Novo Centro de Ciência Translacional abrigado no Cevap vai contribuir para soberania nacional na produção de biofármacos

Fábrica vai integrar programa dos Centros de Ciência para o Desenvolvimento da Fapesp. Em evento de lançamento, professores destacam importância estratégica da nova infraestrutura de pesquisa para o desenvolvimento de medicamentos biológicos no país.

A criação do Centro de Ciência Translacional e Desenvolvimento de Biofármacos, abrigado no Centro de Estudos de Venenos e Animais Peçonhentos da Unesp (Cevap), em Botucatu, representa o êxito de uma política de estado para o desenvolvimento da ciência e da tecnologia em São Paulo, e vai cumprir um papel estratégico para a soberania nacional em um futuro próximo.

Essa visão deu a tônica das manifestações de cientistas e de autoridades durante o evento de lançamento do centro, que ocorreu nesta segunda-feira (10) no Cevap. O novo centro faz parte do programa dos Centros de Ciência para o Desenvolvimento (CCD), criado pela Fapesp com o intuito de promover o avanço científico com vistas ao incremento de políticas públicas e à resolução de problemas sociais conhecidos, alvos da chamada pesquisa translacional.

O financiamento deste CCD-Fapesp é de R$ 10 milhões, a serem investidos em um período de cinco anos, e está alinhado a um conjunto de iniciativas que gravita em torno da fábrica de produção de amostras de biofármacos para pesquisas clínicas que está em construção na Fazenda Experimental do Lageado, em terreno vizinho ao Cevap.

A construção, que deve ser entregue até o início do ano que vem, foi concebida para ajudar a produção de biofármacos na travessia do chamado “vale da morte”, apelido dado à etapa de desenvolvimento de novos produtos que separa a pesquisa básica da aplicação clínica. É nesta fase que terminam por fracassar  muitos estudos promissores, em função da ausência de espaços adequados para a condução de testes clínicos iniciais que possam atestar a viabilidade da produção daquele biomedicamento em escala industrial. Os biofármacos são provenientes de estudos com moléculas com poder terapêutico ou preventivo, que resultam em vacinas, soros e anticorpos monoclonais (classe de biofármacos que mais cresce no mercado nos últimos anos).

“Estas substâncias têm um importante papel estratégico de segurança nacional, como ficou muito bem demonstrado durante a pandemia. Quem produz vacinas atende primeiro seus interesses nacionais, os seus amigos e depois os outros compradores. Portanto, desenvolver competência nessas questões é uma questão de segurança nacional”, afirmou o presidente da Fapesp, Marco Antonio Zago, durante o evento em Botucatu. “O Instituto Butantan tem uma linha de produção que não pode ser interrompida a cada momento para testar novos produtos potenciais que precisam ser produzidos num volume moderado (…) para que eles possam ser usados em testes clínicos, testados e validados. Então isso é fundamental, e é aqui que entra o Cevap. Nós estamos, pois, desenvolvendo o arcabouço de uma estrutura produtiva no estado para dar vazão ao trabalho de qualidade que se desenvolve em numerosos laboratórios”, disse.

O mercado global de biofármacos movimenta anualmente cerca de US$ 300 bilhões (R$ 1,5 trilhão) e é dominado por produtos biológicos importados, com demanda crescente no Sistema Único de Saúde (SUS) para doenças como Alzheimer, câncer, artrite reumatoide e outras doenças autoimunes. De acordo com o estudo “Biofármacos no Brasil” (2018), liderado pelo professor Mário Sérgio Salerno (Poli-USP) para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), embora seja complexa e necessite de muitos recursos, a pesquisa (e o posterior desenvolvimento) de biofármacos no Brasil tem de ser articulada como foco de políticas públicas, pois os altos custos de importação desses medicamentos têm diversos efeitos econômicos e de saúde pública. “O sistema público de saúde e os atores financeiros estatais (Finep, BNDES, Ministério da Saúde, MCTI) têm papel decisivo e precisam cumpri-lo”, indicam os autores do estudo.

Tal articulação foi o que fez o Cevap e a Unesp ao longo dos últimos anos. Em paralelo ao financiamento da Fapesp, foram costurados um acordo para a construção da fábrica de produção de amostras de biofármacos para pesquisas clínicas com o Ministério da Saúde (que arca com os custos da maior parte da obra), e um fomento para bolsas da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) para o programa de pós-graduação profissional em pesquisa clínica, oferecido pela Faculdade de Medicina da Unesp e pelo Cevap. No ano passado, também foi assinado um protocolo de intenções entre o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e o Cevap para a criação de um Centro Nacional de Biofármacos e Biomoléculas. Na cerimônia de lançamento da parceria com a Fapesp, na segunda, além de autoridades da Unesp e da Fapesp, estavam presentes Leandro Bortolozo Pedron, diretor do Departamento de Programas Temáticos da Secretaria de Políticas e Programas Estratégicos do MCTI; o senador Marcos Pontes, ex-titular do ministério; e Carlos Graeff, coordenador de ensino superior da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação do Estado de São Paulo.

“(A articulação do Cevap) É uma amostra clara de que os projetos muitas vezes são uma evolução constante. Às vezes, alguém diz ‘não consigo isso porque não tenho financiamento’. Você não tem o financiamento porque não tem o projeto. Se você tem grandes projetos, essas coisas acabam acontecendo”, disse o reitor da Unesp, professor Pasqual Barretti, ao Jornal da Unesp. “No complexo industrial da saúde, estamos dando um passo enorme para ultrapassar o chamado ‘vale da morte’, que é a distância que separa a pesquisa básica da aplicação clínica. São os primeiros passos. A ponte a ser transposta no vale da morte é longa, mas com certeza vamos conseguir e isso contribuirá muito para o desenvolvimento do Brasil e para o bem-estar da sociedade”, disse o reitor.

História

O Cevap, que completa 30 anos em 2023, acumulou o know-how para a investida no campo dos biofármacos ao longo das pesquisas que resultaram no desenvolvimento do selante de fibrina, criado a partir da mistura de uma enzima extraída do veneno da cascavel com fibrinogênio de sangue de búfalos, e do soro antiapílico, contra intoxicação após picadas de abelhas. Em 2010, quando o Ministério da Saúde lançou uma chamada pública via CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) com o objetivo do desenvolvimento de um novo produto, o Cevap foi contemplado.

“Era o selante de fibrina. Era preciso desenvolver o produto, fazer o ensaio clínico e publicar os dados. O artigo científico foi publicado em 2021. Foram 11 anos para preparar o produto, atravessar o vale da morte e fazer o ensaio clínico no paciente. O soro antiapílico começou em 2005, demorou um pouco menos”, lembra o pesquisador Benedito Barraviera. Ele está escrevendo um livro sobre a história do Cevap que detalha o percurso que está resultando na fábrica de produção de amostras de biofármacos para pesquisas clínicas. “Então tivemos que aprender toda essa transposição do vale da morte. Aí, quando a gente aprendeu tudo isso, buscamos recursos para a construção da fábrica-escola”, diz.

Coordenador executivo do Cevap, o docente Rui Seabra Ferreira Junior lembra que, até o início de funcionamento da fábrica no câmpus de Botucatu, existem mais desafios a superar, como o jurídico e o regulatório. O plano é pôr em prática acordos do tipo CMO (Contract manufacturing organization) ou CDMO (Contract Development and Manufacturing Organization), comuns no mercado farmacêutico mundo afora, mas que ainda carecem de regulamentação específica no Brasil. Tais acordos são firmados vinculando os ensaios iniciais a um contrato. “Temos um grupo trabalhando junto para cuidar de todo o aspecto jurídico, dialogando com a Anvisa e alinhando novas possibilidades de atuação de uma facility como esta”, afirma o coordenador do Cevap.

A produção de biofármacos é um processo complexo porque são usados organismos vivos, o que requer condições específicas e profissionais qualificados para a atividade. Segundo informações da Comissão Europeia reproduzidas no relatório do Ipea, o processo de fabricação de um biofármaco exige cinco vezes mais ensaios, em comparação com um medicamento tradicional. Facilities (equipamentos multiusuários de infraestrutura de pesquisa) como a fábrica de produção de amostras de biofármacos para pesquisas clínicas ajudarão a incrementar o ecossistema de inovação da própria Unesp, com o possível envolvimento de startups e spin-offs de base biotecnológica, prevê o professor Carlos Américo Pacheco, diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo da Fapesp.

“Isso aqui pode ser uma facility de expressão nacional extraordinariamente importante para este tipo de desafio que a gente tem pela frente”, disse Pacheco durante o evento.

Foto: Martha Martins de Morais/ACI Unesp.