Espectadores de TV Pública no Brasil apresentaram tendência maior a acreditar em informações falsas sobre a covid-19 no período da pandemia

Levantamento reuniu dados sobre o papel de canais estatais televisivos no combate à desinformação em quatro países marcados por governos populistas. De maneira geral, consumo de mídias jornalísticas resultou em menor adesão à fake news, mas caso brasileiro destoou do padrão internacional.

Para além do legado trágico de mais de 770 milhões de infectados e aproximadamente sete milhões de mortos, a pandemia de covid-19  ocasionou sérios estragos e prejuízos também no campo da comunicação e do consumo de informação. Isso foi constatado pela própria Organização Mundial da Saúde, que chegou a adotar em alguns documentos o termo “infodemia” para identificar o tsunami de informações, algumas precisas e outras não, que varreu o planeta, e que criou expressivas dificuldades no processo de encontrar fontes e orientações confiáveis.

De críticas infundadas às medidas de combate ao vírus, até alegações mentirosas sobre a segurança das vacinas de RNA, passando pela defesa de protocolos de tratamento com medicamentos que se mostraram inócuos por estudos abrangentes, foi imensa a quantidade de desinformação que circulou pelos mais variados canais, desde os grupos de Whatsapp até as páginas de veículos de comunicação públicos e privados. Agora, diversos pesquisadores no campo do estudo da comunicação estão buscando mapear a atuação de diferentes veículos de mídia durante a emergência mundial de saúde. O objetivo é separar o joio do trigo, procurando identificar quem optou por transmitir mensagens cientificamente embasadas e quem, consciente ou inconscientemente, atuou como canal para desinformação e fake news.

Docente da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design da Unesp, campus de Bauru, Danilo Rothberg atua como coordenador no Brasil de um projeto internacional de pesquisa que procurou avaliar o papel desempenhado por veículos de mídia na disseminação de desinformação. “Durante a pandemia, a quantidade de desinformação que foi disseminada terminou por prejudicar o direito das pessoas a receberem informações corretas”, diz ele. “Era inevitável que os pesquisadores da área da comunicação pública buscassem investigar este fenômeno.”

Estudo mirou países com polarização política

A pesquisa envolveu estudiosos de cinco universidades que mapearam e analisaram a comunicação sobre temas acerca da pandemia em quatro países: o Brasil, os Estados Unidos, a Polônia e a Sérvia. O empreendimento foi financiado por meio da plataforma Transatlântica.  A seleção dos países seguiu alguns quesitos. Em comum, todos estavam sob o governo de lideranças políticas populistas entre os anos de 2020 e 2022, e as respectivas sociedades apresentavam expressiva polarização política (embora de intensidade diferente em cada um). Essa polarização influenciou o modo como os diferentes grupos consumiram informações sobre a pandemia de covid-19, seus efeitos e as medidas para contê-lo.

Os resultados preliminares do estudo foram divulgados em um seminário realizado na TV Câmara no dia 24 de agosto, intitulado “Seminário TV Câmara 25 anos: o futuro da televisão”.  Na apresentação feita na TV Câmara, Rothberg analisou a credibilidade do serviço público de mídia televisiva do Brasil durante o período da pandemia, e seu papel no combate à desinformação.

O termo desinformação é um conceito global que inclui mentiras, boatos e outros recursos empregados que resultam em manipulação e engano da opinião pública. A desinformação pode ocorrer de maneira espontânea, como produto de um déficit educacional da sociedade, que carece do conhecimento e da capacidade de análise necessários para interpretar criticamente as notícias que chegam continuamente. Mas também pode ser produzida intencionalmente para atender ao interesse de grupos específicos, geralmente relacionados a líderes e partidos políticos.

A pesquisa foi organizada em cinco etapas, de modo a cobrir desde o processo de gestão das notícias públicas até a percepção dos espectadores. A etapa inicial envolveu uma consulta a profissionais gestores da comunicação de instituições públicas de ciência e saúde sobre o processo de comunicação durante a pandemia em cada país. “Essa primeira etapa foi importante para extrair informações sobre como os gestores responsáveis lidaram com a comunicação durante a pandemia em seus respectivos países”, explica Rothberg.

A segunda etapa focou nos gestores de mídias públicas, com o objetivo de entender como o serviço público de mídia lidou com a comunicação durante a pandemia. No total, foram realizadas oitenta entrevistas durante as duas primeiras etapas, envolvendo, também, comunicadores de saúde e jornalistas.

O terceiro momento consistiu em uma análise documental. Foi coletada uma amostra de dez mil matérias, dos quatro países, que passaram por uma análise para caracterizar de que maneira a pandemia foi enquadrada no noticiário. Por fim, o passo seguinte foi realizar uma enquete. Entre novembro e dezembro de 2022, cinco mil pessoas, mil duzentas e cinquenta de cada país, responderam a um questionário que visava analisar as relações entre consumo de mídia e vulnerabilidade à desinformação durante a crise da saúde.

O questionário avaliava diferentes aspectos dos sujeitos entrevistados, incluindo preferências políticas, adesão às medidas sanitárias, uso de máscaras e respeito ao distanciamento social, entre outros. Também foram apresentadas aos respondentes nove afirmações sabidamente falsas sobre a pandemia de Covid-19 (veja o quadro abaixo), e os entrevistados tiveram que responder se concordavam ou discordavam delas. Na quinta e última etapa, buscou-se compreender como o quadro identificado nas fases anteriores se relacionava com a influência da Rússia e da China sobre a geopolítica do combate à Covid-19.

“Foi uma pesquisa sobre como a geopolítica global foi influenciada pela pandemia e a comunicação, considerando os pesos da China e da Rússia. Inclusive estudamos o papel da vacina produzida na China e a que foi produzida na Rússia. Esta última não chegou ao Brasil, mas contamos com os dados da Polônia e da Sérvia”, explica Rothberg.

Espectadores de telejornais diários cometem menos erros

Como esperado, o levantamento revelou que a televisão foi fonte central de notícias nos quatro países analisados. No Brasil e na Sérvia, o acesso diário foi de 44%; na Polônia, 48%; e nos Estados Unidos, 42%. Interessantemente, quanto mais tempo os espectadores dedicavam a consumir notícias pela televisão, menor propensão demonstravam para acreditar em notícias falsas. Segundo os dados da pesquisa, as pessoas que acessam majoritariamente notícias pela televisão têm uma redução de 9% na crença em desinformação, e as que confiam mais nas mídias jornalísticas passam a acreditar de 4% a 7% menos em desinformação.

Essa tendência se manteve na comparação ao consumo de redes sociais. No Brasil, pessoas que se identificaram como usuárias frequentes de redes sociais, mas que também acompanham programas de notícias, marcaram, em média, 3 respostas erradas, das nove apresentadas no questionário com informações falsas sobre a Covid-19 e vacinas. Em contrapartida, o número de respostas erradas sobe para 4,7 quando foram entrevistadas pessoas que acessam notícias diariamente pelas redes sociais, mas não acompanham o telejornal.

O estudo mostrou, no entanto, que a contribuição da TV pública nacional para o combate à desinformação foi menor do que em outros países (veja o quadro abaixo). Dados mostraram que os telespectadores que passavam mais tempo assistindo à TV Brasil cometeram mais erros, na análise da listagem com informações falsas do que os telespectadores que deram preferência ao noticiário das TVs comerciais.

Rothberg disse ter ficado surpreso. “Esperávamos que a TV pública tivesse um papel de combate à desinformação em todo o mundo. Isso ocorreu nos Estados Unidos, por exemplo. Lá, as pessoas que assistem à TV pública estão sujeitas a menos desinformação do que aquelas que assistem à Fox News, por exemplo. Mas no Brasil foi diferente”, diz.

Para o pesquisador, a constatação é um alerta de que a televisão pública também pode ser um veículo que dissemina desinformação, quando ela não for “verdadeiramente pública e livre do controle político”, como apresentado por Rothberg na TV Câmara. A pesquisa reforçou a importância de assegurar aos serviços públicos de mídia autonomia e independência dos gestores da administração federal para a escolha e a produção de conteúdo. Ainda mais no caso dos governos de cunho populista, um fenômeno que terminou por afetar drasticamente a comunicação durante a pandemia.  “A TV Câmara, como parte do serviço público de televisão, precisa de independência, profissionalismo e imparcialidade para desempenhar seu papel no combate à desinformação”, diz o pesquisador. 

Imagem acima: Deposit Photos