A reforma tributária é o principal desafio da agenda econômica do primeiro ano do Governo Lula.No último dia 22 de junho, ocorreu na Câmara dos Deputados a apresentação do Substitutivo à Proposta de Emenda Constitucional nº 45/2019, a nova PEC da reforma tributária, em caráter ainda preliminar.
É preciso esclarecer, desde logo, que não existe reforma tributária ideal. Não existe um modelo que assegure que todos ganharão com a mudança. Não existe mudança de carga tributária neutra entre os diferentes setores da economia, nem tampouco se pode garantir ausência de custos setoriais e para os entes federativos, que são o governo federal, os estados e os municípios. Então, por que fazer a reforma? Porque com a melhora na qualidade da estrutura tributária, o país ganha.
As tentativas de reformulação do sistema tributário têm sido frequentes nas últimas três décadas. Entretanto, a ausência de diálogo federativo não apenas obstruiu as reformas, mas também abriu espaço para mudanças pontuais, conduzidas pelo poder dos lobbies. Isso levou, por exemplo, à desoneração da tributação do capital (por meio da isenção de dividendos e do instrumento dos juros sobre capital próprio), dentre outras. O poder dos grupos de interesses é tamanho que, de acordo com pesquisas lideradas por Marta Arretche, 67% das propostas em matéria tributária apresentadas na Câmara e no Senado entre 1988 e 2020 tratavam de isenções fiscais para grupos específicos.
Um sistema que produz distorções
O sistema tributário brasileiro apresenta diversas distorções. Particularmente, nas múltiplas regras de enquadramento tributário de bens e serviços, nas quais muitos fornecedores de um mesmo setor estão no regime cumulativo e outros não. Por exemplo, variações na embalagem podem mudar a incidência do tributo, fazendo com que uma água-de-colônia deixe de ser enquadrada em perfume, ou que um bombom seja classificado como wafer.
Dentre as distorções do sistema tributário brasileiro destacam-se a complexidade da tributação (foram editadas 460 mil normas tributárias desde 1988); a falta de neutralidade; a elevada regressividade; existência de tributos cumulativos; os resíduos tributários; o cálculo por dentro (em que a alíquota do imposto é aplicada sobre um valor que já inclui o próprio imposto); e a oneração excessiva da produção e do consumo. Um aspecto particularmente impressionante dessas distorções é a elevada litigiosidade associada ao sistema, que faz com que o contencioso tributário (administrativo e judicial) no Brasil corresponda a, segundo dados de 2019, 75% do PIB, enquanto que nos países da OCDE esse patamar não ultrapassa 0,3% do PIB.
O texto preliminar da PEC, apesar de conter muitas fragilidades, por não se posicionar em temas críticos e adiar a decisão dos debates federativos para as legislações complementares, aponta as linhas mestras para a reforma do ordenamento tributário brasileiro.
As bases econômicas de incidência tributária não mudam, mas precisam ser repensadas a partir dos princípios da simplicidade, equidade, neutralidade e progressividade. Algumas distorções do atual sistema tributário podem ser visualizadas na Tabela 1, que apresenta as discrepâncias na tributação por base de incidência. É importante ressaltar que no regime de IVA (Imposto sobre Valor Agregado) não há tratamento de setores, mas tratamento a bens e serviços, que, logicamente, integram determinados setores.
O contexto político e federativo atual difere das reformas tributárias anteriores (1966-67 e 1988), o que torna as mudanças muito complexas. Consciente dessas dificuldades no âmbito das articulações políticas, a estratégia do Governo Lula tem sido pragmática no sentido de reconhecer o protagonismo do Legislativo nos debates e ao tratar a reforma do sistema tributário de maneira estanque, restrita à revisão da tributação sobre a base de consumo de bens e serviços.
Com efeito, a esperada revisão progressista da tributação da renda e da propriedade, com intuito de promover maior justiça social, não alçou prioridade nesta etapa dos trabalhos da Comissão e da PEC correspondente apresentada à Câmara dos Deputados.
Em relação à revisão da tributação sobre a renda, a PEC estabelece que o Poder Executivo deva encaminhar ao Congresso Nacional, em até 180 dias após a promulgação da emenda constitucional, um projeto de lei que reforme a tributação da renda.
Já a revisão da tributação sobre patrimônio deverá ficar restrita às mudanças que já haviam sido apresentadas, ou seja, ampliar a base de incidência do IPVA sobre veículos aquáticos e aéreos; promover a progressividade do IPVA em razão do impacto ambiental do veículo. Vale ressaltar que as exceções apresentadas na PEC abrem múltiplas possibilidades para a elisão fiscal e, portanto, os valores arrecadados poderão não ser significativos.
Quanto à tributação de heranças e doações de alto valor, a proposta é a aplicação de um ITCMD que seja progressivo em razão do valor da transmissão e cria a regra que permite a cobrança sobre herança no exterior. Por fim, autoriza os prefeitos a atualizar a base de cálculo do IPTU por meio de decreto a partir de critérios gerais previstos em lei municipal.
A criação do IVA é o principal pilar
O principal pilar da reforma tributária em tramitação é a simplificação do sistema com a unificação de 5 tributos para a criação de um IVA (Imposto sobre Valor Agregado), em substituição ao PIS, Cofins e IPI (competência federal), ICMS (competência estadual) e ISS (competência municipal). Este novo tributo será cobrado no local em que ocorrer o consumo (princípio do destino), será não cumulativo e dual, isto é, um sistema com competência tributária fracionada, dividido em um Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência compartilhada entre estados e municípios, e uma Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência da União. Além disso, a PEC propõe a criação de um Imposto Seletivo para sobretaxar produtos e serviços com externalidades negativas (nocivos) à saúde e ao meio ambiente.
Embora a PEC não defina o percentual da alíquota a ser aplicado, o que ocorrerá em lei complementar, estabelece como diretriz que os dois tributos (IBS e CBS) terão, no máximo, três alíquotas (o desejável seria uniformidade plena de alíquotas): a) uma alíquota considerada padrão; b) uma reduzida em 50% para alguns bens e serviços (transportes, serviços de saúde, serviços de educação, produtos agropecuários, cesta básica, atividades artísticas e culturais); e c) uma alíquota zero (medicamentos, Prouni, produtor rural pessoa física). No caso da Zona Franca de Manaus e do Simples Nacional ficou definida a manutenção da atual regra.
O período de transição entre os regimes tributários é demasiado longo, ampliando a complexidade para as empresas, mas não para o consumidor. A reforma propõe duas transições para o novo sistema tributário. A transição para o fim dos cinco tributos será de oito anos, de 2026 a 2033. Um dos elementos que reforçam este período é justamente a extinção do principal motor da Guerra Fiscal, o ICMS, já que os benefícios fiscais já concedidos foram convalidados pelo Congresso até 2032. Já a transição da distribuição da arrecadação seria de 50 anos, de 2029 a 2078. Meio século de transição para evitar perdas aos entes federativos é inadequado e a própria reforma já possui a previsão de fundo equalizador de perdas.
Proposta já encontra resistências
A proposta de reforma tributária encontra resistências de prefeitos de grandes cidades e governadores. Os primeiros vislumbram buscar compensação por eventuais perdas na arrecadação, enquanto que os governadores buscam compensação pela perda de poder político/autonomia decisória para negociar incentivos tributários. A redução de autonomia dos entes subnacionais (isto é, estados e municípios) não significa usurpação de competência, mas uma repactuação nas relações federativas no âmbito de um federalismo cooperativo.
Portanto, não se trata de uma crise federativa intransponível, uma vez que a nova proposta apresenta diversos mecanismos para solucionar esses impasses. São elas: a) a promessa de manutenção dos patamares de arrecadação dos entes federativos; b) a mudança da atual regra-matriz do ISS para o IBS no destino, que irá corrigir as graves distorções existentes e promover uma repartição mais equânime das receitas entre os municípios; c) o período de tempo estipulado pela regra de transição da reforma é bastante longo, o que suaviza os efeitos redistributivos; d) a criação de um Fundo de Desenvolvimento Regional (FDR).
Em relação ao FDR é importante frisar que, embora não seja uma proposta nova em termos de reforma tributária, o fundo surge, na prática, como uma compensação para a mudança provocada pela aplicação do princípio do destino. Isso permitirá aos estados continuarem com posturas competitivas, de forma isolada e desordenada, para a atração de investimentos produtivos. Esse entendimento deverá abrir divergências entre os estados em relação ao montante do Fundo e, principalmente, acerca dos critérios de distribuição, pois estados ricos e com grande representação política não aceitarão os critérios do FPE (Fundo de Participação dos Estados) ou do PIB invertido para orientar a distribuição dos recursos. Para ser claro, os estados campeões na prática da guerra fiscal são os mais ricos da federação e não aqueles com maiores dificuldades de atrair investimentos. O FDR deveria ser conduzido pelo Governo Federal, para a implementação de políticas nacionais de desenvolvimento regional.
Já os prefeitos têm se posicionado de forma contrária à extinção do Imposto sobre Serviços (ISS), sob a alegação de potenciais perdas na arrecadação. Estudo realizado por Gobetti (2023) tem demonstrado justamente o contrário, ou seja, a expectativa é de que ocorram ganhos expressivos para a ampla maioria dos municípios, que hoje arrecada anualmente menos de R$ 100 per capita de ISS.
A proposta do novo sistema de tributação da circulação e do consumo de bens e serviços, tipificado pelo IVA dual com incidência no destino, encontra resistência ainda dos setores de serviços e do agronegócio, que hoje são setores beneficiados com uma carga tributária menor em relação à indústria, além de subsídios significativos.
Risco de desfiguração
Existe um risco expressivo de que a atuação de lobbies para alargamento do tratamento especial, com a definição de múltiplas alíquotas ou regimes diferenciados, possa comprometer os princípios da neutralidade e da generalidade e, com isso, a efetividade do IVA dual.
O ovo da serpente da proposta de reforma tributária é a instituição do Conselho Federativo do Imposto sobre Bens e Serviços, com uma concepção de poderes extremamente amplos (independência técnica, administrativa, orçamentária e financeira) e competências exclusivas, que deverá ser uma instituição de disputas e tensões nas relações federativas.
Outro ponto da reforma é a devolução de parte do tributo. Com o propósito de reduzir a regressividade do sistema tributário a reforma apresenta a proposta da criação de um cashback. Este mecanismo é de fácil aplicação para a economia brasileira, tem um caráter social meritório e representa um avanço em relação às práticas tributárias de desoneração universal. Apesar da previsão do cashback, a PEC, contraditoriamente, mantém a desoneração de 50% para a cesta básica.
Cabe salientar que a literatura fiscal tem apontado à ineficácia da desoneração universal para reduzir as desigualdades, quando se trata de numa economia com concentração de renda. Considerando que o consumo também é concentrado, a desoneração de determinado produto deverá beneficiar mais fortemente estratos superiores de renda. A PEC não explicitou as características operacionais para o funcionamento deste mecanismo (composição dos produtos com devolução, alíquotas, valor fixo para todos ou faixa de renda, alíquota única, forma de devolução, etc.), o que será definido em legislação complementar.
Por fim, como não existe mudança de carga tributária neutra intersetorialmente, há um risco crível de que as concessões, alíquotas especiais e exceções impostas por lobbies de setores econômicos que se beneficiam do atual regime tributário possam comprometer o tratamento isonômico para bens e serviços e, com isso, desfigurar o sentido da reforma tributária, gerando velhas ineficiências e novas distorções alocativas.
O poder de agenda do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) torna-se fundamental para mitigar os riscos de desconfiguração da proposta. Nesse sentido, o processo de tramitação escolhido para a análise da PEC, com apresentação direta ao plenário da Câmara, dificulta alterações, considerando a exigência de uma maioria qualificada de 3/5 dos deputados (308 deputados).
Se não existe consenso sobre o que diz o provérbio — alguns o citam como “Deus está nos detalhes”, outros colocam o Diabo nesta posição — quando se trata de reforma tributária, é certo que as negociatas e os interesses econômicos de lobbies privados tendem a prevalecer, em detrimento dos interesses nacionais.
Cláudio Cesar Paiva é professor do Departamento de Economia da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, câmpus de Araraquara, e foi diretor da FCL. É Diretor Científico da Escola de Governo do Município de Araraquara (EGMA).
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