Quando pensamos na vastidão do Sistema Solar, rapidamente lembramos dos planetas que o compõe, remetendo a aprendizados que, na maior parte dos casos, ficaram na época da escola. Mercúrio, Vênus, Terra e Marte são os famosos planetas rochosos, enquanto a outra parte, Júpiter, Saturno, Urano e Netuno são astros compostos, primordialmente, por gases. Porém, além desses grandes corpos celestes, orbitando o Sol de maneira ininterrupta, há também a presença de outros corpos menores, rochosos e metálicos, não menos intrigantes: os asteroides.
Esses objetos são remanescentes da formação inicial do Sistema Solar, que ocorreu a cerca de 4,5 bilhões de anos atrás. Segundo dados da Nasa, atualmente existem mais de um milhão de asteroides, mais precisamente 1.298.691. Apesar dessa precisão, o número exato desses corpos é uma incógnita. Grandes experimentos, como o telescópio do Observatório Vera C. Rubin, antes conhecido como Large Synoptic Survey Telescope (LSST), prometem ampliar ainda mais essa janela. Estima-se que, uma vez em operação, será possível identificar até dois bilhões de novos objetos dentro do nosso Sistema Solar, dentre os quais estão os asteroides, a uma velocidade de cem mil novas descobertas por noite.
O LSST está previsto para entrar em operação em julho de 2024. Com a perspectiva cada vez mais próxima de um aumento exponencial na quantidade de dados disponíveis, torna-se imperativo descobrir métodos eficazes para a análise das novas informações. É pensando nessas problemáticas, que pesquisadores do grupo MASB (Machine Learning applied to Small Bodies), coordenado por Valerio Carruba, docente do Departamento de Matemática da Unesp, campus de Guaratinguetá, têm concentrado esforços na pesquisa sobre utilização de inteligência artificial para classificação de asteroides.
Em um artigo recente, intitulado Optimization of artificial neural networks models applied to the identification of images of asteroids’ resonant arguments, o grupo testou a utilização de três redes neurais artificiais distintas para analisar e classificar as dinâmicas de órbitas de asteroides. Um trabalho que antes era feito por meio de análise visual, e que levava semanas e até mesmo meses para ser concluído, com a utilização dessas técnicas pode ser realizado em questão de segundos. Além de identificar os pontos fracos e aperfeiçoar um modelo de rede neural, o trabalho também permitiu a descoberta de novas famílias jovens de asteroides, nunca antes identificadas.
A inovação técnica e científica apresentada no artigo, que foi publicado na revista científica Celestial Mechanics and Dynamical Astronomy, garantiu ao grupo o prêmio por “Métodos computacionais inovadores em dinâmica astronômica”, outorgado pelo Encontro Internacional de Mecânica Celestial. A cerimônia de premiação está prevista para ocorrer no dia 12 de setembro, em Roma, seguida de uma palestra dos laureados sobre o tema.
Descobrindo asteroides
No sistema solar existem duas regiões com uma grande concentração de asteroides. A primeira é o cinturão principal de asteroides, localizado entre Marte e Júpiter, depois, com início próximo à órbita de Netuno, está o Cinturão de Kuiper. Essas são apenas algumas das regiões compostas por uma quantidade incontável de rochas, de diversos tamanhos, que orbitam o Sol. Quando um grupo de asteroides apresenta algumas características orbitais semelhantes, como o formato, o diâmetro e a inclinação da órbita em relação a outro objeto celeste, diz-se que esse grupo compõe uma família de asteroides.
Ao contrário do senso comum, as órbitas não são estáticas e imutáveis. Ao longo do tempo, elas sofrem alterações, sendo afetadas pela força gravitacional, tanto do Sol, como de planetas e outros corpos próximos. Essencialmente, a força gravitacional de um objeto maior, atrai o objeto menor. Assim, quando um planeta passa próximo de um asteroide, este tem sua órbita levemente alterada, como se o planeta tivesse dado um pequeno empurrão na rocha espacial. Essa influência gravitacional entre um corpo e outro é chamada de ressonância. Em geral, a perturbação do planeta é pequena com respeito à atração solar, e, sobre uma órbita do asteroide, a média da perturbação é praticamente nula. Mas há situações nas quais as perturbações da órbita podem se somar ao longo do tempo e mudar significativamente a órbita do asteroide.
Existem muitos tipos de ressonância, de acordo com a influência sofrida, uma delas é a ressonância secular. Como o próprio nome indica, as alterações ocorrem ao longo de séculos, e podem afetar tanto a forma da órbita do objeto, como a inclinação do asteroide. Um exemplo desse tipo de ressonância, e que foi o foco do grupo MASB no artigo, é a ressonância v6, que ocorre entre alguns asteroides e Saturno. “Essa é uma das ressonâncias mais poderosas que existem no cinturão principal de asteroides”, comenta Carruba. Sob sua influência, os asteroides têm seu percurso alterado lentamente, até que sua órbita cruza com a de Marte, o que faz com que, normalmente, sejam expulsos do cinturão de asteroides por conta do encontro próximo com o planeta.
Uma forma de identificar os objetos que interagem com ressonâncias é analisar imagens da evolução de argumentos ressonantes. Rita de Cassia Domingos, pesquisadora da Faculdade de Engenharia da Unesp, campus de São João da Boa Vista, explica que esses argumentos são ângulos que descrevem a trajetória de um asteroide com relação a um planeta ou mais.
“O estudo e a identificação de regimes dinâmicos de argumentos ressonantes de asteroides são importantes porque podem ajudar a entender o comportamento dinâmico do asteroide ao longo do tempo”, explica Domingos, que também assina o artigo e integra o grupo MASB. Assim, a partir das imagens é possível verificar aqueles asteroides cujos comportamentos dos argumentos ressonantes oscilam em volta de um ponto de equilíbrio, ou seja, asteroides que estão em ressonância com o planeta.
A problemática dessa forma de análise é que, com o aumento da quantidade de dados, torna-se inviável realizar o processo de maneira manual. “Imagine trabalhar com dez mil gráficos desse tipo? Fica extremamente inviável e chato, ninguém merece, na verdade”, brinca Carruba. O pesquisador comenta que essa necessidade levou o grupo a começar a trabalhar com o reconhecimento de imagens a partir da utilização de redes neurais artificiais. Para o artigo, os pesquisadores analisaram a eficácia de três modelos distintos: a VGG, a Inception e a ResNet. Segundo Carruba e Domingos, essa é a primeira vez que esse método computacional é aplicado no estudo de dinâmicas de asteroides.
Colocando inteligências artificiais à prova
Uma falha que o grupo rapidamente identificou foi que os modelos conseguiam analisar níveis de detalhes tão altos que, rapidamente, eles memorizavam informações finas das imagens utilizadas para treinar as inteligências. Assim, apesar de inicialmente todas apresentarem um bom desempenho, quando novos dados eram inseridos essa eficiência caia, porque elas buscavam pelos mesmos padrões das imagens de treino, sem desenvolver autonomia para analisar informações diferentes.
Para contornar essa questão, foram aplicados métodos de regularização, desenvolvidos com o objetivo de aumentar a independência e a adaptabilidade das inteligências. Primeiro, utilizou-se a técnica de “data augmentation”, ou aumento de dados, na qual são feitas pequenas alterações nas imagens originais, como uma mudança de sentido, aumentar ou diminuir a imagem, deformar, entre outras possibilidades. A segunda técnica utilizada é conhecida como “dropout”, e consiste em eliminar alguns dos nós, ou neurônios, da rede neural artificial. “É como se nós tivéssemos uma pequena lesão cerebral e os neurônios têm que se adaptar à falta de alguns outros. Dessa forma, eles ficam mais independentes, mais eficazes”, explica Carruba.
Com as inteligências aprimoradas, o grupo realizou as simulações com mais de 3000 asteroides, buscando identificar as famílias que mantinham órbitas estáveis sob a influência da ressonância v6. A partir disso, um dos resultados foi que o modelo VGG foi o que apresentou mais precisão, atingindo uma acurácia de 87%, sendo capaz de fornecer os resultados em segundos.
As descobertas, porém, não pararam por aí. Graças à efetividade da rede neural, foi possível identificar uma nova família de asteroides, considerada jovem. “Agora, nós não apenas temos como saber a idade desses objetos, que é de 3 milhões de anos, como também calcular a velocidade inicial com a qual foram ejetados. Essas informações são muito raras porque, com famílias mais antigas, são bem difíceis de serem obtidas”, comenta Carruba.
O pesquisador destaca que, até o momento, são conhecidas apenas quatro famílias jovens de asteroides que interagem com ressonâncias seculares. A primeira foi identificada em 2019, as últimas três foram resultados da pesquisa desenvolvida pelo MASB. Além disso, o uso da rede neural também permitiu a identificação de novos objetos pertencentes à família do asteroide Tina, a primeira a ser descoberta na ressonância v6. Com isso, a previsão é que a aplicação de técnicas de inteligência artificial nos estudos de dinâmica de asteroides, não apenas torne o processo mais efetivo como também permita expandir o conhecimento sobre essas formações.
Quando questionado sobre a premiação, Carruba conta que o grupo foi pego de surpresa, “nós participamos desses eventos por esporte, porque gostamos de fazer essa pesquisa”, aponta. Mas destaca que recebeu a notícia com felicidade e aponta que esse é um reconhecimento que deve ser estendido a todo o grupo. “Nós precisamos do trabalho de várias pessoas, das que desenvolvem os códigos, fazendo debug, das que criam as bases de dados, etc. Então é uma satisfação enorme, não só para mim, mas para todos que permitiram isso, os colaboradores e os alunos”, finaliza.
Imagem acima: Representação do asteroide Bennu, descoberto em 1999. (Crédito: NASA)