Apressados por um pedido de tramitação em regime de urgência feito em abril, os deputados federais brasileiros aprovaram no final de novembro passado um projeto de lei que altera os procedimentos para aprovação e autorização de propostas de pesquisas clÍnicas com seres humanos no país. O texto, que tramitava na Câmara Federal desde 2017, agora precisará ser novamente apreciado pelo Senado, dada a quantidade de emendas recebidas.
Desde a sua criação, em 1996, o atual sistema, conhecido como CEP/Conep, se manteve ordenado por um conjunto de resoluções do Conselho Nacional de Saúde. Ao longo destas quase três décadas, o sistema passou por diversos aperfeiçoamentos e mudanças, o que não impediu que tenha sido objeto de reiteradas críticas por pesquisadores e patrocinadores de pesquisas. Esse debate culminou com a apresentação, em 2015, por parte da então senadora Ana Amélia (PP/RS), de um projeto de lei que estipulava mudanças no modo como são avaliadas as propostas de estudos biomédicos envolvendo pessoas. Após o início dos debates no Senado, a proposição foi renomeada como PL 7082/2017 e seguiu para a Câmara.
O projeto é controverso e divide a comunidade científica. Sua aprovação pelo plenário da Câmara, onde recebeu 305 votos favoráveis e apenas 101 contrários, foi saudada por diversas entidades e grupos ligados ao campo biomédico e farmacêutico. Entre elas, a Associação dos Laboratórios Farmacêuticos de São Paulo, a Associação da Indústria Farmacêutica de Capital Nacional e de Pesquisa, a Aliança Pesquisa Clínica Brasil e, principalmente, a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfama), que se mantém mobilizada há anos em defesa da proposta, e chegou a organizar uma carta aberta com 22 signatários solicitando à presidência da casa parlamentar que sua aprovação fosse acelerada.
Mas a reação contrária à aprovação foi igualmente vocal. O Fórum de Comitês de Ética em Pesquisa da Fiocruz respondeu com um manifesto, dizendo que a iniciativa “desmonta o atual Sistema de apreciação ética” em operação no país, e que implica “um retrocesso para as pesquisas com seres humanos no Brasil”. O Conselho Nacional de Saúde (CNS), vinculado ao Ministério da Saúde, acusou publicamente o PL 7982/17 de visar beneficiar “a indústria farmacêutica” e reitera que “o próprio Ministério da Saúde rejeita a ideia”. Até sociedades científicas da área de humanidades, como a Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social e a Associação Brasileira de Antropologia já haviam se manifestado contra a iniciativa legislativa, apontando diferentes problemas e inconsistências.
A reportagem do Jornal da UNESP entrevistou médicos, pesquisadores e bioeticistas sobre essa e outras mudanças contidas no PL 7082/2017. Chama a atenção que alguns dos especialistas procurados pela reportagem prefiram não expor publicamente as suas críticas ao sistema vigente e tampouco ao novo projeto. Esses entrevistados manifestaram receio de atrair críticas pesadas, e até de cancelamento, por parte de alguns setores da área da saúde, devido ao clima de polarização que se consolidou em torno do projeto.
Lentidão e burocracia
A argumentação dos defensores do PL 7082/17 é que o atual sistema que avalia as propostas de pesquisas clínicas em humanos no Brasil é demasiadamente burocrático e lento. Dirigentes da Interfarma estimaram que, em 2015, o prazo necessário para aprovação de um pedido de pesquisa clínica no Brasil chegava a um ano, muito além dos 60 dias que demoravam os trâmites nos Estados Unidos. “É preciso dizer que o processo regulatório brasileiro, tanto na Anvisa quando na Conep, melhorou muito. Mas ainda não é o ideal”, avalia o pesquisador Paulo Hoff, presidente da Oncologia da Rede D’Or, além de médico e pesquisador do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp).
Para a Interfarma, uma das consequências da demora em aprovar pesquisas seria o declínio do Brasil no ranking mundial de pesquisa clínica. “Países como Turquia, Taiwan e Egito, com menor PIB, população e mercado farmacêutico, ultrapassaram o Brasil no ranking entre 2013 e 2022. A aprovação do PL pode nos ajudar a atingir a 10ª colocação, ocupada atualmente pela Itália. É algo totalmente plausível com as qualidades que o Brasil reúne”, declarou a entidade. Em 2023, o Brasil detinha a 20ª posição no ranking, “com apenas 2% dos estudos feitos em 2022”.
O projeto aprovado pelos deputados estabelece um prazo de 30 dias contados a partir da data da aceitação da integralidade dos documentos da pesquisa para emitir seu parecer sobre ela. O prazo de checagem na recepção dos documentos será até cinco dias a partir da data da submissão. A liberação do parecer poderá ser prorrogada por 30 dias para a consulta de especialistas no tema (“ad hoc”) ou ajustes.
Embora não esteja escrito explicitamente no texto do projeto, a interpretação defendida pelo presidente da Aliança Pesquisa Clínica Brasil, Fabio Franke, é que, se não for cumprido o prazo, a pesquisa estará automaticamente aprovada. Em caso de negativa, se o pesquisador quiser recorrer, poderá fazê-lo nos primeiros 30 dias ao próprio CEP e, em último recurso, a uma instância nacional a ser criada futuramente. Paulo Hoff apoia a mudança. “Como investigador, eu gostaria de ter mais celeridade, regras claras e que a nossa regulamentação fosse alinhada com o que existe de melhor ao redor do planeta”, diz.
Proposta de um novo sistema
No Brasil, a tarefa de avaliar as propostas para a realização de ensaios e estudos clínicos está a cargo do Sistema Cep/Conep, que começou a ser construído em 1997 e é integrado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), órgão do CNS, e outras instâncias regionais, denominadas Comissões de Ética em Pesquisa (Ceps) (veja box abaixo).
Os pesquisadores interessados em realizar projetos de pesquisa com seres humanos devem, primeiramente, enviar os dados de segurança do medicamento ou procedimento à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que avaliará se as informações são suficientes para dar início ao estudo com seres humanos. A seguir, um Cep local ou regional ligado à universidade avalia os aspectos éticos e metodológicos do projeto, garantindo que estejam em conformidade com as normas brasileiras. Todos os 888 Ceps existentes no país estão vinculados a universidades e são subordinados à Conep, vinculada ao Conselho Nacional de Saúde (CNS).
“Projetos de pesquisa com relevância nacional ou com diversos centros passam pelo Cep e são encaminhados à Conep para uma segunda avaliação, assim como projetos que contenham alguma complexidade ética específica para obter um parecer final”, disse a coordenadora da Conep, Laís Bonilha, ao Jornal da Unesp.
Uma das propostas centrais do PL 7082/2017 institui um Sistema Nacional de Ética em Pesquisa Clínica com Seres Humanos em lugar do sistema Cep/Conep. O projeto votado pelos deputados estabelece que o Poder Executivo irá determinar, por meio de um projeto de lei complementar, qual e como será o órgão nacional responsável por registrar, fiscalizar e capacitar os Comitês de Ética em pesquisa (Cep), que terão autonomia para funcionar com regramento próprio.
O fim da necessidade de aprovação de estudos nacionais em duas instâncias, o Cep e a Conep, é um dos pontos controversos do PL 7082/2017. O projeto determina que a análise de uma pesquisa clínica, sua avaliação ética e metodológica deve ser feita unicamente por um Cep local ou regional composto por uma equipe multidisciplinar, com membros de áreas médicas, científicas e não científicas e um representante dos participantes da pesquisa.
Para alguns, faltou discussão
O médico Reinaldo Ayer de Oliveira, conselheiro do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) e coordenador do Centro de Bioética da entidade, ressalta as dificuldades de diálogo que cercaram o desenvolvimento da peça legislativa. “Faltou discussão até mesmo dentro do próprio Congresso”, diz. “A Conep tinha, inclusive, feito mediações e sugestões que estavam melhorando o projeto. Porém, as contribuições foram deixadas de lado, e votou-se no Senado a versão do projeto que estava menos mexida”, diz.
O médico Fábio Franke discorda. “É importante frisar que tudo isso vem sendo debatido há nove anos e que esse projeto de lei da pesquisa já passou por seis comissões e inúmeros debates e audiências públicas na Câmara e no Senado”, diz.
A atual exigência de aprovação dupla é vista por diversos setores como um excesso de burocratização, que contribui para dilatar o prazo necessário para obter o parecer da comissão. “A proposta simplesmente dá poderes aos comitês de ética locais para aprovação ética dos estudos clínicos e menciona que há necessidade de um outro projeto de lei por parte do Executivo, que vai determinar quem vai fazer a supervisão e a fiscalização desses comitês de ética e servir como órgão de suporte. Pode ser a própria Conep, ou algum outro órgão que o próprio Poder Executivo determine”, argumenta Franke.
Sistema atual envolve 15 mil voluntários
Laís Bonilha critica essas escolhas. Ela avalia que as medidas estabelecidas pelo PL 7082/2017 levarão o país a desarticular um sistema de defesa da ética em pesquisa que foi criado e consolidado a partir da garantia do respeito aos direitos humanos dos participantes. “Um dos grandes problemas é que a população desconhece o funcionamento desse sistema. As pessoas não saem em defesa daquilo que elas não conhecem ou valorizam”, diz Bonilha. “Existe um grande aprendizado que pode ser perdido. Mais de 15 mil pessoas trabalham voluntariamente em todo o país a fim de assegurar que a ética em pesquisa esteja amparada em bases sólidas.”
Outro ponto crítico da proposta legislativa envolve a limitação do acesso de medicamentos aos participantes da pesquisa. “Esse PL coloca a necessidade de fornecimento dos medicamentos para os pacientes que necessitarem desse tratamento após a conclusão do estudo, mas define as situações em que isso pode ser suspenso, como a aprovação do medicamento no SUS ou pelo prazo de cinco anos após a sua comercialização. Isso nos dá um prazo que seja previsível, o que é muito bom”, diz Franke. “Hoje a pesquisa clínica sofre muito no Brasil porque não temos previsibilidade dos nossos prazos. Isso nos deixa menos competitivos com relação ao resto do mundo.”
Um relatório da Interfarma, divulgado em 2022, aprofundou a problemática envolvendo a questão do fornecimento de medicamentos após o estudo. De acordo com o documento, a ausência de uma legislação ampla que estabeleça regras, responsabilidades e, principalmente, prazos para o fornecimento pós-estudo gera uma série de custos e problemas logísticos que não podem ser previstos pelos patrocinadores de estudos clínicos. “Em casos mais extremos, como tratamentos para algumas doenças raras, a população-alvo é profundamente restrita, portanto, o fornecimento do medicamento teste de forma abrangente pode até inviabilizar o lançamento do produto pela indústria farmacêutica”, descreve a Interfarma.
O desafio do pós-estudo
Bonilha diz que, no caso da manutenção das terapias, é necessário diferenciar as condições de pesquisa e de tratamento. “Esse é um equívoco muito importante, a ser esclarecido para toda a sociedade. Pesquisa não é assistência e nem cuidado em saúde. A participação em uma pesquisa não garante ao participante que ele está sendo tratado. O risco é do participante, que depois deverá ter direito ao tratamento aprovado, inclusive no braço controle”, diz.
Dirceu Grecco, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais e representante da Sociedade Brasileira de Bioética no Conselho Nacional de Saúde, diz que o fato de o Brasil ser um dos poucos lugares no mundo onde ainda existe a obrigação por lei de fornecer o tratamento pós-estudo deveria ser celebrado. “Conseguimos resistir e manter essa garantia enquanto diversos países voltaram atrás”, diz Grecco, uma das vozes mais conhecidas em defesa da ética em pesquisa no país e que representa o Brasil em discussões internacionais de diretrizes para a área.
“Na verdade, o custo do fornecimento dos medicamentos e tratamentos pós-estudo ao participante da pesquisa é uma gotinha no rio de dinheiro que as farmacêuticas gastam com os estudos clínicos ao redor do mundo. E é preciso lembrar, ainda, que a maioria dessas pesquisas se utiliza da estrutura do SUS e que a única pessoa que corre riscos nos estudos é o participante”, argumenta ele.
Comunidade dividida
Muitos outros pontos do PL 7082/2017, como a possibilidade de pagar participantes de pesquisas com vacinas, por exemplo, e o regramento para disciplinar o uso do placebo, dividem a comunidade de pesquisa.
“Precisamos avançar e reorganizar uma estrutura criada na virada do século para que ganhe agilidade sem diminuir a proteção dos participantes de pesquisa”, diz Paulo Hoff. Ele reconhece que a Conep tem feito avanços importantes e melhorado muito nos últimos anos. “Mas precisamos aproximar mais as decisões sobre pesquisa cientifica, algo que ganhou uma grande complexidade nos últimos anos, dos organismos e instituições especializados e ciência. Inclusive contando com a participação da sociedade via CNS”.
Já Laís Bonilha acredita que as conseqüências de uma eventual aprovação serão prejudiciais. “O projeto está completamente desorganizado e sem coerência interna porque foi muitas vezes recortado. Acredito que é preciso discutir um novo substitutivo, uma nova proposta, mas que não seja essa [a mais adequada]” diz.
Uma vez que o projeto sofreu emendas durante a tramitação na Câmara, precisará ser revisto e votado novamente pelos senadores. Se for aprovado, ainda será submetido ao Presidente da República, que poderá sancioná-lo ou não. Não há previsão de datas para nenhuma dessas movimentações. Mas, se o projeto não sofrer ajustes profundos para conciliar o setor, não há sinais de que a controvérsia vá abrandar na comunidade científica.
Um docente da Unesp na origem do sistema Cep/Conep
O médico e pesquisador William Saad Hossne (1927 – 2016), um dos fundadores da Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu, foi um dos idealizadores e criadores do sistema Cep/Conep no final dos anos 1990.
William Saad Hossne formou-se Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em 1951, especializou-se em cirurgia gastroenterológica e teve uma longa e bem-sucedida carreira de médico, pesquisador e gestor em ciência e tecnologia, incluindo a direção da Faculdade de medicina de Botucatu (FMB) entre 1984 e 1988, antes de se dedicar à bioética.
Reinaldo Ayer, que foi aluno de Hossne e tornou-se posteriormente professor de bioética da Faculdade de Medicina da USP, hoje aposentado, lembra-se da grande capacidade de Hossne de aglutinar pessoas e da sua inigualável contribuição para a organização do campo da pesquisa clinica no país.
“No final dos anos 1990, o professor Hossne conseguiu reunir um grupo de pessoas para fazer um questionário sobre ética em pesquisa que circulou no Brasil inteiro”, diz. Ele relata que à época a pesquisa clinica seguia uma resolução de 1988, do Conselho Nacional de Saúde, que tratava basicamente de questões técnicas relacionadas à pesquisa, como a quantidade de sangue a ser obtida do voluntário sem incorrer em prejuízo à pessoa. “Os dados coletados por esse questionário foram sistematizados e deram origem à Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde”, diz. Esta resolução é uma norma jurídica destinada a proteger os sujeitos nas pesquisas científicas que foi estruturada a partir da avaliação ética dos protocolos de pesquisas pelos Comitês de Ética em Pesquisa das instituições que realizam pesquisas envolvendo seres humanos.
“Foi no contexto dessa primeira resolução, que realmente trata de ética em pesquisa, que surgiu a expressão ‘consentimento livre e esclarecido’. O professor Hossne defendia que qualquer pessoa que fosse participar de uma pesquisa tinha que entender do que tratava o estudo e dar seu consentimento, na maioria das vezes por escrito”, conta Ayer.
Hossne chegou a fazer um relato desse processo em entrevista concedida à Revista Pesquisa FAPESP em 2013.
“Em 1985, eu e a Sonia Vieira, professora de estatística, publicamos um livrinho chamado “Experimentação em seres humanos, em que fizemos a análise de abusos. Propúnhamos que era hora de ter diretrizes éticas da pesquisa com seres humanos. Depois que o livro saiu, criei a Sociedade Brasileira de Bioética. Ela cresceu e logo surgiu o primeiro curso de bioética do país. Depois fui indicado para o Conselho Nacional de Saúde para discutir ética e saúde, em 1992, 1993. E lá eu propus a criação de normas sobre ética em pesquisa com ser humano e que a diretriz não fosse de ética profissional, mas de bioética no sentido amplo. Foi nomeado um grupo interdisciplinar, que tive a honra de presidir, com 13 pessoas, sendo apenas 5 médicos. Pegamos os dados de três ministérios: Saúde, Ciência e Tecnologia e Educação. Mapeamos 30 mil pessoas ou entidades que podiam contribuir. Mandamos o esboço do que a gente pensava. Pedimos sugestões. Queríamos que nosso sistema tivesse força de lei. E conseguimos. Esse sistema está sob a égide do Conselho Nacional de Saúde. Criamos um sistema de controle social na boa acepção da palavra. É independente, gerido pelos comitês de Ética de Pesquisa das instituições, que são multidisciplinares. Qualquer instituição que faz pesquisa precisa ter o seu. Há mais de 600 comitês. Eles não podem ter mais da metade dos membros de uma mesma área. Imagine o que foi chegar para um médico e dizer que o projeto dele ia ser analisado por 10 ou 12 pessoas e que só metade seria de médicos.”
Na mesma entrevista, concedida em 2013, Hossne foi perguntado sobre como avaliava as críticas à Conep. Com elegância, falou da importância da instituição e do peso das pressões.
“A questão é complexa e mereceria uma matéria à parte. Qualquer crítica deve ser recebida com isenção e merece ser avaliada, principalmente quando se trata de uma questão da área ética. Por outro lado, a crítica deve ser procedente, fundamentada e dirigida a quem de direito. Especificamente durante o período de 1996 a 2007, toda crítica foi devidamente avaliada. Ao lado de críticas “não caracterizadas”, visivelmente apresentadas sob pressão de conflitos de interesses, surgiram reclamações quanto à demora na tramitação de processos. Não me lembro de nenhuma crítica atingindo o corpo conceitual ou doutrinário, comprometendo alguma ou o conjunto das resoluções 196/96 e suas complementares. É preciso separar o aspecto do conteúdo bioético do aspecto operacional. As críticas, em geral genéricas, são focalizadas em aspectos operacionais, especificamente na “demora” ou na burocratização das respostas, imputadas equivocadamente à Conep, muitas vezes visando desqualificá-la. É bom lembrar o disposto no capítulo VIII da 196/96, que estipula que “o Ministério da Saúde adotará as medidas necessárias para o funcionamento pleno da comissão e de sua secretaria executiva.”
Incansável, o bioeticista protagonizou muitas iniciativas. “Ele também foi um pioneiro do conceito de ética em pesquisa animal”, conta o bioeticista Trajano Sardenberg, que conviveu com ele em Botucatu (SP). Em entrevista concedida em 2013 à revista FH, Hossne contextualizou a questão:
“(…) O que acontece é que há um abuso do uso dos animais. Existem certos conhecimentos, com as modernas tecnologias, em que se pode prever uma série de informações em que não seria necessário o uso do animal. Modelos simulados, por exemplo, permitem prever um pouco das propriedades de uma nova molécula que se quer testar. Vários países estão desenvolvendo, incrementando e incentivando a criação de métodos alternativos aos animais, o que não quer dizer que eles deixarão de ser usados, mas vai evitar o uso sem necessidade.”
Na mesma entrevista, falou sobre o pagamento de pessoas para participarem de testes científicos, como ocorre nos Estados Unidos e Inglaterra, uma prática atualmente proibida no Brasil.
“Quando estávamos criando os códigos esta questão foi discutida. A comissão [Conep] foi alertada e levou em consideração as disposições morais do Brasil. Não aceitamos mercado humano. Falamos em doação de órgãos, embora em outros países seja permitido vender um rim, ou a prática de barriga de aluguel. Os hemocentros só aceitam doação. Dentro desta visão foi posto que não há pagamento. O voluntário não pode ser comprado, seduzido ou coagido. Nossas condições morais e éticas apelam muito mais para o princípio do altruísmo para conservação da espécie, um compromisso com a humanidade inteira. O que se poderia discutir, e isto sim merece análise, é se o país em que estão os pacientes sendo testados em estudos multinacionais não deveria receber royalties por isso. A implicação de recebimento é complexa, mas temos que levar em conta que nossas leis não permitem o mercado humano.”
Na FMB, Hossne ainda criou e coordenou o programa de pós-graduação em Cirurgia Experimental da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB) e implantou o curso de graduação em Enfermagem da instituição. Mas sua contribuição à ciência brasileira se deu também em outros lugares. Ele foi reitor da Universidade Federal de São Carlos de 1979 a 1983. Também presidiu a Associação Brasileira de Educação Médica (Abem) e foi membro do Conselho Consultivo da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Comitê Assessor do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).