Japoneses no Brasil, brasileiros no Japão

Descendentes de japoneses que se mudam temporariamente para o Japão para trabalhar driblam a integração à cultura local ao criarem suas próprias instituições, incluindo escolas, mercados e jornais em português. Pesquisa mostra que esse padrão repete o modelo dos imigrantes japoneses que chegaram ao Brasil 115 anos atrás, que procuraram preservar língua e costumes enquanto buscavam enriquecimento rápido. Para esses descendentes, definir sua identidade nacional hoje é um desafio.

‘Bem-vindos de novo’, filme brasileiro que estreou em junho, é a história real da família do cineasta Marcos Yoshi, neto de japoneses nascido em Jales, no interior paulista. Em 1999, seus pais decidiram emigrar para o Japão, para trabalhar, ganhar dinheiro, e um dia voltar. Marcos e seus dois irmãos ficaram com os avós. Ele tinha 14 anos. 

Foram 13 anos de separação. E, depois, os pais voltaram ao Brasil. 

“Eles pretendiam retornar dentro de poucos anos. Jamais tiveram intenção de nos levar pra lá”, recorda o cineasta. 

É um enredo comum, este, ao de milhares de decasséguis — como são chamados os descendentes de japoneses que retornam ao país de seus antepassados para trabalhar. 

Decasségui significa algo como “trabalhador distante de casa”. Sim, mesmo descendentes, eles não são considerados locais. Estão distantes de casa — são imigrantes. 

Desde os anos 1980, para enfrentar o problema da falta de mão de obra, o Japão passou a ter uma série de leis que facilitam a entrada de trabalhadores estrangeiros. Em 1990, a norma atual foi editada: permite que japoneses até a terceira geração possam trabalhar lá com um visto de residência longo. 

É este contexto que faz com que hoje brasileiros sejam mais de 210 mil habitantes do arquipélago no extremo oriente.  

Ir, pensando em voltar

Em 2023, o início da migração japonesa para o Brasil completa 115 anos. O processo ocorreu em diversas levas migratórias e foi incentivado. Se no Japão a crise econômica era grande, resultado da transição do feudalismo para a contemporaneidade, do Brasil dispunha de uma propaganda extremamente positiva. Preocupado em substituir a mão de obra de escravizados, o governo brasileiro divulgava maravilhas para atrair imigrantes. 

“E foi assim que os japoneses vieram. Pensando em permanecer algum tempo, ficarem ricos e voltarem. Porque a propaganda da época mostra árvores que davam ouro”, afirma a psicóloga Mary Yoko Okamoto, professora da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (Unesp), câmpus de Assis. “Na verdade, era uma alusão ao café. Mas eles entendiam literalmente. Acreditavam, porque essas propagandas eram veiculadas pelo governo japonês e há toda uma relação do japonês com o sistema político, com as autoridades.” Okamoto pesquisa a imigração entre Brasil e Japão, tendo concluído um pós-doutorado sobre o tema, e também é coordenadora local da Rede de Atenção ao Migrante Internacional.

Imagem do navio que trouxe a família de Mary Okamoto ao Brasil, na década de 1930.

Os primeiros japoneses desembarcaram em Santos em junho de 1908, a bordo do navio Kasato Maru. Com o tempo, o fluxo cresceu a ponto de tornar a colônia japonesa de São Paulo a maior fora do Japão.

Mas o ponto estudado por Okamoto é o que torna essa imigração um ponto sui generis. Ao contrário dos italianos, espanhóis, alemães, libaneses e tantos outros que decidiram trocar suas terras de origem pelo Brasil, os japoneses daquele momento não tinham intenção de se fixar. 

Eles queriam ficar ricos e voltar. Com a autoridade de quem pesquisa o assunto há mais de duas décadas e já entrevistou centenas de japoneses e descendentes, a professora encontrou este eixo em comum: tanto que eles pretendiam voltar que, em geral, decidiram criar seus filhos como japoneses.

“Isso dificultou muito a própria permanência deles aqui no Brasil”, contextualiza. Aos poucos, os imigrantes japoneses passaram a criar associações nipônicas em solo nacional, os chamados kaikans — kai significa reunião, kan significa local, prédio, estabelecimento. Essas agremiações serviam basicamente para a manutenção dos vínculos culturais e para a educação dos filhos de japoneses nascidos no Brasil: eles precisavam aprender a falar, escrever e ler em japonês. “E terem os valores nipônicos, o que para o japonês é algo muito importante”, pontua ela.

Tudo para que, em algum momento, houvesse o retorno ao Japão. “Eles não se misturavam [aos outros brasileiros], porque os filhos precisavam continuar sendo japoneses”, diz Okamoto, justificando o estereótipo de que os japoneses mais antigos que chegaram ao Brasil tinham pouco contato com a cultura local. 

“Em minha pesquisa, ouvi uma frase interessante. Eles tinham medo de que os filhos deles virassem ‘caboclos’”, recorda a professora. 

Mas empreender a volta não era nada fácil. Primeiro porque a ideia das árvores que davam ouro era falsa — na verdade, ganhar dinheiro no Brasil como colono era algo muito difícil. “A maioria dos que vinham nem eram agricultores”, ressalta Okamoto. “E eles não tinham condições de bancar uma viagem de volta. Saíam com a vinda já financiada, demoravam 5, 10 anos para pagar essa dívida… Viviam em casas sem infraestrutura, habitações antes ocupadas por escravos… Vieram muitas vezes para o interior de São Paulo onde nem estradas havia”, enumera.

De modo que a imensa maioria jamais voltou ao Japão. Em 1929, com a quebra da Bolsa de Nova York e a crise do café, a situação econômica desses lavradores piorou muito. Uma década depois veio a Segunda Guerra e, com a entrada do Japão para o lado do Eixo, ser japonês imigrante passou para um patamar ainda mais complicado. 

“Da chegada até esse momento, houve uma mudança. Eles continuaram colocando os filhos nas associações, para que eles fossem ali educados. Mas, gradualmente, também faziam com que os filhos frequentassem, no outro período, as escolas brasileiras”, conta Okamoto, cujo pai, filho de imigrantes, só foi aprender português com 10 anos de idade. 

O sonho de voltar ao Japão só terminou mesmo com o fim da Segunda Guerra. “Porque não tinha mais Japão para voltar”, diz a professora. 

Na família do cineasta Yoshi está a confirmação desse enredo. “Sou neto de japoneses. Meus avós chegaram crianças durante a década de 1930. Ou seja, quem decidiu de fato emigrar para o Brasil foram meus bisavôs. Após viverem em diferentes cidades do interior de São Paulo, minha família se instalou no noroeste paulista”, narra ele. “Parece que até a derrota na Guerra, planejavam voltar. Com a derrota, não tinham mais opção.”

De volta, mas por pouco tempo

Seja verdade ou não que, como querem alguns, a história seja cíclica, Okamoto constatou que essa mesma narrativa passou a se repetir décadas mais tarde, a partir de iniciativas que permitiram o movimento dos decasséguis no Japão. E essa repetição de padrão incluiu desde o sonho da volta ao país de origem até a realidade de que ficar passa a ser conveniente.

Prova disto é como a comunidade brasileira, basicamente formada por nipodescendentes, já marca uma verdadeira expressão cultural em muitas cidades da Terra do Sol Nascente. Se os primeiros imigrantes fundaram no Brasil associações para ensinar japonês a seus filhos, agora há escolas brasileiras funcionando no Japão; se muitas décadas atrás a comunidade nipônica fundava jornais como o São Paulo Shimbun, agora publicações brasileiras on-line e impressas circulam no Japão; e até a culinária tropical ganha espaço por lá.

Para atender às famílias dos decasséguis, nos anos 1990 o Ministério da Educação firmou um convênio com o seu equivalente japonês para a instalação de unidades de ensino com o currículo brasileiro e aulas majoritariamente em português. Em outras palavras, alguém que estude em uma dessas escolas está apto a prestar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) ou mesmo um vestibular em qualquer universidade do Brasil.

Em 1995 eram cinco escolas. Em 2008, o número chegou a uma centena. Agora decaiu — segundo a pesquisadora Okamoto, porque há um movimento de muitos entendendo que a imigração será definitiva, então valeria mais a pena que seus filhos encarassem o sistema de ensino nipônico.

Dados de 2023 do Ministério da Educação mostram serem 33 as escolas homologadas. Graduado pela Unesp, o geógrafo Milton Saito é professor de geografia, história, filosofia, projeto de vida, sociologia, empreendedorismo e ética em um colégio brasileiro que fica na cidade de Ota, um município de pouco mais de 200 mil habitantes na província de Gunma.

Milton Saito e uma aluna na escola para filhos de brasileiros no Japão onde ele leciona diversas disciplinas.

Sua história é inusitada. Quando ele terminou a graduação, em 1989, cismou que queria estudar como viviam os brasileiros que iam tentar a sorte no Japão. Como não conseguiu bolsa para tal empreitada, decidiu ele próprio se tornar um decasségui. “Resolvi ser sujeito e objeto da pesquisa”, conta. 

Foi assim que conseguiu fazer seu mestrado, defendido na própria Unesp. Mas, entre idas e vindas, 8 anos de trabalho como operário em fábricas e agora mais de 12 como professor, de certa forma nunca mais retornou em definitivo ao Brasil. “Quando fiquei um tempo no Brasil, passei a sentir saudades do Japão”, comenta.

Sua escola tem 150 alunos. Na maioria, filhos de brasileiros. Mas também há peruanos e outros imigrantes. 

“Aqui na minha região, a quantidade de brasileiros é muito grande. Temos restaurantes, lojas que vendem produtos brasileiros, livros brasileiros e muitos importadores de qualquer coisa que queiramos do Brasil”, relata. 

Na escola, as aulas são em português. “Os pais [dos alunos] entendem que aqui é uma escola que oferece maior liberdade e criatividade aos estudantes [em comparação aos colégios japoneses]. Ou seja, acreditam que a nossa metodologia propicia o melhor desenvolvimento para as crianças”, comenta. 

Saito conta que já ouviu de diversos pais também a preocupação de que, se matriculassem o filho em uma escola do sistema convencional japonês, o risco de bullying seria grande. Isto porque, mesmo que descendentes de japoneses, os brasileiros são vistos como estrangeiros. “E em escola onde a presença de estrangeiros é pequena, eles correm esse risco. Então temem muito”, conta o professor.

Em comum, há o desejo de um dia voltarem ao Brasil. E que com essa preparação seus filhos estejam aptos a prestarem um vestibular em uma boa universidade brasileira. Aqui a história se assemelha à das crianças japonesas educadas nos kaikans. 

Cada vez menos temporário

Mas o que a compilação de dados e fatos pelos pesquisadores tem mostrado é que, assim como a crise de 1929 e a Segunda Guerra fizeram com que os imigrantes japoneses adotassem de vez o Brasil, a situação socioeconômica do Brasil também tem incentivado os decasséguis a “irem ficando”. Principalmente na última década, quando o país teve uma sucessão de incidentes históricos complicados — protestos, instabilidades, impeachment, crise, bolsonarismo e toda a sorte de incertezas.

Para muitos que foram, o Japão pareceu algo mais sólido para reconstruir a vida.

Colaboradora do veículo da publicação ‘Alternativa’, revista e site de notícias, que circula no Japão, feita em português e destinada à comunidade brasileira, a jornalista Fátima Kamata testemunhou essa mudança de perfil. 

Ela reside no país desde 1995, na cidade de Kawasaki, perto de Tóquio. “Cheguei aqui quando já havia os primeiros sinais de que os brasileiros iriam ficar por muito tempo no país”, diz. “Minha intenção era passar o período sabático e retornar para o Brasil depois de um ano. Porém, acabei me fixando porque tinha muita curiosidade sobre os rumos da comunidade brasileira no Japão.”

De lá para cá, analisando os dados contemporâneos, ela ressalta que o Brasil se tornou a quinta maior comunidade estrangeira no Japão, atrás de chineses, vietnamitas, coreanos e filipinos. “Os  brasileiros hoje têm perfil de imigrantes, e não mais de trabalhadores temporários”, compara. “Muitos compraram casa própria, com financiamento de 35 anos, e formaram a família no Japão.”

Na hora de enumerar as mudanças na sociedade nesses últimos 30 anos, ela ressalta a homologação da rede de ensino formada por escolas brasileiras e a chegada das faculdades brasileiras de ensino a distância. “Encontramos ainda escolinhas de futebol, futsal, voleibol, academias de dança, jiu-jitsu, capoeira, supermercados, restaurantes, bares, salões de beleza, oficinas mecânicas, agências de turismo, serviço de transporte, banco, etc.”, conta ela, citando o sem-número de estabelecimentos de brasileiros no Japão.

“Há vários brasileiros donos de fábrica de embutidos, congelados de uma infinidade de itens da culinária tradicional brasileira, padaria e até queijaria, queijo mineiro e requeijão. Diria que hoje temos um pouco de tudo do Brasil no Japão”, acrescenta Kamata.

Um exemplo é o empreendorismo capitaneado pelo paulista Bruno Masuzake Albino, nascido em Parapuã, SP, criado em Rinópolis e empresário em Toyohashi, a 300 quilômetros de Tóquio. 

Ele notou que bacon de verdade, desse jeito a que estamos acostumados no ocidente, não era muito fácil de encontrar no Japão. E foi entre saliva e saudade que ele decidiu resolver a questão montando um negócio de charcutaria — seu foco, é claro, era a grande comunidade brasileira. 

Interior da charcutaria Pata Negra, que funciona em Toyohashi, a 300 km de Tóquio.

Deu certo. “Quando me mudei, vim como decasségui, com essa ideia de chegar, ficar um tempo, juntar dinheiro e retornar ao Brasil”, conta ele. “Mas as coisas mudaram, o Brasil ficou diferente, a gente foi se adaptando aqui. Não consegui juntar o dinheiro que imaginava e acabei ficando.”

Sorte dos outros brasileiros que agora têm onde comprar não só o bacon, mas também a costelinha defumada, a linguiça calabresa e por aí vai.

Albino é do tipo que já fez de tudo no Brasil. “Fui mototaxista, depois tive uma empresa de mototáxi. Depois trabalhei numa empresa de venda de álbuns de formatura, aí aprendi a vender, a lidar com o comércio em si. Foi um período especial”, recorda. 

Apesar de reconhecer que seu negócio deu certo, ele enfatiza que não conseguiu conquistar o paladar dos japoneses. “Diria que 98% dos nossos clientes são brasileiros. Há uma questão cultural. Os japoneses, em geral, ficam receosos de experimentar produtos novos. Ainda há preconceito. Ou medo”, analisa.

Bruno Masuzake Albino

Ele faz um esforço. Diz que é questão de honra ter os menus todos em japonês, não só em português. E que quer incluir os locais. “Mas quem aparece só vem por indicação de amigos brasileiros ou algo assim”, lamenta.

Para a pesquisadora Okamoto, apesar de ser perceptível essa tendência do “ficar de vez” ainda não é possível cravar que os emigrantes brasileiros no Japão estão no mesmo estágio em que estavam os imigrantes japoneses no Brasil após a Segunda Guerra.

“Fica sempre o fantasminha do ‘a qualquer momento a gente volta’, principalmente quando há momentos de insegurança”, comenta. E é isso que justifica a existência ainda de tantas escolas brasileiras no Japão.

Japonês aqui, estrangeiro lá

Ao estudar os movimentos tanto do japonês no Brasil quanto do brasileiro no Japão, a psicóloga Okamoto não deixa de notar uma forte questão identitária. Para começar porque, mesmo que o descendente de japonês tenha características físicas japonesas, ele jamais é reconhecido como tal lá no Japão. “Lá, somos considerados brasileiros. Até visualmente, por causa do comportamento, da linguagem corporal diferente”, ressalta.

Em cena do filme Bem-vindos de novo, descendente de japoneses mostra registro de sua família trabalhando no campo no Brasil.

Por outro lado, ela entende que todo imigrante “com características étnicas evidentes, seja corporalmente, seja na maneira de se vestir” acaba assumindo a questão identitária de forma mais acentuada. “É quando se detecta a olho nu [a diferença]. Como a gente tem essa característica fenotípica, em qualquer lugar do mundo a pessoa olha para a nossa cara e nos chama de japoneses”, afirma ela. Ao que parece, em qualquer lugar do mundo — menos no Japão.

Imagem acima: exterior da charcutaria Pata Negra em Toyohashi, Japão. Acervo pessoal.