Por que o número de jovens que se candidatam a uma vaga no ensino superior gratuito tem caído nos últimos anos?

Quadro de retração econômica, combinado com período de pandemia, afetou inscrições para o Enem e os vestibulares de universidades estaduais. Redução foi mais intensa em segmentos de menor poder aquisitivo. Estudiosos ressaltam necessidade de politicas públicas de permanência estudantil, e de procurar formatos que sejam mais atraentes para alunos.

Concluir o ensino médio, estudar para o vestibular, conquistar a tão sonhada vaga e viver o ambiente universitário, indo de calouro a veterano até chegar à formatura. Se esse caminho já não era linear para grande parte dos jovens brasileiros, ele vem se tornando cada vez mais tortuoso nos últimos anos.

Essa sinuosidade se reflete em números: o total de inscritos nos vestibulares mais tradicionais do país, e também no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), vem caindo ano a ano, revelando perigoso descompasso dos jovens com a universidade. Entre as barreiras que dificultam a entrada no ensino superior estão a perda de conexão com a escola, a urgência do trabalho e até a descrença no estudo como forma de ascensão pessoal e social.

Esta é a avaliação de diferentes especialistas em educação e ativistas pela inclusão no ensino superior ouvidos pelo Jornal da Unesp. Os entrevistados descrevem um cenário preocupante, que combina a dificuldade dos jovens de efetivarem o direito de acesso à universidade, a perspectiva de baixa especialização das gerações futuras e a falta de oxigenação do ambiente acadêmico para lidar com as novas demandas e questionamentos por parte da juventude do país.

Para se ter uma ideia, o número de inscritos no Enem em 2022 foi o segundo menor desde 2005, quando a prova ainda não tinha o caráter de um vestibular nacional. Foram 3,4 milhões de inscritos no ano passado e 3,1 milhões em 2021, os dois menores totais em 17 anos. O exame, considerado a principal porta de entrada nas universidades federais, chegou a ter 8,7 milhões de inscritos em 2014.

A situação se repete em alguns dos vestibulares mais tradicionais e mais concorridos do país. Em São Paulo, nas universidades estaduais de Campinas (Unicamp) e Paulista (Unesp), o número de concorrentes em 2022 foi o menor desde 2012: 61,2 mil e 67,5 mil, respectivamente.

Já o vestibular da Universidade de São Paulo (USP) teve o menor número de inscritos em 2021 (110,7 mil), com um ligeiro aumento no ano passado (114 mil), porém ainda muito distante do recorde registrado em 2013, quando 172 mil candidatos se inscreveram para o vestibular do ano letivo de 2014.

Para muitos, universidade não está no horizonte

“Existe uma grande falta de informação sobre as universidades públicas para os estudantes das redes municipais e estaduais. Eles não sabem se têm ou não de pagar para estudar ou mesmo que exame é preciso prestar para concorrer à vaga. Esses jovens financiam as universidades com seus impostos, mas não têm acesso sequer a informações sobre elas”, diz Vinicius de Andrade, o fundador do Projeto Salvaguarda.

A iniciativa, criada em 2016, em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, visa aproximar os alunos de escolas públicas do ensino superior, colocando os estudantes em contato com universitários de diversas regiões do país, que passam a atuar como mentores de quem ainda não entrou na faculdade. Eles orientam os candidatos sobre os cursos disponíveis, como organizar uma rotina de estudos e, principalmente, como concorrer a uma vaga.

“O universo das universidades públicas é nebuloso para a maioria dos alunos de escolas públicas e a falta de clareza abre margem para variáveis externas dificultarem ainda mais o ingresso no ensino superior, como a desmotivação, a falta de apoio da família e desvalorização do estudo”, pontua Andrade. “Não é incomum eu ouvir: ‘meu vizinho fez faculdade e continua em um subemprego’. É uma realidade difícil de competir.”

Outro ponto de atenção é o crescimento de um discurso anticiência, fortalecido por lideranças políticas e influenciadores nas mídias digitais, que faz com que uma parcela dos jovens não considerem a possibilidade de se tornarem cientistas ou de frequentarem espaços onde a Ciência é produzida.

Em menor escala, soma-se ao problema o modelo tradicional de aulas no ensino superior, que pode ser pouco atrativo para os jovens. “Notamos que, dependendo do curso e da disciplina, algumas abordagens mais tradicionais não prendem a atenção, porque a turma está acostumada com o ritmo vertiginoso do Tik Tok e dos vídeos no Youtube. O comunicador tem toda uma produção que o professor em sala de aula não tem e às vezes não deve ter, porque a construção do saber científico passa muito por tentativa e erro, longas horas lendo ou no laboratório acertando equipamentos”, diz a professora de História da Arte da Unesp, Paula Ferreira Vermeersch, que é representante docente no Conselho Universitário da Unesp, e foi representante do câmpus de Presidente Prudente na Câmara Central de Graduação da Unesp por dois mandatos.

Semana passada, o próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez um apelo para que os jovens se inscrevam no Enem, para recuperar a força e a relevância da prova.

“É importante que todas as pessoas que tenham idade para se inscrever no Enem se inscrevam. Nós precisamos recuperar a força do Enem. É importante que todos que queiram fazer uma universidade se inscrevam para ter a oportunidade de ser doutor ou doutora”, disse Lula no programa Conversa com o Presidente, um  bate-papo com transmissão pelas redes sociais que deve ser realizado semanalmente, às terças-feiras.

Crise econômica e covid

Quem acompanha de perto a realidade da educação brasileira concorda: é impossível debater a preocupante queda no número de jovens que concorrem a uma vaga na universidade sem olhar com cuidado para as crises econômica, política e sanitária que assolaram o país nos últimos anos.

“As famílias dos estudantes tiveram sua renda reduzida e precisam escolher entre pagar a conta de luz ou a taxa de inscrição de um vestibular, elas não podem optar pelas duas contas. A pandemia piorou e escancarou as desigualdades educacionais principalmente quando observamos marcadores sociais como classe e raça”, diz Luana Reis, diretora executiva do Projeto Amplia Vestibulares, movimento que conecta pessoas dispostas a doar o valor das inscrições em vestibulares para estudantes que não podem pagar.”

A pandemia de covid-19, que forçou o fechamento de escolas por um longo período e ampliou os déficits de aprendizagem, somada ao empobrecimento da população, são fatores centrais quando o assunto é a possibilidade de ingressar no ensino superior.

“Não é possível dizer que há um desinteresse dos jovens pelo ensino superior, mas sim que a situação econômica do país, a falta de políticas de educação e o incentivo ao empreendedorismo, em detrimento de uma política de educação superior, colaboraram diretamente para a procura dos jovens por essa etapa do ensino”, pontua a professora da Unicamp Debora Jeffrey, que é  líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Política e Avaliação Educacional.

Para se ter uma ideia, um em cada dez jovens entre 11 e 19 anos abandonaram os estudos durante a pandemia e não retornaram para a escola, segundo um estudo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) divulgado em setembro do ano passado. O principal motivo para o abandono dos estudos (48%) foi a necessidade de trabalhar. Na sequência (30%) está a dificuldade de acompanhar explicações ou atividades das escolas.

“O que percebemos é que o contexto socioeconômico do país tem interferido no interesse em entrar na universidade. O empobrecimento empurra os jovens mais cedo no mercado de trabalho e eles se encantam porque ter um salário é uma solução mais imediatista que estudar”, avalia Andrade.

Os reflexos são claros: apenas 53% dos brasileiros entre 16 e 24 anos estão matriculados em alguma instituição de ensino, de nível fundamental, médio ou superior, segundo uma pesquisa do Sesi e do Senai, divulgada em maio deste ano. O principal motivo para interromper os estudos (36%) foi justamente a necessidade de trabalhar para ajudar a manter a família.

“Com a pandemia, muitos jovens que se tornaram arrimo de família tiveram de assumir a responsabilidade de sustentar pais, avós ou irmãos, em um mercado de trabalho menos saudável após a flexibilização das leis trabalhistas”, diz Debora.

Críticas e cortes

O ensino público superior sofreu diversos reveses nos últimos anos, que também podem ter contribuído para a queda no interesse dos jovens pela busca destas instituições. Parte desses reveses diz respeito ao financiamento. Só em 2022, o governo do então presidente Jair Bolsonaro cortou R$ 1,68 bilhão das universidades e institutos federais, segundo levantamento da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). Mesmo que parte do valor tenha sido desbloqueada após protestos e que o atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, tenha anunciado o envio de R$ 2,44 bilhões para as instituições de ensino, a política de desvalorização das universidades públicas é uma constante que acompanha o país nos últimos anos.

Essas restrições orçamentárias, é importante lembrar, foram acompanhadas de críticas por parte dos ministros da Educação do governo Bolsonaro. Um deles, Abraham Weintraub, logo depois de assumir o cargo, estabeleceu um corte de 30% no orçamento das federais, e disse que aquelas instituições onde o desempenho se mostrasse abaixo do esperado pelo ministério, ou onde houvesse “balbúrdia”, haveria restrição de financiamento. Em outro momento tenso, afirmou que existiam “plantações de maconha” nos campi das universidades federais. Quando questionado sobre essa afirmação na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, não apresentou provas, mas manteve as afirmações.

Seu sucessor, Milton Ribeiro, afirmou explicitamente em entrevista que “a Universidade, na verdade, deveria ser para poucos, neste sentido de ser útil à sociedade’. Ele declarou também que imaginava que os institutos federais, que oferecem formação técnica, deveriam ser encarados como uma opção mais interessante para os estudantes. Ele declarou que no Brasil muitos engenheiros e advogados formados se veem obrigados a atuar como motoristas de aplicativo para conseguir trabalho. Já se tivessem formação como técnicos em informática, declarou, “conseguiriam emprego, porque tem uma demanda muito grande”.

“Os representantes do governo Bolsonaro no Ministério da Educação, em diferentes momentos, defenderam a visão de que a educação superior deveria ser para poucos”, diz a assessora de advocacy da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Tânia Dornellas.

O próprio Enem sofreu sucessivos ataques e tentativas de enfraquecimento: em 2019 houve erros de logística na aplicação da prova e na divulgação dos resultados; em 2021, o Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), responsável pela prova, passou por uma grave crise institucional, quando 37 profissionais pediram demissão por assédio moral e perseguições políticas. No mesmo ano, ainda na pandemia, o governo retirou a gratuidade dos inscritos que não justificaram a ausência na edição anterior.

“Isso impactou diretamente a população de baixa renda, indígenas e negros”, diz Tânia Dornellas. “Na edição de 2022, o Enem registrou 32,4% de abstenção, uma das maiores taxas. É importante destacar que essa edição foi a que também teve a menor proporção de pessoas pretas, pardas e indígenas inscritas nos últimos 10 anos.”

“O impacto para o país será enorme, pois corremos o risco de ter uma geração perdida”, avalia Debora. “Não efetivaremos o Plano Nacional de Educação, que previa acesso de 30% dos jovens até 24 anos no ensino superior, teremos escassez de mão de obra qualificada e não teremos a presença de parte importante da juventude brasileira nas universidades, com suas perguntas e questionamentos.”

Outro efeito importante é o enfraquecimento das políticas de cotas para entrada no ensino superior, já que os jovens que mais se afastaram das universidades foram sobretudo os mais pobres, os negros, os indígenas e os com deficiência. “O desdobramento pode ser o desestímulo às ações afirmativas e o fortalecimento dos argumentos contrários às cotas”, diz Débora.

” A ausência de pessoas pretas, pardas, indígenas, de origem pobre e periférica nos espaços estratégicos de decisão afetam a eficiência de políticas públicas. Corremos o risco de ter um contingente enorme de pessoas em trabalhos precarizados e mal-remunerados e será mais difícil ter mobilidade social “, diz Luísa Guimarães, diretora de captação de recursos do Projeto Amplia Vestibulares.

Como mudar esse quadro?

Os caminhos para recompor o interesse dos jovens, sobretudo aqueles de extração social mais popular, pelo ensino superior, passam pela adoção de políticas públicas e de medidas de estado, dizem os entrevistados. “Cabe ao atual governo recompor o orçamento da educação e promover oportunidades de acesso à educação para todos”, reivindica Tânia Dornellas, da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. “E no caso do fortalecimento do Enem, considerado como política pública, é urgente a revogação do Novo Ensino Médio”, diz.

Para além das políticas públicas, as universidades podem desempenhar um papel importante nesse processo buscando se aproximar mais dos jovens e adequar grades e disciplinas às suas demandas. ” Penso que para trazermos os jovens para a Universidade, temos que sempre repensá-la. Todo ano, tento mudar algo nas minhas disciplinas de graduação”, diz Paula, da Unesp. “O diálogo com os estudantes em sala de aula, e nos demais espaços da universidade, também é fundamental. Assim como ouvir o professorado do ensino fundamental e médio. São muitas as tarefas para afinarmos nossas práticas com os anseios dos estudantes.”

Garantir que os jovens mais pobres estejam nas universidades públicas exige também o investimento pesado em políticas de educação, na qualificação dos professores da educação básica e na melhoria da infraestrutura física das escolas. Além disso, especialistas concordam que é urgente oferecer apoio financeiro para que as famílias mantenham seus filhos nas universidades, arcando com gastos de transporte e alimentação. “O ensino superior precisa ser entendido como uma política pública, e como um direito da juventude. As universidades precisam estar mais próximas dos jovens. É preciso abri-las para os estudantes do ensino médio e ampliar as possibilidades de pesquisa científica ainda na educação básica”, propõe Debora.”

Imagem acima: estudantes em Brasília fazem prova do Exame Nacional do Ensino Médio, em 2007. Crédito: Wikimedia Commons