Quando a pauta envolve pets, o Brasil se alinha entre as grandes potências mundiais. Cerca de metade dos lares brasileiros possui algum animal de estimação, e a população total beira os 150 milhões, entre cachorros, gatos, aves, peixes e exóticos. O maior destaque fica por conta da população de cães: 58 milhões de indivíduos, o que nos coloca em terceiro lugar no ranking mundial, atrás apenas de EUA e China. Segundo dados do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Saúde Animal, em 2021 o setor de cuidado com pets movimentou R$ 2 bilhões. Esse valor é mais um indicativo do apreço que seus donos – ou tutores, como mais recentemente passaram a ser chamados – nutrem por seus bichos, um chamego que tem se intensificado nas últimas três décadas e que fez com que os pets passem a ser vistos cada vez mais como integrantes da família.
Andrigo Barboza de Nardi, professor do Departamento de Clínica e Cirurgia Veterinária da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias de Jaboticabal, explica que essa mudança de status dos animais altera também suas condições de vida, de saúde, e até mesmo os rumos da própria ciência. “No passado, os animais morriam em virtude de doenças infectocontagiosas. Hoje não mais, graças às vacinas e ao desenvolvimento da medicina veterinária. Se, duas décadas atrás, a expectativa de vida de um cão era de 10 a 12 anos, agora podemos nos deparar com cães que vivem entre 15 e 18 anos”, diz Nardi. Ele pondera que esta maior longevidade resultou no surgimento de novos problemas de saúde. “Quanto mais o animal envelhece, maiores são as chances de que venha a desenvolver câncer. E realmente, em decorrência do aumento da longevidade, estamos observando um aumento na incidência de certos tipos de câncer”, diz.
O resultado é que o câncer está se tornando a principal causa de morte entre esses animais de companhia. Em contrapartida, a oncologia veterinária tem experimentado um expressivo desenvolvimento no Brasil nos últimos anos. Graças a este desenvolvimento, hoje os veterinários do país aprenderam a prestar bastante atenção a um tipo específico de tumor devido a sua alta incidência. Trata-se do hemangiossarcoma (HSA) que atinge cerca de 20% dos pacientes veterinários. O conhecimento acumulado pelos pesquisadores brasileiros serviu de base para o artigo “Diagnosis, Prognosis and Treatment of canine hemangiosarcoma: a review based on a consensus organized by the Brazilian association of veterinary oncology (Abrovet)”, e foi publicado na revista Cancers.
Trata-se do primeiro consenso mundial sobre HSA em cães, um trabalho elaborado a partir da análise de um extenso arcabouço, envolvendo muitos pesquisadores e profissionais com larga experiência em tratamento de câncer. O artigo é o produto de um evento organizado pela Associação Brasileira de Oncologia Veterinária (Abrovet) para debater os recursos de diagnóstico e tratamento para as diversas versões desse tumor que podem afetar os cães. “O consenso tem como objetivo nortear o diagnóstico, tratamento e prognóstico do HSA, que é bastante frequente e pode atingir diferentes órgãos, como a pele, fígado e até mesmo coração”, diz Nardi. “O consenso é um documento bem elaborado e atualizado que serve como um norte, e auxilia profissionais nas escolhas de tratamentos, ao apontar quais são mais eficazes em cada caso.”
Classificação, diagnóstico e tratamento
De acordo com o consenso, hemangiossarcomas são divididos em duas categorias: o de ordem visceral e o não-visceral. O primeiro, como o nome indica, acomete as vísceras, como fígado, baço e rim, e tem o poder de se espalhar também para o coração, os pulmões, os ossos e outros órgãos do corpo. O segundo está relacionado com lesões na pele, cutânea e subcutânea, e muscular. A forma não-visceral da doença acaba sendo menos grave, pois, em geral, pela vantagem de ser visual, os pacientes são encaminhados para tratamentos mais rapidamente do que pode acontecer com a doença visceral.
A regra para o câncer em animais é a mesma que vale para os humanos: quanto antes ocorrer o diagnóstico, maior a chance de que o tratamento venha a funcionar. Por esta razão, a orientação é para que nenhuma lesão na pele seja menosprezada. “Nada impede que um tumor não tratado que se inicia na pele acabe avançando para os pulmões, fígado e baço. Também é possível que ele comece em algum órgão abdominal e atinja outros órgãos do organismo”, explica Nardi.
Segundo o docente, um dos pontos de destaque do artigo é a relação estabelecida entre a doença e a radiação solar. Os dados sobre HSA na população canina nos Estados Unidos apontam que 14% dos diagnósticos de hemangiossarcoma são cutâneos e aproximadamente 5% deles são tumores da derme. Já no Brasil, o consenso trabalha com números mais elevados. Aqui, entre 27% e 80% dos hemangiossarcomas são cutâneos, e 14% dos pacientes veterinários com câncer de pele apresentam essa variante. Ainda de acordo com dados apresentados no estudo, o excedente de casos brasileiros está relacionado a uma maior exposição à radiação solar. “Estamos mais expostos à radiação solar, especialmente da UVB, por sermos um país quente, com exceção de regiões mais ao sul”, diz Nardi.
O HSA apresenta alta prevalência em cães mais velhos, com idade entre 8 e 15 anos, com pouca pigmentação e poucos pelos, tais como ocorre nas raças pit bull, galgo, whippet, dálmata, boxer e beagle. Já animais das raças do tipo retriever, como labrador e golden, estariam mais propensas a desenvolver lesões cutâneas e musculares.
“É importante que os animais recebam radiação solar, mas com controle. Não podemos permitir que cães que apresentem pouca quantidade de melanina fiquem expostos ao sol do meio-dia. E às vezes, é o que eles gostam de fazer: ficam deitados no chão, com a barriga para cima, no sol intenso do meio dia, com o abdômen exposto que é justamente a parte do corpo onde não tem pelo”, diz Nardi. É justamente essa radiação solar que pode levar a um processo inflamatório da pele que pode contribuir para a formação de tumores.
Prevenir é melhor do que remediar
Atualmente o câncer é um grande problema para os animais de estimação. “Por isso, pensando na importância da prevenção, do diagnóstico e do tratamento precoces, é muito importante que se mantenham as consultas veterinárias em dia. A partir dos 8 anos, é importante que o tutor tenha o cuidado de levar esse animal anualmente para um check-up. Dessa forma, a probabilidade de descobrir uma lesão precocemente é maior, o que facilita o tratamento.”
É clichê, mas tanto para o câncer quanto para outras doenças, a prevenção é sempre a melhor alternativa. Então, além do check-up anual mandatório acima dos 8 anos, é fundamental evitar que eles estejam expostos ao sol das 10h às 16h, sobretudo as raças mais suscetíveis. Mas, se for inevitável sair nesse horário, já existem protetores solares especiais para cães.
Se antes a eutanásia era a única alternativa para animais doentes, hoje em dia a evolução da Veterinária, combinada ao fato de que muitas vezes tumores malignos apresentam uma progressão muito parecida com a que acontece no corpo humano, tem levado boa parte dos tutores a optar por terapias como as que são disponibilizadas nos tratamentos de humanos, como radioterapia, eletroquimioterapia, cirurgia e quimioterapia. Nos casos em que não é possível curar o animal o foco passa a ser proporcionar qualidade de vida. “Assim como a medicina para humanos, a medicina veterinária tem preconizado transformar o câncer em uma doença crônica, de forma que se possa reduzir as lesões e prolongar o tempo de vida, mas com qualidade de vida.”
Fotos acima: atendimentos no serviço de oncologia de cães e gatos do Hospital Veterinário Governador Laudo Natel. Crédito: acervo pessoal.