“É preciso alterar o artigo 142 e desmilitarizar o ministério da Defesa”

Especialista em estudos sobre defesa, Alexandre Fuccille critica opção do governo Lula por não implantar um controle civil efetivo sobre militares e analisa os diferentes papéis desempenhados por eles desde a redemocratização, que incluíram atuações na segurança pública, operações de garantia da lei e da ordem e participação em missões da ONU. “As forças armadas não devem ser empregadas internamente, exceto em situações-limite”, diz.

Um dos temas que tem fomentado discussões no Congresso nas últimas semanas é a necessidade de reformular as relações entre o Estado brasileiro e suas forças armadas. Essa discussão se faz urgente após quatro anos de uma gestão onde militares das três forças, mas principalmente do exército, se posicionaram nas mais diversas ramificações da administração pública, e também em função da atuação, no mínimo controversa, do exército  por ocasião dos ataques às sedes dos poderes no dia 8/1, já durante o mandato do presidente Lula. Entre as iniciativas para debater novos caminhos estão a realização de um seminário intitulado “Forças armadas e política: limites constitucionais”, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara em meados de agosto, e a discussão sobre uma Proposta de Emenda Constitucional que estabeleça limites ao engajamento de militares nos cargos políticos.

Estudioso das forças armadas brasileiras desde a graduação, o cientista político Alexandre Fuccille é coordenador do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e docente da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, câmpus de Araraquara. Fuccille trabalhou na Secretaria de Política, Estratégia e Assuntos Internacionais no Ministério da Defesa durante o primeiro mandato do presidente Lula, e foi presidente da Associação Brasileira de Estudos da Defesa. Na entrevista a seguir ao Jornal da Unesp, Fuccille critica o uso frequente das forças armadas em território brasileiro, seja em missões de segurança ou operações de garantia da lei e da ordem.  “As forças armadas não devem ser empregadas internamente, exceto em situações-limite, como colapso de polícias”, diz. E vê no Ministério da Defesa um elemento essencial para mudar o status dos militares com o poder civil. “Atualmente, o Ministro da Defesa consolida as demandas que vêm das três forças e as entrega ao presidente da República, como se fosse um mero despachante e não uma figura política de primeira grandeza. Na verdade, deveria ser o inverso: o ministro definindo as prioridades de cada força a partir do debate com o presidente da República. O processo, como acontece hoje, é absolutamente equivocado”, avalia.

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Uma pesquisa realizada pelo Instituto Quest e divulgada em agosto revelou uma expressiva queda de confiança nas forças armadas  por parte dos brasileiros. De dezembro passado até o mês de agosto, o percentual entre os que dizem confiar bastante caiu de 43% para 33%. Já os que confiam pouco, ou não confiam nada, passaram de 54% para 64%. O que está acontecendo? 

Alexandre Fuccille: De fato, isso era algo que os militares gostavam muito de apontar: nessas  pesquisas sobre credibilidade das instituições, as forças armadas sempre apareciam nas primeiras posições. E nas pesquisas realizadas ao longo de 2023 houve uma queda bastante expressiva com respeito a sua credibilidade. Atribuo isso, basicamente, a dois fatores. 

Um dos fatores pode ser explicado por uma sensação de desencantamento, por termos visto militares participando de atividades ilícitas, e que no limite atentavam até contra a estabilidade do regime democrático. Muitas pessoas de perfil democrata e legalista se desiludiram com a constatação de que a política entrou nos quartéis, e que as forças armadas  estão extremamente politizadas. Talvez o ápice desse processo tenham sido os eventos de 8/1 mas episódios mais recentes têm mostrado, inclusive o envolvimento de pessoas como o coronel Mauro Cid, ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro, que esse processo é mais amplo e não se cinge a figuras isoladas do mundo castrense. 

Então, por um lado há desilusão por parte da cidadania, que percebe que os militares estavam a serviço do governo, e não do Estado, como deve ser. O outro fator que identifico está ligado a uma ala mais conservadora da população, ou mais bolsonarista, se quisermos chamar assim. Para essa ala, foi uma desilusão o fato de que, oficialmente, os militares não embarcaram em alguma tentativa de golpe ou de impedimento da posse do presidente Lula. Foi possível acompanhar essa insatisfação até pela imprensa. Os  radicais mais extremados usaram palavras de todo tipo, inclusive de baixo calão, para criticar os militares por não terem impedido a posse do presidente Lula, e nem intervindo  pra derrubar o governo no dia 8/1. Então, digamos que as forças armadas estão apanhando dos dois lados. 

Durante o período de transição para o novo governo, chamou atenção o fato de que, embora tenham sido constituídos mais de 30 grupos de trabalho, envolvendo mais de mil colaboradores, no esforço de desenhar propostas de políticas públicas para a nova administração, o GT para defesa sequer chegou a ser constituído de forma funcional. Será que falta, em nosso país, pensamento crítico que nos permita estabelecer parâmetros e objetivos para os militares   em nossa democracia?

Alexandre Fuccille: Na verdade, muito pelo contrário. Essa área ganhou uma musculatura inédita no Brasil. Desde o início deste século, foi criada a ABED (Associação Brasileira de Estudos de Defesa) da qual, inclusive, tive o prazer de ser presidente, e que reúne centenas de estudiosos de defesa no Brasil, não falta massa crítica. Inclusive, houve, digamos assim, sondagens quanto a eventuais nomes que poderiam constituir este GT da Defesa. O problema, na verdade, foi um bloqueio pelo outro lado [os militares]. O governo eleito avaliou então que não seria uma boa ideia constituir esse GT. Ao  meu ver, isso foi um equívoco. Não obstante, vários grupos apresentaram propostas para esse segmento. O próprio IPEA, que é um órgão do governo federal, lançou um conjunto de recomendações a serem adotadas no segmento de defesa nacional. E várias outras instituições também divulgaram recomendações e sugestões com foco na defesa nacional.

Infelizmente, o governo atual tem feito ouvidos moucos para essas contribuições. Parece partir de uma leitura de que enfrenta demasiados problemas em outras áreas, e tem que lidar com o legado de um Estado que passou por um  grande desmonte em várias de suas funções, seja na educação, na saúde, na área ambiental… E comprar mais uma briga com as forças armadas não seria desejável. 

Essa postura vai muito na linha que o presidente Lula adotou durante seus mandatos entre 2003 a 2010, de buscar uma acomodação com e evitar conflitos. Se olharmos para o novo Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), apresentado em agosto, vamos constatar que o PAC reserva mais recursos para gastos em Defesa do que destina para ciência, tecnologia, educação, ou até mesmo para a saúde. Eu sou estudioso da área, sei da importância desse tema. Mas minha avaliação é de que há questões mais urgentes, e que mereceriam mais recursos, como essas áreas que eu citei. 

O atual governo optou por não confrontar os militares, e por não implementar efetivamente o controle civil democrático sobre eles, que é o que ocorre nas democracias avançadas. Nelas, as forças armadas nada mais são do que um esteio do Estado, e atuam onde o Estado deseja que elas atuem. E, sobretudo, atuam para fora das fronteiras. Isso, aliás, é o contrário do que vemos em nossa história. Nosso exército foi constituído basicamente com uma força de repressão interna, e não lutando contra invasores ou lutando contra eventuais outras ameaças que vinham do exterior. 

Ao longo do século 21, o Brasil não se envolveu em conflitos externos, e vimos as forças armadas serem utilizadas tanto como instrumento de soft power, por meio da participação em missões internacionais, quanto em missões ligadas à segurança pública. Como avalia o modo como o Brasil tem pensado e empregado nossos efetivos militares?

Alexandre Fuccille: Em linhas gerais, acho que o Brasil tem empregado mal. Veja outros países que recentemente passaram por experiências parecidas, com regimes autoritários e ditatoriais. Na Argentina, por exemplo, é vedada constitucionalmente  a possibilidade de atuação interna das forças armadas. A defesa é feita “para fora”. Não se emprega um militar armado com fuzil para enfrentar um concidadão. 

E, no entanto, infelizmente desde o governo FHC os militares foram crescentemente envolvidos nas chamadas missões de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), boa parte delas em missões de segurança pública. As forças armadas existem como último recurso do Estado, então faz sentido que sejam empregadas quando a capacidade policial foi ultrapassada e não de forma rotineira. Digamos, por exemplo, que as polícias militares ou civis percam temporariamente sua capacidade de atuação. Deve-se deixar que o Estado se dissolva, seja ele Federal ou Estadual? Não. É justamente nessas situações-limite que elas podem ser empregadas. Mas não foi nada disso o que ocorreu. Nós assistimos à banalização do emprego dos militares no front interno. E, novamente, os governos federais do PT foram prolíficos nesse tipo de aplicação. Isso culminou na experiência das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro. Ali os militares foram usados para fazer uma espécie de limpeza preliminar nos morros, para que a polícia viesse depois. Na prática, isso trouxe poucos resultados: houve apenas um ou outro criminoso preso, e vários problemas de violação de direitos humanos. Paradoxalmente, o governo Bolsonaro recorreu poucas vezes ao expediente da GLO, em relação a governos anteriores, talvez porque alguns milhares estivessem bem acomodados em cargos no Governo Federal. 

Já a participação em missões de paz requer uma análise mais detalhada. Historicamente, essa participação era vista pelos pesquisadores como uma oportunidade importante para deslocar os nossos militares deste front interno e seu emprego ocorrer em consonância com a política externa do país e os objetivos almejados por esta. Olhávamos muito para a experiência vivida por outros países da região, como o Uruguai, que buscavam empregar seus militares fora de suas fronteiras. Esse foi o objetivo da MINUSTAH (Missão das Nações  Unidas para a Estabilização do Haiti). Na época, eu trabalhava na Secretaria de Política, Estratégia e Assuntos Internacionais no Ministério da Defesa e colaborei com a montagem da operação, que teve início em 2004, e posso assegurar que esse foi o intuito. 

A ideia era usar a missão para mostrar ao mundo que tínhamos forças armadas bem preparadas, adestradas e equipadas. Não havia nenhuma situação onde uma ação nestes moldes fosse necessária aqui, na América do Sul. Mas, na América Central havia a crise do Haiti, que era um problema tremendo. As tropas francesas estavam lá anteriormente e enfrentavam uma grande oposição – é importante lembrar que o Haiti foi uma colônia francesa no passado. E outro país que historicamente interveio várias vezes no Haiti, e que despertava forte oposição junto à população, foram os Estados Unidos. Interessava tanto aos Estados Unidos quanto à França que alguém assumisse esta missão. 

O Brasil enxergou ali uma oportunidade, que inclusive vinha ao encontro do  pleito brasileiro de passar a integrar o quadro dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU numa eventual reconfiguração que não ocorreu até hoje. Seria uma forma de mostrar que o país tinha responsabilidade com a manutenção da ordem internacional, e, ao mesmo tempo, mostrar justamente como nós somos capazes de atuar, digamos. E a MINUSTAH acabou sendo um ponto de inflexão. 

Na primeira década do século, a imprensa repetia com frequência que as forças armadas brasileiras haviam ido ao Haiti para aprender a atuar nos morros do Rio de Janeiro. Não é verdade, não era essa a intenção. Mas, na prática, isso terminou acontecendo. Se analisarmos o que ocorreu no Haiti, a atuação brasileira lá não deixou de ser um grande teatro de operações, um grande exercício prático de como atuar em segurança pública. Era muito mais uma questão de agir como força de imposição da paz do que força de manutenção da paz. E todos os comandantes da MINUSTAH tiveram protagonismo no governo Bolsonaro. Nomes como o dos generais Santos Cruz, Heleno e Ramos foram ministros, e vários outros que exerceram comandos lá no Haiti tiveram atuação destacada de 2019 a 2022. 

Eu acho que os civis não foram felizes em se valer desse expediente de empregar as forças armadas em operações de paz para gerar algo positivo. Mas não se deve jogar fora a criança junto com a água suja do banho. Não acho que isso signifique que o Brasil não deva participar de operações de paz. Mas acho que isso deve ocorrer segundo outros moldes,  com mais civis envolvidos e uma direção política civil clara. Isso seria bastante importante para ajudar no preparo para defesa nacional, em um momento em que vemos a degradação das relações jurídicas entre os Estados no sistema internacional e o recrudescimento das questões de força. Do contrário, a gente continua tendo as forças armadas como elas foram desde sempre, isto é, focadas na contenção interna. 

A própria República já nasceu de um golpe militar e, desde então, as intervenções militares foram constantes. Mas já no período monárquico não era muito diferente. O Duque de Caxias de fato pacificou as várias rebeliões que ocorreram durante o período regencial, mas impondo aquela paz dos cemitérios. Então, é assim que, infelizmente, tem atuado o Exército Brasileiro. Exceto pela Guerra do Paraguai, e pela participação da FEB durante a Segunda Guerra Mundial, o que temos historicamente são as forças armadas, e principalmente o exército, atuando como uma espécie de poder moderador, tentando regular a vida política e social do país. Não é assim que deve ser e não é assim que a gente vai construir uma grande e vigorosa democracia. 

Acho que forças armadas não devem ser empregadas internamente, seja para GLO ou em missões de segurança pública. Elas devem ser pensadas para servir à defesa nacional e, eventualmente, serem empregadas no exterior em operações de paz, sempre à luz de mandatos da ONU. Mas não significa um cheque em branco. Esse, infelizmente, foi o caso da MINUSTAH, em que tudo foi deixado a cargo dos militares, e essa se mostrou uma decisão equivocada.  É importante que haja designação dos militares, mas sob uma forte e presente supervisão civil. 

Quais mudanças poderiam ser implementadas para construir uma relação mais saudável entre as forças armadas e a sociedade brasileira?

Alexandre Fuccille: Acho que é factível a supressão da parte do artigo 142 que confere às forças armadas a responsabilidade pela garantia da lei da ordem. Lei e ordem são conceitos absolutamente fluidos, o que é a ordem para um não é a ordem para outro. Esse artigo implica que os militares podem  ser  mobilizados em defesa de um governo. E não em defesa do Estado, que é o que deveria ser. 

É preciso um amadurecimento do executivo e do legislativo na fiscalização e no emprego das forças armadas. E que fosse vedada sua atuação interna, exceto em situações-limite, como nos casos de greves de policiais militares e corpos de bombeiros militares, quando o país pode literalmente pegar fogo. Exceto nesses casos, não deveria haver emprego interno. 

Outro aspecto importante é assegurar que o  Ministério da Defesa seja desmilitarizado. O nosso surgiu tardiamente, em junho de 1999, de certa forma já para atender aos requisitos esperados para que o Brasil pleiteasse uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU mas não foi pensado na direção de efetivar a direção política civil sobre o conjunto da vida militar. À época, nem se pensou em estabelecer em legislação que o titular do ministério não poderia ser militar porque era óbvio que ele estava sendo criado para afastar os militares da cadeia decisória, mostrar que havia um processo de “civilinização” em curso. Porém, em junho de 2018, o presidente Temer nomeou um militar como ministro, e ao longo do governo Bolsonaro outros militares ocuparam essa função. Isso é um imenso retrocesso.  Como comentei anteriormente, tive a oportunidade de trabalhar no Ministério da Defesa durante dois anos e pouco, e os civis em cargo de direção já eram pouquísimos. Hoje o ministério está bem mais militarizado do que quando trabalhei lá, toda estrutura é absolutamente militarizada. Precisamos robustecer o Ministério da Defesa. Isso passa, por exemplo, pela criação da carreira de analista civil de defesa.  

E o que o Ministério da Defesa fez, historicamente, nesses mais de vinte anos de existência? Ele consolida as demandas que vêm das três forças e as entrega ao presidente da República. O processo deveria ser o inverso: o ministro da Defesa define quais são as prioridades que cada força deve receber, a partir do debate com o presidente da República. Hoje, cada força define suas prioridades e as encaminha ao ministro da Defesa, que as consolida e repassa ao presidente da República como se fosse um mero despachante e não uma figura política de primeira grandeza. É um processo absolutamente equivocado. O que se espera é um Ministério da Defesa com capacidade de direção política e gerencial sobre os diversos segmentos da vida militar nacional brasileira.

Capa: o presidente Lula saúda os comandantes militares durante a cerimônia de posse. Crédito: Agência Brasil/José Cruz.