Desafio do uso sustentável da biodiversidade brasileira é tema de workshop em São Paulo

Preservação do patrimônio genético do país e de conhecimentos tradicionais associados norteia cadastro das pesquisas científicas no Ministério do Meio Ambiente e ações da pasta para transformar a biodiversidade em ativo para impulsionar a bioeconomia nacional.

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O Artigo 225 da Constituição Federal de 1988 indica que, para a manutenção de um “meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”, o poder público necessita, entre outros pontos, “preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do país”.

Desta diretriz da Carta Magna brasileira surgiram as iniciativas empreendidas neste século de regulamentar a biodiversidade do país de maneira a mapeá-la e posteriormente fiscalizar as entidades dedicadas a pesquisa e manipulação de material genético, em cumprimento a uma determinação constitucional regulamentada inicialmente por medida provisória, em 2001, e depois pela chamada “Lei da Biodiversidade”, promulgada em 2015.

Quase uma década após o lançamento do arcabouço legal destinado à preservação da biodiversidade do Brasil, o país considera ter amadurecido o assunto na comunidade científica a ponto de vislumbrar condições para planejar a repartição dos benefícios da preservação do patrimônio genético e dos conhecimentos tradicionais associados do país, estratégia prevista na legislação em vigor e norteada pelo uso sustentável da biodiversidade.

“Acho que, durante um tempo, a sociedade de modo geral patinou tentando se adaptar a um novo modelo regulatório”, admitiu Maira Smith, coordenadora geral do Departamento de Patrimônio Genético da Secretaria Nacional de Bioeconomia, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. “Agora estamos alcançando um nível de maturidade para começar a realmente efetivar a repartição de benefícios, principalmente a repartição de benefícios monetária, por meio do Fundo Nacional de Repartição de Benefícios, para implementar o programa nacional de repartição de benefícios previsto na legislação”, afirmou.

Maira Smith foi uma das palestrantes convidadas do workshop “Lei da Biodiversidade e o Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado”, realizado no último dia 9 no prédio da Unesp no Ipiranga, zona sul da capital paulista. O evento foi uma iniciativa da Pró-reitoria de Pesquisa e da Comissão Permanente de Gestão do Patrimônio Genético (CPGPG), promovida em parceria com Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, instância federal que abriga o Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado (SisGen).

Auditório da Unesp no bairro do Ipiranga, São Paulo, durante o workshop

Nas palavras de gestores do próprio ministério, a Unesp é uma das instituições de pesquisa do Brasil que melhor desenvolveu a tarefa de cadastro no sistema eletrônico dos estudos científicos que estão no escopo da lei. Em um trabalho conjunto entre as pró-reitorias de pesquisa e de pós-graduação, com o apoio do gabinete da Reitoria, a Universidade percorreu todas as Unidades, conscientizou cientistas e cadastrou mais de 700 pesquisas no SisGen.

“É uma plataforma operacional muito simples (o SisGen), semelhante à atualização de um currículo, em que o pesquisador terá registrado as etapas de seu trabalho com determinada amostra, desde a pesquisa básica até o aspecto da exploração comercial, da inovação tecnológica, da repartição dos benefícios, o acompanhamento da remessa de amostras ao exterior”, disse o presidente da Comissão Permanente de Gestão do Patrimônio Genético da Unesp, professor Jackson Antônio Marcondes de Souza, que enxerga neste sistema uma potencial vacina para prevenir que a produção nacional de ciência e tecnologia seja alvo de biopirataria.

Após o esforço inicial feito pela administração central da Unesp para adequar a instituição à demanda legal, agora cabe aos pesquisadores realizar tal cadastro da manipulação de material genético, uma tarefa que é de fluxo contínuo. “Passamos da primeira fase, que foi esta etapa do mapeamento, já finalizada. A partir de agora, se você tiver um novo experimento para ser realizado (que se enquadre nos parâmetros legais), precisa fazer o cadastro”, disse o pró-reitor de pesquisa da Unesp, professor Edson Cocchieri Botelho. “Este mapeamento permite termos um banco de dados robusto das pesquisas que estão sendo feitas. É algo muito rico para a Universidade”, disse o pró-reitor de pesquisa.

Para a professora Célia Regina Nogueira de Camargo, vice-presidente da Comissão Permanente de Gestão do Patrimônio Genético da Unesp, a conscientização da comunidade universitária quanto à importância do cadastramento no SisGen foi apenas o primeiro passo. Segundo a docente, o avanço na aplicação da Lei da Biodiversidade deve estimular inovações tecnológicas que poderão contribuir para o uso sustentável da biodiversidade brasileira. Pela legislação em vigor, que abre a possibilidade de repartição monetária de benefícios advindos desses trabalhos de pesquisa cadastrados no sistema, 1% da receita líquida do acesso ao patrimônio genético pode ser revertido para o Fundo Nacional de Repartição de Benefícios (FNRB). O saldo atual do FNRB gira em torno de R$ 7 milhões.

“As nossas unidades e os nossos pesquisadores já entenderam essa necessidade (de cadastro das pesquisas). Agora, o segundo passo vai no sentido da inovação tecnológica, de patentes”, disse a docente.

No workshop, o diretor da Agência Unesp de Inovação (Auin), professor Saulo Guerra, comentou a importância do cadastro das pesquisas no SisGen e citou exemplos de pesquisas com potencial para resultar em benefícios a serem compartilhados em favor da biodiversidade brasileira, como o caso de uma docente que desenvolveu o método e a formulação de um fitocosmético em creme gel antioxidante e fotoprotetor com extrato de Pequi, obtido do resíduo da polpa. A pesquisa gerou uma patente licenciada este ano para uma empresa de extratos cosméticos. “O patrimônio genético gera patente, inovação e pesquisa, que vai gerar de novo inovação. Esse assunto é tão caro para a Agência Unesp de Inovação que toda a área de propriedade intelectual está aqui (no workshop)”, disse o diretor da Auin.

Conhecimento tradicional


A Lei da Biodiversidade deixa evidente que o acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado a ele será efetuado sem prejuízo dos direitos de propriedade material ou imaterial que incidam sobre o patrimônio genético acessado. No conhecimento tradicional associado, abrigam-se por exemplo informações ou práticas de populações indígenas, comunidades quilombolas ou agricultores tradicionais.

Esse é o ponto que costuma gerar mais dúvidas sobre o arcabouço legal em vigor. Por outro lado, é também a frente mais ampla para engajamento da comunidade científica, na qual a conservação da diversidade biológica e a integridade do patrimônio genético do país dialogam com os pesquisadores das ciências humanas. No workshop, espelhando a formação plural da Comissão Permanente de Gestão de Patrimônio Genético, estavam presentes representantes da Pró-reitoria de Extensão Universitária e Cultura da Unesp, que mantém múltiplas ações relacionadas ao que a legislação chama de “conhecimento tradicional associado”.

“Na comunidade universitária, o entendimento (da legislação) está bem claro em relação às pesquisas. Agora, na área cultural, imagine que o pesquisador visite um povo quilombola, vê uma dança e quer fazer uma peça de teatro. Ele precisa entender que aquilo é um patrimônio daquele povo. Por isso trouxemos especialistas para fazer essa conversa com a comunidade no workshop”, disse o professor Celso Luis Marino, assessor da Pró-reitoria de Pesquisa e que também integra a Comissão Permanente de Gestão de Patrimônio Genético da Universidade. “Esta comissão nomeada pelo reitor foi criada de uma forma transversal porque o patrimônio genético permeia todas essas áreas. Esse é um fator inovador da Unesp: uma comissão permanente e transversal, que atende todas as dimensões da atividade da Universidade”, disse.

Um dos presentes ao evento do último dia 9, o coordenador da Coordenadoria de Ação Cultural da Unesp, professor Paulo Celso Moura, acredita que a Lei da Biodiversidade traz uma “mudança de paradigma” na relação com os povos originários e as comunidades tradicionais e os conhecimentos produzidos e guardados por estas populações pode, inclusive, estimular novas pesquisas no âmbito das ciências humanas.

“Se considerarmos a riqueza cultural brasileira, a enorme diversidade cultural se manifesta também no âmbito dos conhecimentos tradicionais associados (ao patrimônio genético). Os modos de manejo, os conhecimentos sobre determinadas plantas, determinados elementos da natureza. Penso que uma das principais decorrências disso é o fato dessas comunidades deixarem de serem vistas como objetos de pesquisa e passarem a serem vistas como sujeitos da pesquisa”, afirma o docente. “Essas pessoas devem ser reconhecidas como detentoras e guardiães, e não apenas informantes, destes conhecimentos organizados e sistematizados ao longo de séculos”, diz Paulo Celso Moura.

O conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético e a repartição dos benefícios prevista em lei ainda geram dúvidas na comunidade científica, de acordo com Maira Smith, coordenadora geral do Departamento de Patrimônio Genético. Para ela, embora a legislação brasileira seja uma das mais avançadas entre os países signatários da Convenção sobre Diversidade Biológica pactuada na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada no Rio de Janeiro em 1992, há ainda desafios a serem superados, como a formação de uma rede de instituições de pesquisa no Brasil para associação a organizações estrangeiras que busquem o acesso ao patrimônio genético do país –o acesso a estrangeiros é vedado.

Leia a seguir entrevista de Maira Smith ao Jornal da Unesp sobre a Lei da Biodiversidade.

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Jornal da Unesp: Você vê as questões em torno da Lei da Biodiversidade no Brasil pacificadas na comunidade científica?

Maira Smith: Há várias questões que ainda suscitam dúvidas, como a questão da associação com estrangeiros. A legislação é bastante complexa, envolve múltiplos interesses, diferentes direitos, de diferentes grupos sociais. Então não é um processo simples, que esteja totalmente simplificado. Se compararmos com a legislação anterior, com a Medida Provisória 2186 (de 2001), essa legislação avançou muito. Em comparação com a legislação de outros países que fazem parte da Convenção sobre Diversidade Biológica, a legislação brasileira é bastante avançada. Agora há vários desafios e questões operacionais a serem resolvidos.

Jornal da Unesp: Pelos números de pesquisas cadastradas no SisGen, podemos dizer que aumentou o engajamento dos pesquisadores na Lei da Biodiversidade?

Maira Smith: Acredito que sim, mas a Unesp está muito acima da média em termos de organização para isso. A comissão (da Universidade) está de parabéns nesse processo. Criaram uma iniciativa inovadora, poucas universidades ou instituições de pesquisa fizeram isso.

Logo que foi lançada a nova legislação (2015), houve muita resistência por parte do setor acadêmico, principalmente porque é uma legislação complicada, complexa. Havia também muita desinformação sobre os termos e as obrigações previstas na legislação. Como o Sisgen é um sistema declaratório que está sendo construído e aprimorado, é como trocar o pneu com o carro andando. À medida que os usuários utilizam o sistema e vão detectando problemas, tentamos aprimorar o sistema, a partir de sugestões e recomendações dos usuários. Temos um maior engajamento, uma maior sensibilização por parte da comunidade científica no cumprimento da legislação, mas ainda existe um setor grande, principalmente nas ciências humanas, que trabalha com acesso ao conhecimento tradicional associado que muitas vezes não se vê dentro desta legislação. Então, é importante nós, do Ministério do Meio Ambiente e do Sisgen, investirmos, em parceria com a comunidade científica, na sensibilização desses setores que ainda não se enxergam dentro do escopo da legislação.

Jornal da Unesp: Quais são as perspectivas de repartição de benefícios dentro do ecossistema concebido pela Lei da Biodiversidade? Como fazer essa roda girar?

Maira Smith: Esse é o desafio. Acho que, durante um tempo, a sociedade de modo geral patinou tentando se adaptar a um novo modelo regulatório, que é este modelo declaratório. Agora estamos alcançando um nível de maturidade para começar a realmente efetivar a repartição de benefícios, principalmente a repartição de benefícios monetária, por meio do Fundo Nacional de Repartição de Benefícios, para implementar o programa nacional de repartição de benefícios previsto na legislação para que assim se gere um círculo virtuoso. E o dinheiro possa ser reinvestido em conservação da biodiversidade, em uso sustentável da biodiversidade, em valorização dos conhecimentos tradicionais associados e no reconhecimento dos povos indígenas, povos de comunidade tradicionais e agricultores familiares como detentores de direito sobre os conhecimentos tradicionais associados.

Quanto mais essa iniciativa for valorizada, mais alimentará isso que estamos chamando de bioeconomia: uma economia de baixo carbono gerada a partir da nossa biodiversidade, que é um ativo muito grande que temos. Então, investir em pesquisa e inovação, usar nossa biodiversidade e aumentar a conservação e valorização dessa biodiversidade: esse é o círculo virtuoso que queremos alcançar.

Assista a seguir à gravação do workshop.

Imagem acima: Maira Smith fala sobre a Lei da Biodiversidade. ACI