Falar sobre o fracasso na pesquisa é estratégia para popularizar a ciência, defende o neurocientista e autor Stuart Firestein

Visão do empreendimento científico como um processo linear de coleta de fatos, além de inexata, seria prejudicial para promover envolvimento da sociedade com áreas de C&T, diz professor da Universidade Columbia. Em sala de aula, ele explora temas como a ignorância dos estudiosos acerca de seus objetos de estudo para instigar curiosidade dos alunos.

É comum encontrar obras produzidas para o público geral que apresentam o desenvolvimento do conhecimento científico como uma espécie de marcha triunfal. Esta perspectiva parece sugerir que, a partir de certo momento da história, surgiu na face da Terra uma classe especial de homens e mulheres. Estes, empregando todo o seu engenho e suas habilidades intelectuais, capturaram as verdades fundamentais sobre a natureza e o homem, e seu sucesso lhes valeu a entronização em uma espécie de olimpo moderno e laico, o grupo dos grandes cientistas.

Mas será realmente esta a maneira mais eficaz para transmitir ao leitor não especializado a complexidade da produção científica? O neurocientista norte-americano Stuart Firestein está  propondo  trilhar uma nova via, que passa por compartilhar uma visão mais dos bastidores do trabalho dos pesquisadores, e com espaço para tratar, inclusive, dos fracassos dos cientistas. E é justamente disso que trata Fracasso: por que a ciência é tão bem-sucedida, obra de Firestein recentemente lançada em português pela editora Unesp. Firestein, que é professor de neurociências na Universidade de Columbia, discorreu sobre estes e outros temas nesta entrevista exclusiva ao Jornal da Unesp.

*****

Seu tema de pesquisa é o olfato. Como surgiu então o ímpeto para discutir questões como o papel da ignorância e do fracasso na produção da ciência?

Firestein: Meu trabalho no laboratório tem um papel nisso. Enquanto estou lá, tentando entender questões sobre o olfato, o funcionamento do cérebro e a maneira como percebemos o mundo, trabalho junto com um grupo de orientandos de uma maneira muito empolgada. É um trabalho muito difícil. Mas temos longas e interessantes discussões sobre o que estamos fazendo, sobre quais são os problemas e sobre o que não sabemos. Além disso, também ministro uma disciplina de neurociência para alunos de graduação. Esse é um grande desafio, porque exige transmitir um monte de informações sobre o cérebro em 25 aulas. Percebi que, apesar de gostar de ensinar, a rotina da sala de aula não era tão emocionante como a do laboratório. Por que será?

Cheguei à conclusão de que a diferença entre o laboratório e a sala de aula é que, no laboratório, nos preocupamos apenas com o que não sabemos. Temos que fazer perguntas e tentar encontrar as respostas para essas dúvidas. Na sala de aula o processo é oposto: nunca falamos sobre o que não sabemos, apenas expomos um somatório de fatos, acumulados ao longo de muito tempo. Foi a partir daí que surgiu a ideia de abordar a ignorância. Temos de falar sobre o que não sabemos, tanto quanto falamos sobre o que sabemos.

Tendo isso em mente, montei um curso sobre a ignorância. A ideia era criar um espaço de debates semanais. Eu convidava pesquisadores de diferentes áreas da universidade para falar sobre as questões em que estavam trabalhando, como escolhiam problemas de pesquisa e o que poderia acontecer se nunca encontrassem uma resposta para uma determinada pergunta. O resultado foi muito interessante. Acontece que, quando se convida um cientista para falar sobre o que não sabe, outras pessoas obter um entendimento muito mais profundo do seu trabalho do que se fossem expostas apenas a dados e descobertas.

Foi essa experiência que o motivou a escrever livros para o público geral abordando os processos que envolvem a produção da ciência?

Firestein: Com certeza. A ciência é uma das aventuras mais emocionantes em que o ser humano já esteve envolvido, e temos de torná-la pública. Não podemos mantê-la trancada no laboratório, ou disponível apenas para um grupo de elite de pessoas que estudaram durante anos e anos. O conhecimento especializado é importante, mas é necessário que exista uma ligação entre ciência e sociedade. Afinal, é a sociedade que sustenta a ciência.

Nós não podemos esperar que todos tenham diploma superior em todas as áreas da ciência. Eu sou neurocientista e existe muita ciência que eu desconheço. Mesmo assim, penso que posso compreender o que motiva os pesquisadores de outras áreas. Todos nós gostamos de quebra-cabeças, então acho que se você apresentar a ciência como um grande quebra-cabeça, isso ela terá a capacidade de envolver as pessoas e isso é muito importante. A ciência deve fazer parte da sociedade.

Se não estamos fazendo um bom trabalho de comunicação nem pelos nossos estudantes de ciências, o que está sendo feito pelas demais pessoas?

O projeto com a escrita dos livros é diminuir essa distância entre a sociedade e o fazer científico. Durante as aulas de neurociência eu percebi que, mesmo para um público de pessoas que seriam médicos ou pesquisadores, a forma como comunicamos a ciência não permite que eles participem, de fato, dessa aventura. No fim, o que me impulsionou foi pensar: se não estamos fazendo um bom trabalho de comunicação nem pelos nossos estudantes de ciências, o que está sendo feito pelas demais pessoas?

E quais poderiam ser estes novos caminhos para o ensino de ciência?

Firestein: Para mim, um dos maiores problemas está na maneira como são feitas as avaliações e os acompanhamentos. Se você está ensinando ciências, você quer saber se as pessoas estão entendendo algo, se estão se engajando e extraindo informações. No momento, a maneira mais comum de ter esse controle é com mecanismos muito retrógrados, como provas de múltipla escolha. Isso não funciona como incentivo porque se trata apenas de expor fatos, fazer os estudantes memorizá-los e repeti-los nos testes. Acredito que o truque é aprender e desenvolver novas formas, não apenas para avaliar os estudantes, mas também para apresentar o trabalho que estamos fazendo. Essa poderia ser uma forma de, no futuro, mudar o currículo.

Pensar em novas formas de avaliação e em maneiras de mudar a estrutura curricular é um problema científico. Nós precisamos reunir grupos de educadores, psicólogos, neurocientistas, e  também precisamos de pessoas envolvidas com jogos, porque acredito que o jogo é um dos mecanismos mais interessantes de organizar o processo de avaliação. A partir de estudos em neurociência, nós já sabemos que diferentes pessoas se desenvolvem em ritmos distintos. Algumas pessoas são boas em matemática desde muito cedo e outras ficam melhores mais tarde; algumas começam a ler de maneira rápida e outras têm mais dificuldade. Mesmo assim, nosso sistema de ensino faz com que coloquemos todas elas nas mesmas turmas tendo como base a idade dos estudantes. Isso não é correto.

Esse é um grande desafio. Envolve alterar a maneira como as instituições funcionam há décadas, ou até centenas de anos. Mas isso deve ser feito porque, hoje, temos mais pessoas no sistema educacional do que nunca. A educação era um privilégio de poucos, as salas de aula eram menores e a atenção era mais individualizada. Esse é o tensionamento atual: nós queremos democratizar a educação, queremos que ela esteja disponível para o maior número de pessoas possível, mas, ao mesmo tempo, não devemos padronizá-la.

Aprofundado a questão do distanciamento entre a produção científica e a sociedade em geral, como você avaliou o período da pandemia, durante o qual vimos uma intensificação do sentimento antivacina tanto no Brasil como nos EUA?

Firestein: Essa é uma questão bastante complicada. É importante destacar que esse tipo de movimento não é algo novo; ao longo da história já houve muita desconfiança em relação à ciência. Sempre que surge uma nova tecnologia, por exemplo, ela vem acompanhada de um certo tipo de preocupação ou receio. Hoje uma das principais discussões é em torno da inteligência artificial e da preocupação de que ela será o fim dos seres humanos. Ao pensar nessas situações, gosto sempre de analisar a partir das lentes da história, compreender que esse é um período que merece atenção, mas que a ascensão desses movimentos não significa que as pessoas desistiram da ciência. O fato é que, apesar de existirem alguns grupos barulhentos, a maior parte das pessoas se vacinou, a maioria foi atrás da proteção das vacinas e a maioria estava preocupada em tomar as precauções necessárias para não adoecer.

Dito isso, esse é um problema sério que merece atenção.  E uma das principais maneiras de lidar com ele é levando os cientistas a pensarem com mais cuidado sobre o modo como se comunicam com o público. Todos acreditamos que expertise em algumas áreas é importante. Vamos ao advogado, ao dentista e ao médico porque acreditamos que eles têm conhecimentos que podem nos ajudar a resolver problemas. No caso dos médicos, por exemplo, existe uma conversa com o profissional, você tem a oportunidade de se sentir parte do tratamento. Os médicos têm o dever de explicar e fazer com que você entenda o que está acontecendo, mesmo que o quadro seja mais complicado do que o que está sendo exposto. Na ciência, nós raramente temos a oportunidade de fazer isso. Não é tão simples fazer as pessoas se sentirem parte do processo científico. Mesmo assim, penso que esse seja o caminho.

Além do fracasso e da ignorância, existe outro pilar subestimado, ou pouco explorado, do fazer científico?

Firestein: Acredito que outro elemento crucial, e que muitas vezes é esquecido, é o otimismo. Não me refiro apenas a uma disposição psicológica ou a esses clichês de autoajuda. É um ponto de vista filosófico, uma maneira de pensar o mundo que a ciência promove, porque ela mistura, de forma interessante, arrogância e humildade. Isso não é comum em outras áreas. Por um lado, temos a arrogância de acreditar que podemos compreender tudo sobre o nosso cérebro, sobre o universo e sobre as questões sociais. Embarcamos em jornadas malucas acreditando que é possível realizá-las, como ir para a Lua, por exemplo.

Ao mesmo tempo, precisamos ter a humildade de perceber que sabemos apenas uma fração de tudo o que há para saber. E que muito do que conhecemos acabará por não ser tão errado, mas também não tão certo assim. A ciência é esse equilíbrio: ter a arrogância que nos permite atacar grandes questões, mas a humildade de reconhecer que não somos tão inteligentes.

Imagem acima: DepositPhotos