidas, os dois ex-inconfidentes ainda compartilhariam outra distinção. Em 1839, ambos foram convidados a se tornarem sócios-correspondentes do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), importantíssima instituição de pesquisa e debate intelectual surgida em 1838. O IHGB foi fundado com a intenção de desenvolver uma historiografia que colaborasse na formação da identidade nacional. Segundo escreve Rodrigues, o IHGB era “responsável pela construção de uma memória histórica comum e heroica que auxiliasse a explicar nossa proposta separatista de Portugal, tendo a Inconfidência como um de seus alicerces, e, também, por garantir uma identidade própria que explicasse ser a nação brasileira continuadora do processo civilizatório português”.
Em 1840, os dois foram convidados a relatar por escrito aos seus pares do IHGB seus testemunhos sobre a conjuração. Já estavam, porém, em idade avançada, e a solicitação envolvia rememorar eventos transcorridos mais de 50 anos antes. Embora já contasse 76 anos de idade, José de Resende Costa Filho estava lúcido e escreveu rápidas notas explicativas dedicadas a enaltecer indiretamente a figura do alferes Tiradentes, que fora apresentado como o líder do movimento de 1789. Em seu curto texto, o ex-inconfidente evitou entrar em temas polêmicos, em especial o caráter republicano original do movimento — traço que poderia causar desconforto num contexto em que uma casa real recente, a brasileira, buscava consolidar a nova nação.
Para os autores do artigo, os compromissos com os jogos de poder e as circunstâncias políticas mostram o quanto José de Resende Filho e o padre Manuel da Costa agiram “de acordo com as circunstâncias do tempo em que viveram: hoje você defende uma posição política e amanhã defende outra”. “Isso acontece com a classe política até os dias de hoje”, avalia Rodrigues. “A gente imagina que esses homens rebeldes vão defender suas ideias até o fim da vida. Porém, no caso desses dois personagens, eles mudaram completamente de postura quando voltaram ao Brasil. Assim, conseguiram se reabilitar e passaram de traidores do Império luso-brasileiro a patriotas da monarquia brasileira”.
Imagem acima: Editoria de Arte da ACI. Crédito das imagens: Wikimedia Commons e Adobe Stock.