Há dez anos, as cidades brasileiras eram tomadas pela efervescência política das manifestações de junho de 2013, cujos desdobramentos são sentidos até hoje. A onda de protestos teve início na cidade de São Paulo. Um grupo de estudantes ligado ao Movimento Passe Livre foi às ruas para protestar contra o aumento de R$ 0,20 no preço das passagens de ônibus. O poder público, por meio da PM, respondeu com repressão e truculência. Os estudantes não se intimidaram e organizaram sucessivas manifestações, cada uma reunindo mais pessoas, e de perfil mais variado. Até que, por fim, a agitação transbordou também para outras cidades, e a pauta de reivindicações espatifou-se revelando um caleidoscópio de insatisfações. O fenômeno ganhou, posteriormente, o nome de jornadas de junho.
Parte das reivindicações girava em torno de mais verbas federais para educação e saúde pública, e críticas ao volume de recursos destinados à construção dos estádios de futebol para a Copa do Mundo de 2014. Outros grupos levantavam a bandeira anticorrupção. A agitação culminou com uma tentativa de invasão do Palácio do Planalto e do Congresso, que foi evitada pelas forças de segurança, num movimento que, visto à distância, pareceu de alguma forma prefigurar os tristes eventos ocorridos em janeiro passado, apontando já um processo de deterioração da democracia brasileira .
O cientista político e docente da Unesp Milton Lahuerta, que é coordenador do Laboratório de Política e Governo da UNESP Campos de Araraquara, faz um balanço dos dez anos das manifestações de junho de 2013 e avalia o significado daqueles eventos para a história política recente do Brasil.
Lahuerta identifica em 2013 um ponto de inflexão, onde se evidenciou uma ruptura entre as instituições políticas e as aspirações da sociedade. A esperança de que o sistema político que começou a ser desenhado com a redemocratização, e foi plenamente estabelecido pela Constituição de 1988, pudesse ser veículo para a construção de uma nova sociedade, foi lentamente se erodindo por diversos episódios, que incluíram o fracasso do Plano Real, o Impeachment do presidente Collor e, já no século 21, o escândalo do mensalão, que marcou os dois primeiros mandatos do governo Lula, e que ainda estava no ar quando ele elegeu sua sucessora, Dilma Roussef, em 2011.
“Muito no começo do mandato, o governo de Dilma Rousseff já enfrentou uma série de reivindicações sociais, por parte de grupos que, de alguma maneira, não tinham atendidos os seus interesses. Isso incluía grupos afeitos a juventude, aos movimentos populares e a uma série de setores, inclusive sindicais, com os quais o governo não mantinha uma relação muito boa”, analisa o cientista político.
“Essa insatisfação se agravou ao longo do tempo e, de certa maneira, encontrou um certo desfecho nos episódios de junho”, diz. Ele enfatiza que a mandatária não pode ser responsabilizada exclusivamente pelos eventos. “Naquele momento, todas as contradições que vínhamos carregando nos últimos trinta e poucos anos voltaram à tona, e de uma maneira bastante disruptiva”, diz.
Ele diz que, nos últimos dez anos, formaram-se duas grandes correntes interpretativas das jornadas de junho de 2013. Uma corrente as descreve como um moderno evento de guerra híbrida, um projeto de desestabilização do regime conduzido de forma velada por atores que se mantiveram ocultos até hoje, assim como sua agenda. A outra elege como protagonista segmentos da sociedade, principalmente formados por jovens, que haviam nutrido uma forte expectativa de melhora de vida durante os dois mandatos de Lula. “O discurso da negação da política organizada foi potencializado pelas redes sociais durante esse período. Era essa juventude sintonizada com as redes sociais, hiperligada à dimensão digital, e também avessa o movimento da história e a própria política institucional. Sem dúvida uma juventude rebelde, mas em nenhum sentido revolucionária”, analisa.
E esse desencanto prefigurou o que viria depois. “Esse distanciamento entre as instituições e os movimentos sociais só se aprofundou. A ponto de, em 2018, a sociedade brasileira eleger um personagem “antipolítico”, entre aspas, como Jair Bolsonaro, para presidente”, diz. “Nesse aspecto, de promoção da antipolítica, talvez se possa dizer que o legado de junho de 2013 é mais negativo do que positivo”.
Ouça abaixo a íntegra do depoimento de Milton Lahuerta ao Podcast Unesp.