Pesquisa que combina conhecimento científico e saber de comunidades tradicionais mostra presença de seis espécies de tubarões antes dadas como desaparecidas no litoral paulista

Nova metodologia resultou em dados mais acurados do que os obtidos pelos levantamentos convencionais oficiais. Sistema já está sendo adotado em Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

No litoral sul de São Paulo, uma nova metodologia de pesquisa, que combina o saber científico e o conhecimento dos integrantes da comunidade pesqueira local, foi capaz de tornar mais acurado e mais detalhado o monitoramento das espécies de tubarões e raias que são capturadas na região. A metodologia foi produto da tese de doutorado do pesquisador Paulo Roberto Santos, sob orientação de Domingos Garrone Neto, docente do câmpus de Registro, e seu emprego já resultou na identificação da presença de pelo menos seis espécies até então tidas como desaparecidas desta porção do litoral paulista.

A última vez que o Brasil divulgou informações oficiais sobre os recursos pesqueiros em nível nacional foi em 2011. Desde então, as ações para acompanhamento da pesca têm ocorrido de forma desconectada, em geral na forma de iniciativas vinculadas a obrigações estipuladas a empresas por algum processo de licenciamento ambiental. Segundo Santos, que cursa o Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade de Ambientes Costeiros, no câmpus de São Vicente da Unesp, mesmo essas poucas iniciativas existentes, além de isoladas, resultam em boletins de pesca com dados pobres e de baixa resolução taxonômica sobre o que é pescado. “Os boletins não trazem qualquer informação importante ou nova para uma gestão adequada da pesca, tal como a quantidade que é descarregada ao longo do ano. Outro problema é que os dados são muito agrupados e às vezes sem padronização”, diz.

Embora haja essa carência de dados oficiais, diversos trabalhos na área da ciência pesqueira vêm apontando quedas nos estoques pesqueiros. O cenário é ainda mais delicado para um grupo de peixes conhecidos como elasmobrânquios, formado por tubarões (frequentemente agrupados sob o nome genérico de “cação”) e raias. Esses animais, embora ocupem o topo da cadeia alimentar, são bastante suscetíveis a declínio populacional, uma vez que possuem, em geral, baixas taxas de crescimento, idade avançada para reprodução e reduzido número de filhotes.

Monitoramento participativo

Diante desse cenário, Santos buscou se aproximar dos pescadores artesanais e industriais de comunidades de Iguape, Cananeia e Ilha Comprida, além de comerciantes e profissionais das comunidades pesqueiras desses locais. O objetivo era recorrer ao conhecimento que eles possuem, criando um sistema de monitoramento pesqueiro participativo. Por meio da iniciativa batizada de Projeto Elasmocategorias, os participantes fornecem informações e descrições dos tubarões e raias pescados na região, na forma de dados como a quantidade e o número de indivíduos capturados por espécie, as medidas do corpo e a área onde ocorreu a pesca. Entre janeiro de 2019 e dezembro de 2021, foram monitoradas, segundo os parâmetros da metodologia, 1.061 viagens de pesca artesanal, amadora e industrial. No total, foram obtidos os registros de cerca de 48 mil quilos de elasmobrânquios, compreendendo 28 espécies de tubarões e 27 espécies de raias.

 Para avaliar a qualidade dos dados pesqueiros, foi comparado o Índice de Resolução Taxonômica (TRI) da metodologia convencional e do monitoramento pesqueiro participativo [ver infográfico abaixo]. A avaliação mostrou que a metodologia de monitoramento pesqueiro participativo mostrou-se capaz de produzir dados mais adequados para a gestão pesqueira do que os levantamentos feitos pelo sistema de monitoramento convencional, cuja produção é responsabilidade do Instituto de Pesca, órgão da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo.

Antes que se iniciasse o monitoramento do pescado, contudo, foi necessário realizar um levantamento das espécies de tubarões e raias que habitam essa região do litoral, uma vez que os dados existentes não traziam o nível necessário de detalhamento. Uma estratégia sugerida para a recuperação de dados sobre diversidade de espécies é a utilização do Conhecimento Ecológico Local (CEL), um conceito que pode ser definido como o conhecimento do meio ambiente que determinado grupo acumula a respeito do espaço em que vivem e dos recursos que exploram para sua sobrevivência.

Conhecimento de gerações

Santos explica que esta região do litoral sul abriga uma tradição pesqueira antiga. Diversas gerações de famílias caiçaras e quilombolas possuem integrantes envolvidos de alguma forma com a pesca, seja ela recreativa, artesanal ou, mais recentemente, industrial. “Nesta região existem comunidades fechadas formadas por muitos familiares. Em muitas delas, os filhos são pescadores, assim como foram seus pais e seus avós. Então, esse conhecimento foi gerado e compartilhado de uma forma muito próxima, conversando diariamente sobre a pesca e dando os mesmos nomes para as mesmas espécies de peixes”, detalha o pesquisador.

Ainda que essas informações sobre as espécies que habitam a região tenham sido compartilhadas por décadas entre os membros da comunidade, era necessário confirmar se a descrição dos pescadores correspondia às descrições encontradas na literatura científica. Para isso, Santos selecionou, a partir de referências obtidas na própria comunidade, cerca de cem pescadores para avaliar quanto a sua acurácia na descrição das espécies e sua capacidade de reportar volumes de peixes com precisão. “A ideia, afinal, era produzir ciência. Então foi preciso ser bastante rigoroso nesses testes”, explica o pesquisador. “Nos testes de identificação escolhemos desde algumas espécies que são comuns na região, e de fácil reconhecimento, até outras que são bem diferentes, como uma raia de água doce ou uma espécie de tubarão típica da Austrália.”

Ao final do processo seletivo, 56 pescadores das áreas de pesca artesanal e pesca industrial foram “aprovados” e passaram por um treinamento, que incluiu o uso de cartilhas e outros materiais de apoio, financiados com o apoio do programa Bolsas FUNBio e do Instituto Linha D’Água, uma ONG presente na região que apoia iniciativas voltadas à sociobiodiversidade costeira e marinha. O objetivo do treino era alinhar os procedimentos para reportar a espécie, tendo em vista as características que os pescadores já observavam na identificação dos animais e as informações que estão descritas na literatura científica. “Alguns pescadores receberam orientações sobre o que observar, em especial naquelas espécies que não eram pescadas com frequência. Assim, utilizamos o conhecimento deles agregado ao nosso”, diz Santos.

Raia-manteiga capturada pelos pescadores. Coleção da universidade contém animais de 27 espécies oriundos da parceria com os pescadores  (Crédito: Paulo Santos/Unesp). 

Inicialmente, o pesquisador conduzia pessoalmente o contato com os pesquisadores, mas logo incorporou a ferramenta do Whatsapp. O aplicativo de mensagem instantânea é a principal ferramenta que os pescadores usam para registro fotográfico e troca de informações sobre peixes que não conhecem. “Qualquer coisa estranha que acontece no mar vai para o Whatsapp”, diz Santos. “Explorei bastante o fato de eles terem o hábito de fotografarem esses grandes troféus. Até hoje estou em uns três ou quatro grupos de pescadores.”

À medida que a comunidade foi se envolvendo com o monitoramento pesqueiro integrado e as conversas entre pesquisadores e pescadores se aprofundaram, surgiram relatos de espécies raras capturadas na pesca. Um dos resultados dessa parceria foi a redescoberta de seis espécies tidas como já ausentes da região, devido ao excesso de pesca.

O tubarão-lixa reapareceu

Santos diz que, para embasar as conversas com os pescadores, mantinha sempre à mão uma lista de espécies, elaborada a partir de uma série de artigos da literatura científica com tubarões e raias da região. Alguns desses artigos foram escritos por um biólogo letão chamado Victor Sedowsky, pesquisador pioneiro do Instituto Oceanográfico da USP.

Entre os anos de 1952 e 1978, ele exerceu o cargo de Chefe da Base de Pesquisas de Cananeia, e produziu diversos estudos sobre tubarões e raias nos quais registrou pela primeira vez a presença de várias espécies. Algumas são tidas como extintas ou praticamente extintas na região. “Levei informações sobre essas espécies aos pescadores. Vários contribuíram trazendo dados e relatos robustos sobre elas, obtidos em anos passados e até mesmo atualmente”, diz Santos.

Uma das espécies dadas como extinta no litoral sul que foi observada novamente foi o tubarão-lixa, cujo último registro remontava a 1967. O fato foi publicado na forma de artigo na revista Fish Biology, no início do ano. No artigo, o pesquisador explica que as informações recuperadas com os pescadores acrescentaram outros 30 registros da espécie, incluindo dois feitos mais recentemente, em fevereiro e maio de 2022. “Não era nossa intenção no início do projeto, mas foram informações importantes que apareceram ao longo do processo de diálogo com os pescadores.”

Na avaliação do pesquisador, o fato de a união do conhecimento científico com o conhecimento ecológico local ter produzido dados mais completos e adequados para entender o estado do estoque pesqueiro na região é um resultado importante, assim como a “redescoberta” das espécies de tubarão e raia. Mas ele avalia que um possível legado importante que seu trabalho pode deixar é a possibilidade de encontrar outras formas para conduzir o monitoramento da pesca.

Paulo Santos, ao lado da também pesquisadora Kaliandra Klafke e da comerciante Ana Alves, registram um tubarão-tigre desembarcado no mercado público de Cananeia.  (Crédito: Paulo Santos/Unesp)

Mesmo terminada a tese, o pesquisador continua recebendo os relatos dos pescadores e viu a metodologia se estender para Santa Catarina, por meio do Projeto Tubarão, e para Rio Grande do Sul, ambos por intermédio de amigos também pesquisadores.  “Por ter sido muito restrito, e realizado durante um período curto de tempo, o levantamento que produzimos na tese não serve de muita coisa para uma boa gestão pesqueira. É preciso que ele seja desenvolvido em maior escala, tanto espacial quanto temporal. O que esse resultado mostra é que existe a possibilidade de fazer coisas melhores. Não sei se será a melhor metodologia para cada região, mas acho que nós mostramos o caminho”, diz.

Pesquisador da Unesp acompanha pescador recolhendo a rede após pescaria no litoral sul de São Paulo (Crédito: Paulo Santos/Unesp)