Em visita à Unesp, ganhador do Prêmio Nobel de Física de 2004 celebra 50 anos da teoria que permitiu compreender interações atômicas

A palestra foi organizada pelo Instituto Sul-Americano para Pesquisa Fundamental (ICTP-SAIFR). Em entrevista exclusiva, David Gross destaca poder do método científico, que envolve formulação de novas ideias e processo rigoroso de experimentação, para avançar conhecimento humano. Segundo o físico norte-americano, embora novas descobertas estejam cada vez mais raras, condições para trabalho dos físicos teóricos ficaram melhores.

Em 1909, no esforço para compreender de que forma se estruturavam os átomos, o físico britânico Ernst Rutherford (1871 – 1937) bombardeou uma folha de ouro com íons de hélio. Ele não podia saber que, naquele momento, estava definindo as bases que norteiam os experimentos no campo da física de partículas até hoje. Ainda que a ideia de que os objetos ao redor seriam constituídos por alguma forma de partícula básica remonte aos pensadores gregos e indianos da Antiguidade, foi a partir do desenvolvimento da ciência moderna que surgiu a possibilidade de investigar experimentalmente o que seria esse componente “indivisível”, ou átomo. Ao longo do século 20, os experimentos se tornaram maiores e mais precisos, mas a forma de estudar os menores constituintes da matéria manteve a essência da ideia de Rutherford: bombardear partículas contra um obstáculo imóvel ou, ainda, umas contra as outras, e observar quais novidades emergiam dessas colisões.

Uma das pessoas que trouxe uma contribuição importante para o entendimento desse fascinante universo subatômico é o físico teórico norte-americano David Gross. Gross dedicou sua vida a estudar as interações de partículas fundamentais, e suas pesquisas lhe valeram o Prêmio Nobel de Física em 2004. No sábado, 12 de agosto, Gross esteve em São Paulo para falar sobre os 50 anos da teoria que ele desenvolveu, chamada Cromodinâmica Quântica. Conhecida como teoria das interações fortes, ela foi essencial para a compreensão do comportamento dos quarks, partículas elementares que compõem outras partículas, como os prótons e os nêutrons. A palestra, organizada pelo Instituto Sul-Americano para Pesquisa Fundamental (ICTP-SAIFR), lotou o auditório do Instituto de Física Teórica da Unesp na tarde de sábado, principalmente com jovens físicos, para surpresa e alegria do laureado.

Até a década de 1960, sabia-se que na estrutura do átomo existiam elétrons e um núcleo em torno do qual estes se situavam, e que este último era formado por nêutrons e prótons. Mas já se suspeitava que essas partículas do núcleo poderiam, por sua vez, ser o produto de outras partículas, ainda mais elementares, denominadas quarks. A confirmação da existência dos quarks se deu em 1968, nos aceleradores de partículas do Centro de Aceleração Linear de Stanford. Os anos seguintes à descoberta foram ocupados pela busca de um entendimento das interações que regem o núcleo atômico. Foi nesse contexto que David Gross, trabalhando junto com  Frank Wilczek – e simultaneamente, porém de maneira independente, David Politzer – descobriram uma propriedade denominada “liberdade assintótica”.

Os físicos chegaram à conclusão de que a força forte, responsável por manter prótons e nêutrons fortemente unidos, mas também por fazer com que os quarks permaneçam ligados, não é constante; ela varia conforme a distância. Um raciocínio mais próximo ao senso comum postularia que, quanto mais próximo estivesse um grupo de partículas, maior seria a força de atração exercida entre elas. Os dados dos experimentos, porém, mostraram exatamente o contrário: a distâncias maiores, a força aumenta, e em distâncias curtas essa interação perde intensidade. Assim, o que os laureados observaram é que, em distâncias muito curtas, os quarks agem como partículas livres, porém, quando a distância entre eles aumenta, a força que os mantém ligados também aumenta, evitando que, de fato, os quarks saiam de ligação e se tornem partículas livres. Graças a essa dinâmica, a estrutura atômica é mantida porque, do contrário, as partículas vagariam dispersas. Essa contribuição, que expôs as estruturas e interações ocultas do núcleo atômico, rendeu aos três físicos o Prêmio Nobel em 2004.

O trabalho de Gross deu origem à Cromodinâmica Quântica (QCD) que, neste ano, está completando 50 anos. A QCD é um exemplo dos progressos que podem ser alcançados pela parceria entre física teórica e experimental, de forma que uma elabora ideias e desenvolvimentos matemáticos enquanto a outra desmente ou não essas novas ideias e dá pistas de novos caminhos que a teoria pode percorrer. Segundo Gross, a ideia da liberdade assintótica veio justamente da observação experimental do comportamento dos quarks. “Víamos que os prótons eram feitos de quarks e que se moviam livremente sem, no entanto, se desprenderem. Queríamos entender como algo assim era possível”, explica o físico. Em suas cinco décadas de existência a QCD permaneceu inabalável aos desmentidos por via experimental. “Uma teoria perfeita”, diz Gross em tom de brincadeira.

David Gross durante palestra proferida no Instituto de Física Teórica

Em uma entrevista exclusiva ao Jornal da Unesp, o Nobel expõe as resistências que suas ideias enfrentaram quando foram propostas, na década de 1970, fala de perspectivas futuras para a teoria e defende que a ciência precisa de novas ideias. Confira a entrevista na íntegra a seguir.

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Como a ideia da liberdade assintótica e a teoria da Cromodinâmica Quântica foram recebidas pela comunidade científica no início? Houve alguma resistência?

David Gross: Bem, sempre há resistência, tem de haver. A ciência é feita de pessoas apresentando novas ideias a partir de observações e outras apontando erros nessas ideias, o que leva a novas experimentações em busca de confirmações. Essa é a história do desenvolvimento científico.

Na época, poucos dos meus colegas aceitaram a teoria logo de começo. Mas, para um pequeno grupo de físicos, que eu costumo chamar de grupo inteligente, ficou imediatamente óbvio que era essa a resposta. Isso porque praticamente tudo o que aprendemos em 60 anos sobre as interações fortes se encaixava nessa teoria quântica. Além disso, era possível calcular o que estávamos afirmando. Na física, novas ideias ganham força quando fornecem cálculos fáceis e possíveis de serem realizados por um grande número de pessoas. No fim, esse pequeno grupo de pessoas inteligentes prevaleceu e ocorreu um crescimento pequeno, porém constante, na aceitação dessa teoria, o que resultou em muitas aplicações interessantes que permitiram testar seus postulados de forma experimental.

Para algumas pessoas pode ser difícil pensar na importância da pesquisa em física teórica, ainda mais quando falamos de avanços que parecem não ter impacto na vida cotidiana. Qual, você diria, foi a importância de desenvolver a QCD?

David Gross: Bem, todo mundo quer entender o mundo. O que há de especial nos humanos, afinal? Eu diria que, certamente, é que somos criaturas curiosas, motivadas a entender o mundo ao nosso redor e controlá-lo. Nós desenvolvemos algumas ferramentas para isso em alguns milhares de anos, como a linguagem e a matemática. Em um tempo ainda mais curto, de algumas centenas de anos, nós desenvolvemos o método científico, um procedimento sistemático que se mostrou bastante útil para nosso desenvolvimento. Então, acho que a principal conquista da ciência é cultural: satisfazer essa nossa curiosidade inata.

A principal conquista da ciência é cultural: satisfazer essa nossa curiosidade inata.

Mas, é claro, ela também é útil. Quando falamos de ciência fundamental, seus usos nem sempre são óbvios, mas existem. Os inventores da mecânica quântica, cujo 100º aniversário vamos comemorar no ano que vem, não consideraram sua teoria como algo muito útil. Apenas queriam entender como o átomo funcionava. Mas, agora sabemos, se entendemos como um átomo funciona, podemos manipular moléculas, inventar novos materiais, produzir lasers e criar essa tecnologia que todos carregam em seus celulares hoje em dia. Tudo isso só é possível graças à mecânica quântica, mas quem diria que ela teria essa utilidade cem anos atrás?

Agora, a QCD nos permite entender de uma maneira muito fundamental a física nuclear. Isso será útil em algum momento? Quem sabe? Talvez. É muito mais difícil prever a tecnologia do que prever os avanços da ciência. Porque a tecnologia é impulsionada pelo ser humano, pelas necessidades humanas e pela política, enquanto a ciência é impulsionada pela natureza. E a natureza é muito mais simples, em alguns aspectos, do que a sociedade. Então, quem sabe? Posso fantasiar sobre algumas formas de controlar a física nuclear, de uma maneira que possa ser útil. Mesmo assim, é difícil para mim imaginar, mas também foi difícil para os inventores da mecânica quântica pensar em computadores quânticos.

Ao longo dos anos você também contribuiu muito para o desenvolvimento da teoria de cordas, que busca unificar as quatro forças da natureza: força forte, força fraca, força eletromagnética e força gravitacional. Mesmo assim, em 2004, na premiação do Nobel, você comentou que seu maior potencial ainda não havia sido alcançado. Você ainda pensa assim?

David Gross: Com certeza. No entanto, não está claro qual é esse potencial, e essa é a emoção de explorar novos territórios. Muitas vezes, em vários problemas científicos fica muito claro quais são as principais questões e as técnicas necessárias para trabalhar com elas, mas isso não ocorre com a teoria de cordas. Ela é uma forma de física exploratória básica muito difícil, é, basicamente, a exploração do desconhecido, então o caminho a seguir não é claro.

Nossa compreensão da teoria das cordas, o que ela é e o que ela pode fazer, muda a cada ano. Hoje, certamente ela é muito diferente do que era há 30 anos ou 40 anos, porque é uma teoria em constante evolução. Mas, na minha opinião, ela ainda é muito poderosa. Na ciência você sabe quando uma abordagem se esgota e se vale a pena abandoná-la porque não há mais ideias novas, não há mais descobertas teóricas, mas não é o caso da teoria das cordas. Eu vejo muitos jovens cientistas que querem resolver esses problemas de unificação, e essa teoria continua a atrair algumas das pessoas mais inteligentes do mundo. Esse é um bom sinal.

E por que é relevante pensar em teorias unificadoras, como, por exemplo, uma que consiga unir as quatro forças?

David Gross: Porque funciona! Essa tem sido a direção que a ciência seguiu nos últimos séculos. E é um sucesso inacreditável: tudo se reduz a átomos. Incluindo a vida. Não são necessários ingredientes sobrenaturais extras para explicar a vida. É apenas química, o que nos leva aos átomos e, por fim, chegamos à mecânica quântica. Eu acredito que, mesmo hoje, não existam ameaças sérias para as teorias reducionistas ou de unificação.

Não são necessários ingredientes sobrenaturais extras para explicar a vida.

A física descobriu ao longo dos anos que muitos fenômenos, que parecem muito diferentes, na verdade, possuem uma explicação comum. Um exemplo famoso é a descoberta de Newton, de que existe uma lei universal que descreve por que as maçãs caem das árvores e por que a Lua gira em torno da Terra; essa é a Lei Universal da Gravitação. Muitas vezes os avanços na física levaram à compreensão de que diferentes fenômenos têm diferentes aspectos de uma mesma dinâmica, mesmos princípios e, no fim, uma mesma teoria. Muito disso aconteceu com a teoria da mecânica quântica, que consegue explicar quase todos os materiais comuns que vemos no dia a dia: todos são apenas coleções de átomos e moléculas obedecendo às mesmas leis da mecânica quântica. Tudo é feito de átomos, como dizia Demócrito, há mil anos. Um dia,  gostaríamos de possuir uma teoria unificada de tudo. Pode não ser possível, mas é um bom objetivo a ser alcançado.

Quais, você diria, são os desafios de trabalhar com física teórica hoje em dia?

David Gross: Saber fazer bom uso de todas as ferramentas, das novas tecnologias e do acesso à informação que temos. Sabe, quanto mais as teorias se afastam da vida cotidiana comum, mais difícil é atuar experimentalmente. Tenho colegas que estão pensando no futuro dos experimentos de partículas e eles têm de planejar a construção de máquinas multimilionárias, que levam 20 anos para serem construídas, envolvendo milhares de pessoas trabalhando juntas. Isso é muito difícil! E é um universo completamente diferente da realidade de escolher dois alunos, descer para o porão e ficar pensando sobre a estrutura do átomo.

Eu não posso afirmar com certeza, mas eu acredito que as coisas ficaram mais fáceis para os físicos teóricos. A única exceção é que hoje obtemos menos pistas a partir de observações e experimentos, o que acaba impactando a teoria também. Quando eu era mais jovem, tinha muitas pistas quanto a para onde direcionar a pesquisa. Aconteciam muitas novas descobertas, agora elas demoram cada vez mais. Apesar disso, ainda acredito que, para os teóricos, as coisas melhoraram. Hoje em dia é mais fácil acessar e trocar informações, além de podermos colaborar com pessoas do mundo todo. Isso sem falar que temos computadores poderosos para auxiliar na pesquisa! De maneira geral, a vida para os teóricos ficou mais fácil.

Nesse sentido, o que você pensa sobre a ideia de que a física de partículas está passando por uma crise?

David Gross: As pessoas gostam de crises, eu também, claro. Mas essas crises na ciência tendem a se resolver sozinhas. Realmente, explorar a física de altas energias em distâncias curtas está ficando cada vez mais difícil e mais caro. Mas, se pensamos no que as pessoas podiam fazer há 50 anos e o que elas podem fazer hoje, o progresso é simplesmente incrível. Isso é um sinal de uma ciência saudável. Em uma ciência saudável, se você olhar para um período de dez anos, verá que os experimentos foram cada vez mais aperfeiçoados, de maneiras que ninguém imaginou. Então, sei que vamos descobrir maneiras de continuar progredindo.

Qual você espera que seja o próximo grande avanço na física?

David Gross: Bem, acho que uma área que tem se desenvolvido muito é a da compreensão da dinâmica do espaço-tempo. Acho que nesse campo podem acontecer grandes avanços. Por exemplo, uma pergunta que agora está sendo feita cientificamente, e que na minha opinião é uma das mais interessantes da ciência, é sobre como entendemos o começo do universo. Hoje não há ideias muito interessantes sobre esse problema, mas eu vejo esse cenário mudando drasticamente com novos cientistas e pesquisadores. Pensando em termos experimentais, existem muitas coisas que estamos tentando encontrar. Uma delas é a matéria escura. Obviamente há algo lá, nós conseguimos ver, medir, mas ainda não sabemos o que é. Esse é um grande problema esperando para ser resolvido, tanto experimental quanto teoricamente.

Imagem acima: David Gross durante palestra no IFT. Crédito: Felipe Saldanha.