Nestes tempos de debates acalorados e declarações abrasivas, nem a festa de São João, uma das mais queridas expressões folclóricas brasileiras, escapou de se tornar objeto de disputa. Semana passada, durante um famoso programa de debates na TV a cabo, a apresentadora Astrid Fontenelle e a advogada e comentarista política Gabriela Prioli trocaram algumas frases atravessadas devido à diferença de opiniões sobre o que é, ou o que deveria ser, um festejo junino. “Vou para o São João para dançar um forró, comer amendoim cozido. Cheguei lá e era uma festa de axé. Não dá! Eu acho que não dá pelo Brasil, não pelo meu gosto. É uma festa de São João”, disse Astrid. “Não dá para você. Parte de um juízo subjetivo seu”, retorquiu a advogada. “O que você estava esperando era chegar lá e encontrar outra coisa. Acho que vale a pena pensar primeiro: o que é o São João tradicional? Qual o marco temporal que a gente vai estabelecer para dizer o que é São João?”, questionou Gabriela.
Embora talvez não seja possível apontar um “marco temporal” para servir de parâmetro, pesquisadores da Unesp têm se dedicado a investigar a origem e a trajetória de diversos alimentos típicos que fazem as delícias dos brasileiros, que nos meses de junho e julho lotam as festas de São João. A historiadora Ana Carolina Viotti, docente da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp, câmpus de Marília, há alguns anos desenvolve, ao lado de outros dois historiadores, o projeto Comer História, que investiga aspectos históricos relacionados a pratos tradicionais, ingredientes e alimentação em geral.
Vinda de Portugal, mas pré-cristã
A própria história das festas juninas é rica e complexa, e acredita-se que ela remonte a antes mesmo do surgimento do cristianismo. Os povos da Europa pré-cristã conduziam celebrações coletivas relacionadas principalmente aos ciclos da natureza e ao calendário agrícola, uma vez que no Hemisfério Norte o mês de junho marca o início do verão e o período de colheita. Essas festividades tradicionais representavam um desafio aos missionários cristãos que percorriam o continente na Antiguidade Tardia e na Idade Média. “Naquele momento, o cristianismo que se expandia pela Europa, embora combatesse as crenças ditas pagãs, não tinha como impedir essas festas de grande tradição e que traziam um forte apelo ao convívio social”, diz Alberto Ikeda, professor aposentado do Instituto de Artes da Unesp, câmpus de São Paulo, especialista em estudos de cultura brasileira. “Com o tempo, essas festas foram assimiladas pela tradição cristã e reestruturadas”, diz. Não à toa, ressalta, muitos dos pratos típicos da nossa festa junina são servidos em grandes panelas, o que remete a um estilo de produção culinária comunitário e colaborativo.
Uma das estratégias para “cristianizar” essas festas foi vinculá-las à memória de santos católicos. Em Portugal, as festas do mês de junho são chamadas não de juninas, mas sim de joaninas, em referência a São João, santo celebrado no dia 24 de junho tanto em Portugal quanto no Brasil. Na verdade, ela é parte de um conjunto de festividades, que incluem também as festas de Santo Antônio (celebrada dia 13) e São Pedro (dia 29). “Em Portugal, nesse período do ano ocorrem as chamadas Festas dos Santos Populares que têm grande semelhança com as festas juninas do Brasil. Elas além de mobilizarem muitas pessoas também trazem fortes elementos alimentares, como consumo de sardinha, uma prática ligada a Santo Antônio”, explica
Viotti, que também é vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História, no câmpus de Franca, explica que, conforme os portugueses chegaram ao Brasil e deram início ao processo de colonização, tradições como a das festas joaninas foram ganhando novos contornos. Essas mudanças se deram tanto pela diferença dos hemisférios e, portanto, do clima e dos períodos de plantio e de colheita, quanto pelos gêneros alimentares que já existiam por aqui, vinculados à alimentação dos povos indígenas. “Em relação à comida, nota-se uma grande proliferação de pratos e tradições alimentares vinculados à época do ano, com destaque para o milho, a mandioca e o amendoim. Esses três ingredientes eram parte do cotidiano dos povos originários brasileiros. Nas festas juninas, eles são a base para a preparação de diversos pratos típicos, que muitas vezes são chamados de formas diferentes, conforme a região do país”, lembra Viotti [ver quadro].
Entre os três ingredientes, o milho se destaca como a estrela das festas juninas, especialmente na região Sudeste. Viotti diz que, embora por muito tempo a historiografia brasileira tenha apontado a mandioca como alimento básico dos povos originários brasileiros, estudos recentes, que recorrem tanto à documentação quanto à arqueobotânica, reconfiguraram essa proeminência. A mandioca seria mais utilizada pelos povos que viviam no território dos estados do Norte e do Nordeste. Nas regiões mais ao sul, incluindo os estados de Goiás, Minas Gerais e São Paulo, o alimento mais comum seria o milho. A pesquisadora afirma que nosso hábito de comer milho remonta aos povos indígenas, que nos legaram não apenas o cultivo da espécie, mas também modos de beneficiamento, na forma de farinha, por exemplo. “Os indígenas consumiam milho à exaustão nessa região em que existe hoje a cultura ‘caipira’. Posteriormente, os bandeirantes também plantaram milho em seus caminhos, pois essa cultura demandava pouco cuidado e o tempo decorrido entre o plantio e a colheita era curto. Por essas razões, em São Paulo o consumo do milho acontece há muito tempo”, diz.
Não à toa, depois de tanto tempo dedicado a essa cultura, o Brasil tornou-se um dos maiores produtores de milho do mundo, e o único país a colher três safras por ano. A segunda, e mais importante, inclusive, é colhida em junho. Essa combinação de antiguidade e grande volume, somada à versatilidade de usos do milho, se materializa nas barraquinhas das festas. O cardápio vai desde opções mais simples, como o milho na espiga (grelhado ou cozido) ou a própria pipoca, até pratos mais elaborados como curau, a canjica, o cuscuz, a polenta, o creme de milho, o bolo de milho cremoso ou a pamonha, servida doce ou salgada.
Ainda que menos presente que o milho, o amendoim também é um item recorrente nas mesas juninas, principalmente na forma de sua mais famosa receita, o pé de moleque. Leguminosa nativa e disseminada por toda a América, o amendoim acabou combinado com o açúcar produzido a partir da cana, dando origem a uma receita crocante e adocicada que por vezes também recebe a adição de leite condensado. Viotti e seus colegas de projeto, quando se debruçaram sobre a origem do nome, encontraram o mesmo termo associado aos calçamentos irregulares típicos do período colonial e que ainda nos dias de hoje são encontrados em cidades como Paraty (RJ) ou Ouro Preto (MG). “A semelhança visual entre o doce e aquele tipo de pavimento provavelmente foi o motivo para que ele recebesse esse nome, uma vez que os registros de calçamentos chamados de pé de moleque são anteriores às menções ao doce de mesmo nome”, diz.
Boi-bumbá na festa junina
A adaptação de receitas já presentes na Europa ao repertório de produtos disponíveis no Brasil aconteceu também entre as bebidas. Viotti toma como exemplo o vinho quente, outro elemento do cardápio junino que também é consumido em Portugal, temperado com cascas de cítricos e especiarias e consumido no inverno. O quentão, segundo a professora, seria uma versão nacional dessa bebida quente. “E nada mais brasileiro do que preparar essa bebida com a cachaça”, diz.
As pesquisas realizadas pela equipe do projeto Comer História, por vezes, desmontam algumas teorias sobre a origem dos nomes de pratos tradicionais. Um desses casos é o bolo Mané Pelado, receita cremosa produzida a partir da mistura da mandioca com o côco e o queijo e também presente nas festas juninas. Conta-se que o nome deriva de um vendedor chamado Manoel, que caminhava sem camisa pelas ruas comercializando a iguaria produzida pela sua esposa e teria involuntariamente batizado a receita. Em suas pesquisas, entretanto, os historiadores do Comer História encontraram referências a um preparo chamado “manauês”. Este era muito semelhante aos bijus, que são uma broa de origem indígena feita com massa de mandioca, assada e enrolada em folha de bananeira. A influência portuguesa adicionou à receita ovos, leite, açúcar e gordura. Isso deu uma nova cara ao alimento, que também passou a ser assado em tabuleiros. O Mané Pelado seria, portanto, uma versão do manauê. Seu nome, depois, foi alterado para “manué”, e a seguir para “mané”. Já o “pelado” diz respeito à ausência da folha de bananeira, a partir da popularização da preparação no tabuleiro.
Mas outros elementos tradicionais da festa junina sofrem variações regionais, o que seria esperado em um país de dimensões continentais como o Brasil. Ikeda destaca, por exemplo, a quadrilha, que se disseminou nacionalmente nas festas juninas a partir de uma dança das elites europeias no século 19. A coreografia envolvia originalmente dois casais, daí o nome quadrilha. “Dança-se quadrilha no Brasil inteiro. As músicas, porém, costumam ser composições locais, em ritmos que lembram a polca ou a marcha junina. Não se dança bumba-meu-boi em São Paulo, por exemplo. Mas, no Maranhão, e em outros locais da região Norte do Brasil as grandes referências do ciclo junino são os bois-bumbás”, diz.