À medida que o sol ilumina a Reserva Biológica da Serra do Japi, no interior de São Paulo, um coral de pássaros se faz ouvir, saudando o novo dia. Para uma jornalista que se aproxima da biologia apenas enquanto curiosa, o canto das aves causa uma sensação de maravilhamento. Porém, no interior da mata atlântica, pode ser difícil identificar quais são as espécies que estão proporcionando este show vocal.
Essa não é uma dificuldade para o biólogo Felipe Amorim, que é docente do Instituto de Biociências da Unesp, câmpus Botucatu. Deitado sobre a serrapilheira, no meio da mata fechada, o professor para momentaneamente de contemplar uma planta de cor magenta que, para um observador desatento, pode passar por um cogumelo. “Adoro ouvir o canto do japu pela manhã. Esse som me desperta uma nostalgia de outros campos”, diz, antes de voltar a analisar a planta.
Acompanhado por uma equipe de sete estudantes, entre graduandos, mestrandos e doutorandos, o objetivo de Amorim é aprender mais sobre a produção de néctar da planta Scybalium fungiforme ‑ aquela que lembra um cogumelo. O pesquisador começou a se interessar pela “flor-cogumelo”, como ele gosta de chamar, ainda em 2017, quando por acaso uma de suas estudantes lhe trouxe um exemplar durante uma aula em campo na Serra do Japi.
A planta da família Balanophoraceae é baixa, e se estabelece praticamente rente ao solo. Isso a leva a passar despercebida para os transeuntes desavisados, que não raro a pisoteiam. De formato arredondado, pode chegar a medir 20 cm de diâmetro, e toda a sua superfície é protegida por brácteas, folhas modificadas que lembram escamas cor de carmim. Essas formações guardam o interior da planta onde está o tão cobiçado néctar e o pólen, essenciais para sua reprodução. Para que possam acessar esses recursos, é necessário que aqueles animais que sejam dotados de mais força de vontade e capacidade motora retirem as brácteas e revelem as flores escondidas no interior da inflorescência, abrindo assim caminho para que outras espécies possam também aproveitar o alimento.
As plantas masculinas possuem uma coloração mais escura, principalmente no centro, que chega a atingir tons profundos de bordô. Ao longo de toda sua superfície, as anteras amarelas estão visíveis, convidando a fauna passageira para se deliciar com o néctar e o pólen produzidos. Já as plantas femininas, apesar de muito semelhantes, apresentam uma grande diferença: uma vez removidas as brácteas, é revelado um interior esbranquiçado, com manchas de um rosa muito claro.
Três décadas de questionamentos
O estranho aspecto da Scybalium, que parece saída de algum universo inventado de ficção científica (um bom referencial é “A Guerra dos Mundos” de H. G. Wells), causou uma impressão duradoura em Amorim. Em 2018, ao retornar à Serra do Japi, o pesquisador viu uma grande população de Scybalium na região e percebeu que poderia organizar algum trabalho com estudantes para começar a investigá-la. O plano se concretizou em maio de 2019, com a turma da disciplina Projetos Integrados em Ecologia. “Após estudarem sobre morfologia floral e a adaptação das flores aos polinizadores, os estudantes desenvolveram a hipótese de que os principais polinizadores dessa planta seriam mamíferos não voadores, particularmente, os roedores. Chegando aqui nós instalamos as câmeras e, logo na primeira noite, vimos a visita de um rato e de um gambá”, lembra Amorim.
O grupo identificou o gambá como o principal polinizador da planta, responsável, também, por retirar as brácteas e facilitar o acesso de visitantes diurnos, como beija-flores, abelhas e vespas, ao néctar e ao pólen das inflorescências. A descoberta inédita foi apresentada no trabalho “Good heavens what animal can pollinate it? A fungus-like holoparasitic plant potentially pollinated by opossums”, publicado na revista Ecology, em fevereiro de 2020 e garantiu projeção internacional aos pesquisadores envolvidos no trabalho, que em sua maioria eram estudantes de graduação. Outro benefício do achado foi permitir o encontro entre o pesquisador e a cientista Patrícia Morellato, do Instituto de Biociências da Unesp, campus Rio Claro.
Há quase 30 anos, Morellato começou uma pesquisa sobre a S. fungiforme, buscando identificar o responsável por transferir o pólen das inflorescências masculinas para as femininas. A pesquisadora desconfiava que o gambá seria o principal polinizador da planta, tanto que encomendou um desenho ilustrando como seria o gambá visitando a planta, quase 30 anos antes de o fenômeno ter sido visualizado pela primeira vez por Amorim e sua equipe. Suas investigações, porém, precisaram ser interrompidas e, apenas anos mais tarde, com a descoberta de Amorim, a docente voltou a se envolver com o assunto. Hoje, em 2023, Morelatto é uma das integrantes da equipe de campo.
Uma planta mágica
Enquanto olha para os remanescentes de Mata Atlântica que compõem a Serra do Japi, Amorim chama a atenção para as excepcionalidades da planta. “Olhe em volta, você vê alguma flor?” Estávamos cercados por uma imensidão verde, composta de cipós, palmeiras, árvores e arbustos até onde a vista podia alcançar. Mas flores, nenhuma. Amorim explicou que, na época de estiagem, entre o outono e o inverno, praticamente nenhuma flor desabrocha ali. A exceção à regra é a flor-cogumelo, que justamente neste período vive sua fase reprodutiva. Por conta disso, os pesquisadores acreditam que ela sirva como uma fonte vital de alimento para vários tipos de polinizadores da região.
Outra particularidade é a grande quantidade de néctar que ela produz, propriedade que, para o biólogo, torna a planta “mágica”. “Em geral, as flores produzem alguns microlitros de néctar, cada microlitro corresponde a 0,001 ml, ou seja, a milésima parte de 1 ml. Já a Scybalium é uma das poucas plantas que conhecemos que pode chegar a produzir vários mililitros de néctar”, explica Caio Ballarin, estudante de doutorado de Amorim, que acompanha a pesquisa desde o início. Essa característica permite que polinizadores aproveitem o recurso de maneira pacífica, sem, aparentemente, gerar competição entre os animais que buscam alimento.
Repleta de características únicas, a Scybalium é um vegetal parasita, que tem como principal hospedeiro os cipós. A observação cuidadosa do comportamento da planta está levando Amorim a ensaiar novas perspectivas teóricas. “Ela é uma planta que se comporta como animal”, diz Amorim. Para embasar a comparação, ele explica que nas cadeias tróficas, popularmente conhecidas como cadeias alimentares, as plantas situam-se na base do sistema, assumindo a condição de produtoras de biomassa. Essa biomassa é gerada por meio de fotossíntese e serve de alimento para o próximo nível da cadeia. “Nesse esquema, a Scybalium não está na base, pois não é produtora de biomassa. Na verdade, ela está se alimentando das produtoras. Funcionalmente, ela age como um animal herbívoro, pois literalmente se alimenta de outras plantas”, diz Amorim.
Não se sabe ainda quais os efeitos que o parasitismo da flor-cogumelo exerce sobre suas hospedeiras, mas infere-se que devem ser deletérios. Amorim, no entanto, acredita que, como os principais hospedeiros são os cipós, a Scybalium pode ser responsável por controlar essa população e contribui para o equilíbrio da floresta. Caso os cipós crescessem em abundância, livremente, sua presença limitaria a fotossíntese das árvores, impedindo seu crescimento. O biólogo, porém, destaca que essa é só uma hipótese e que novas pesquisas deveriam ser feitas para quantificar o efeito das inflorescências nas plantas hospedeiras.
Gotas de néctar
Um dos principais objetivos da empreitada é descobrir como funciona a dinâmica de produção de néctar da S. fungiforme. Esse conhecimento vai lançar mais luz sobre as interações entre os polinizadores e as plantas e, também, sobre como funciona a reprodução da flor-cogumelo. Em sua estadia no campo, o grupo buscou responder, principalmente, duas perguntas. Primeiro, se há diferença na quantidade de néctar produzido durante o dia e durante a noite. Segundo, se a remoção do líquido leva a planta a produzir mais dele.
Para buscar essas respostas o grupo se dedicou a um intenso planejamento prévio e conduziu cinco dias de pesquisas, mirando a observação e coleta de dados sobre a produção de néctar. Em campo, o primeiro passo foi isolar inflorescências masculinas e femininas que estivessem saudáveis e na fase reprodutiva. Para isso, a principal ferramenta foi um item presente em todas as padarias do país: tampas de bolo. Os pesquisadores fixaram as tampas no solo, de forma a proteger as plantas e impedir que animais tivessem acesso a elas e retirassem o néctar. Esta etapa envolveu 60 plantas, encontradas ao longo de uma trilha improvisada com a colocação de fitas nas árvores para assinalar o caminho.
A segunda etapa da pesquisa envolveu a retirada do néctar das inflorescências, simulando a ação dos polinizadores. As plantas foram divididas em grupos de 10 e, a cada 12h, os pesquisadores se embrenhavam na mata para retirar o néctar. Em cada visita o número de plantas analisadas aumentava, porque a cada vez que voltavam para retirar o líquido, os pesquisadores tornavam aos grupos visitados anteriormente e também passavam por um grupo novo. Assim, a última coleta, que aconteceu no final do terceiro dia, retirou o néctar de todas as 60 plantas.
A investida exigiu atenção. As primeiras coletas eram feitas muito cedo, com o nascer do sol. Na serra, e com o inverno cada vez mais próximo, o frio e a umidade eram visitas frequentes. O que aliviava a situação, além da tranquilidade do local, era o sol, que esteve presente em todos os dias de campo e aquecia as mãos geladas. Assim, a cada nascer do sol, o grupo seguia o caminho pela trilha improvisada, retirava a caixa de bolo das plantas e iniciava a inspeção minuciosa para coletar dados sobre a produção de néctar noturna. Com uma pipeta, o líquido era removido e passado para tubos de plástico com medidas, chamados eppendorfs. Dessa forma, foi possível registrar a quantidade de néctar produzido a cada intervalo de doze horas que separava os dias das noites. Uma gota da produção era colocada em um equipamento chamado refratômetro, parecido com uma luneta ou um caleidoscópio, responsável por mostrar a concentração de açúcar presente no líquido. “Sabendo a quantidade de néctar que ela produziu e a concentração do açúcar, nós podemos calcular a massa de açúcar. Ao relacionar essas informações com o tamanho da flor, podemos ter uma ideia do quanto de açúcar as plantas produzem por área”, explicou Leandro Hachuy-Filho, outro estudante de doutorado acompanhando o campo.
Pouco antes do pôr do sol, a segunda coleta do dia tinha início, desta vez para contabilizar a produção de néctar na fase diurna. Além do frio, a escuridão era outro obstáculo, já que dentro da floresta fechada o dia já parecia se tornar noite mesmo antes das 17:00 h. As coletas só terminavam com o cair da noite. Durante esse período, o canto dos pássaros cessava e dava lugar a uma sinfonia composta por sapos, rãs, cigarras e outros animais noturnos, invisíveis para nós, mas que, com certeza, observavam o néctar das plantas sendo removido mais uma vez. Enquanto anotava os dados da nova coleta, Caio explicava como o uso de pipetas é exclusivo para o trabalho com a Scybalium. “Em outras plantas seria impossível remover o néctar utilizando uma pipeta. O volume produzido é muito pequeno, então é preciso usar uma seringa, que é mais precisa e delicada. Mas, no caso da Scybalium, é tanto néctar que precisamos de instrumentos maiores”, conta. De fato, as coletas variaram entre 0,02ml e 7ml. Esta última quantidade removida de apenas uma planta, que ficou acumulando néctar ao longo de três dias.
A opção por organizar as plantas em grupos de 10 para coletar as amostras se deu para que os pesquisadores pudessem comparar as quantidades de néctar produzidas por plantas que tiveram e que não tiveram o líquido retirado. “Queremos esclarecer isso porque, se a remoção causar um grande efeito sobre a planta, que a leve a produzir mais néctar, significa que quanto mais os animais removem o néctar, mais ela produz. Esse efeito então acaba atraindo mais visitantes florais e pode aumentar o poder de dispersão de pólen nos entornos”, explica Leandro.
Na rede dos morcegos
Para desvendar os mecanismos reprodutivos da S. fungiforme, é importante, além de compreender melhor a dinâmica da produção de néctar, também identificar quais são seus principais polinizadores. Em 2021, Amorim registrou morcegos visitando e se alimentando da planta, um fato inusitado para a espécie. “Morcegos descendo para o chão a fim de se alimentar é algo que só havia sido observado na Nova Zelândia. Lá, há uma peculiaridade muito específica que é a ausência de predadores terrestres. Por isso, uma espécie de morcego nectarívora (que toma néctar) adaptou-se ao hábito terrícola, e eles acabam descendo ao chão para tomar o néctar de outra planta, que aliás pertence à mesma família de Scybalium”, explica Amorim. Morcegos, portanto, preferem flores mais expostas e que estejam suficientemente altas para que eles possam se alimentar enquanto mantêm o voo, do contrário, o animal fica exposto e vulnerável a predadores. A novidade também foi publicada na revista científica Ecology, no artigo “Opossums and birds facilitate the unexpected bat visitation to the ground-flowering Scybalium fungiforme”. Nele, os pesquisadores descrevem como gambás e tiês-prestos, uma espécie de ave que toma o néctar de Scybalium, facilitam o caminho para que os morcegos tenham acesso à planta, por meio da remoção das brácteas.
Os pesquisadores continuam interessados em compreender melhor a relação entre os morcegos e a flor-cogumelo, assim como o grau de dependência do animal com as inflorescências, especialmente nos períodos em que outras fontes de alimentação são escassas. Esse é o foco da pesquisa de mestrado de Giovana Spicacci, outra orientanda de Amorim.
Para avaliar a importância da S. fungiforme como fonte de alimento para os morcegos, Giovana coletou amostras de pólen das plantas para comparar com o pólen retirado do pelo dos morcegos. Para isso, a cada entardecer a jovem pesquisadora instalava redes de seda, com fios pretos muito finos, praticamente invisíveis na escuridão, que interceptavam rotas de voo dos mamíferos voadores. Após isso, de hora em hora, o grupo ia até o local das redes para checar se algum animal havia caído na armadilha.
Nos dias em que o Jornal da Unesp acompanhou a coleta, foram capturados cinco morcegos no total, dois na primeira noite e três na segunda, todos do gênero Carollia. Os morcegos desse gênero são pequenos, chegando a pesar 15g. Enroscados nas redes, alguns tinham energia para tentar fugir, enquanto outros permaneciam quietos. Quando achava que algum dos animais parecia muito enfraquecido, Giovana alimentava o indivíduo com água açucarada, simulando o néctar, para que eles ganhassem mais força evitando, assim, que os morcegos eventualmente morressem por estresse ou por ficarem presos antes de se alimentarem. Esta é uma técnica recentemente implementada pela bióloga, que é uma defensora dos animais dentro e fora da floresta. Durante as capturas da semana, nenhum morcego morreu e todos voaram livremente a cada noite após a remoção das redes.
Com os morcegos em mãos, a inspeção tinha início: era necessário anotar o sexo, estágio de desenvolvimento e, no caso de fêmeas, se estavam grávidas ou não. Com o auxílio de uma pinça esterilizada, Giovana passava um pequeno cubo de gelatina no pelo do morcego. Todo o pólen ficava, então, preso no instrumento, que era isolado. Os morcegos, eram então mantidos separados até o final da noite de experimento, para evitar que o mesmo animal caísse duas vezes na armadilha, afetando os resultados.
“Os morcegos carregam pólen de muitas flores diferentes. Mas, com a amostra do pólen da S. fungiforme, podemos fazer a comparação e eliminar todos os outros. Isso vai permitir que identifiquemos a quantidade de pólen da Scybalium que eles estão carregando, em comparação às outras plantas. Isso dará pistas do quão importante essa planta é para sua alimentação”, explica Giovana. A bióloga comenta que a comparação é feita visualmente. Com o auxílio de um microscópio, é possível observar a morfologia do pólen da flor-cogumelo e buscar por essa mesma morfologia nas amostras retiradas do pelo dos morcegos. O resultado dessa coleta, porém, permaneceu ainda desconhecido, porque a análise seria feita somente em Botucatu, após o retorno do campo.
Com o fim do período de campo da reportagem, vieram as últimas trocas de ideias sobre a planta. Amorim confessou que, apesar de estar contente com a forma como as pesquisas têm caminhado, ele ainda aguarda por estudantes que queiram se aprofundar no estudo da S. fungiforme. “Eu tenho convicção de que ainda vamos produzir vários trabalhos sobre essa planta. Mas acho que os mais empolgados com isso somos eu e a Patrícia Morellato”, diz em tom de brincadeira. Apesar disso, o biólogo é otimista, ele vê as pesquisas e o envolvimento dos estudantes como peças fundamentais para montar o quebra-cabeça sobre o funcionamento da misteriosa flor-cogumelo.
Fotos: Malena Stariolo.