Desde outubro de 2022, as empresas que operam as linhas de ônibus da cidade de São Paulo estão proibidas de comprar novos veículos movidos a diesel. A medida segue a orientação da Lei Municipal No 16.802/2018, que determina que, até 2024, 20% da frota movida a combustível fóssil seja substituída por veículos elétricos. A medida visa reduzir a emissão de gases de efeito estufa e a quantidade de material particulado no ar da cidade, contribuindo para o combate às mudanças climáticas e para a promoção da saúde pública. A expectativa é que a nova frota não poluente que vai rodar pelas ruas da capital chegue a abranger cerca de 2.800 veículos dos 14 mil em operação atualmente. De acordo com dados da própria prefeitura, operam hoje na capital apenas 219 ônibus elétricos, sendo 201 do antiquado modelo trólebus e 18 movidos a bateria.
Os números dão uma ideia do tamanho do mercado que a renovação da frota da cidade de São Paulo por veículos elétricos pode representar para as fabricantes de ônibus. Esse cenário também deve ser replicado em diversas capitais latino-americanas, onde o que prevalece hoje é o transporte público rodoviário movido a diesel. A presença nesses mercados, entretanto, exige adaptações tecnológicas por parte das empresas em virtude, por exemplo, das diferenças climáticas entre a matriz onde os veículos foram desenvolvidos e os locais onde eles deverão operar.
No câmpus de Ilha Solteira da Unesp, uma equipe de professores e alunos vem há meses trabalhando com engenheiros da montadora Scania na realização de uma série de testes que visam adaptar o modelo de ônibus elétrico movido a baterias desenvolvido na matriz, localizada na Suécia, para o perfil de boa parte das cidades latino-americanas. Até o momento, a parceria tem gerado conhecimento de ambas as partes envolvidas, e oferecido uma experiência valiosa de aproximação entre a Universidade e a indústria para o desenvolvimento de projetos de pesqusia, em especial para os estudantes.
Uma das principais preocupações que a montadora sueca apresentou aos engenheiros e estudantes da Unesp em busca de uma solução diz respeito às temperaturas em que os veículos vão operar nas cidades brasileiras e latino-americanas, que no geral costumam ser mais altas que na Europa. Essa questão é relevante em especial para os ônibus elétricos, uma vez que as baterias que armazenam a energia que move os ônibus precisam operar dentro de um intervalo ótimo de temperatura, sob o risco de prejudicar a sua autonomia e durabilidade.
“A cidade de Ilha Solteira está em uma região muito quente. Por isso, temos condições de levar esses veículos a condições de estresse térmico que permitam avaliar o comportamento da bateria do veículo e dos seus sistemas, a sua vida útil. A ideia é alimentarmos a Scania com essas informações, e que elas possam nortear as decisões de engenharia no desenvolvimento do projeto”, explica Leandro Oliveira Salviano, coordenador do projeto ao lado de Aluísio Viais Pantaleão, ambos docentes do Departamento de Engenharia Mecânica da unidade.
Depois de passar por um período de testes na planta da montadora, em São Bernardo do Campo, quando operou exclusivamente no transporte interno dos trabalhadores, o veículo chegou ao câmpus de Ilha Solteira, onde por cerca de seis meses foi submetido a testes que replicaram as demandas do transporte urbano, com foco na questão térmica. Nesta dinâmica, os veículos foram testados em diferentes etapas com 15 dias de duração. A rotina envolvia o carregamento das baterias em uma estação localizada dentro do câmpus no período da manhã, para em seguida percorrer uma trajetória predefinida pelas ruas da cidade, com direito a simulação das paradas e a abertura das portas para entrada de passageiros. Bombas de água dentro do ônibus também simulavam o peso dos passageiros com diferentes lotações. Ao final de cada etapa de 15 dias, o ônibus seguia em direção à planta da Scania, em São Bernardo do Campo, onde era ajustada uma nova configuração do veículo, que era novamente para uma nova quinzena de testes em Ilha Solteira.
Durante a execução dos testes, explica Pantaleão, foi possível monitorar parâmetros como a velocidade do veículo, a inclinação de pista, o montante de radiação solar que incidia e a temperatura e informações sobre funcionamento da bateria e do sistema da bateria, entre outros dados. “O ônibus foi inteiramente sensorizado e monitorado. Agora que temos esses dados, vamos nos debruçar sobre eles e proceder ao que chamamos de redução dos dados, antes de entregá-los para a montadora”, diz o docente, especialista em proteção térmica.
Ele explica que os ônibus elétricos que estão sendo analisados pela equipe de Ilha Solteira possuem dois packs de baterias que estão localizados em pontos diferentes da estrutura do teto do ônibus, como forma de equilibrar a incidência do peso sobre o veículo. Esses packs são conectados por uma tubulação que está igualmente exposta à radiação solar e à temperatura, o que pode causar perdas significativas no seu desempenho. “Nós também estamos testando cinco tipos de materiais isolantes térmicos para o tubo e fazendo um conjunto de simulações que nos permita inclusive chegar a um tubo otimizado, que seria um sexto tubo, caso a gente chegue à conclusão de que os tubos propostos pela equipe da Suécia não são eficientes para a nossa realidade”, explica Pantaleão. “De forma geral, a gente está protegendo a bateria tanto da perda de calor para o ambiente quanto da degradação dos seus componentes devido à alta temperatura externa.”
Os professores lembram que os veículos que trafegam na Europa apresentam um sistema de aquecimento capaz de proteger a bateria e seus componentes nos períodos de frio, permitindo que eles atuem dentro de uma faixa ótima. No Brasil, na maioria dos casos, é justamente o contrário: a estrutura precisa ser adaptada para resfriar o sistema. “Ao final do projeto, vamos entregar a análise dos cinco testes e ferramentas desenvolvidas para realizá-los, inclusive com o treinamento da equipe técnica da Scania. A ideia é criar uma sinergia e passar para eles as ferramentas que nós utilizamos, de forma que elas possam ser aplicadas em outros projetos”, explica Salviano. Segundo o professor, boa parte dos projetos de pesquisa da empresa ainda são desenvolvidos pelas equipes da Scania que atuam na Suécia. Uma das intenções da parceria com a Unesp é capacitar a equipe de engenheiros que atuam na planta em São Bernardo do Campo a respeito do veículo elétrico, que ainda é relativamente novo na América Latina.
Além dos professores, a equipe da Unesp inclui quatro estudantes de iniciação científica que estão atuando em diferentes áreas do projeto e recebendo bolsas pagas a partir dos recursos disponibilizados pela Scania. No projeto, os alunos têm vivenciado um ambiente industrial que inclui acompanhamento do dia a dia do projeto, reuniões com as equipes de engenheiros em São Bernardo do Campo e na matriz, na Suécia, além de fazer medições e conhecer os veículos in loco. “Ilha Solteira é uma cidade que está distante dos grandes centros tecnológicos do país, que estão principalmente no eixo Rio-SP. Para nós, trazer a Scania para dentro da Unesp é extremamente importante porque aproxima a indústria da Universidade, trazendo a possibilidade de melhorar a formação dos nossos alunos”, destaca Pantaleão.
Se para os alunos o cotidiano de uma grande empresa é uma importante novidade, essa é uma realidade que os professores que coordenam o projeto conhecem bem. Tanto Leandro Salviano quanto Aluísio Pantaleão trabalharam nos setores de pesquisa e desenvolvimento da Ford e da Embraer, respectivamente. “Somos entusiastas da parceria entre universidade e empresas, sejam elas empresas públicas ou privadas. Muito da expertise que se encontra na universidade pode alimentar as empresas para obtenção de produtos melhores, mais eficientes, mais competitivos no mercado, e que vão impactar a sociedade, gerando recursos e mais empregos”, diz Salviano. “Infelizmente, ainda existe a ideia dentro de algumas empresas de que a universidade desenvolve pesquisa “com sorriso”. É preciso investir, pagar boas bolsas para os pesquisadores, trazer dinheiro para montagem de laboratórios. Eu penso que ainda existe um bom caminho a ser trilhado para que isso de fato vire uma tradição da Universidade, mas esse é um primeiro passo que a gente está dando nessa direção”, diz.
Pantaleão lembra que empresas multinacionais, em especial as montadoras, são carentes de desenvolvimento de tecnologia em solo nacional, o que abre oportunidades de novas colaborações com a Universidade. “Neste momento, vislumbramos a possibilidade de duas novas parcerias com a própria Scania. Uma usando essa mesma plataforma, esse mesmo ônibus elétrico, e a outra empregando uma versão mais “evoluída” desse ônibus, desenvolvida pela própria Scania e que eles ainda estão estudando”, diz Pantaleão.
Capa: Scania/divulgação.