“Sem anistia”, dizia uma faixa desfraldada em pleno segundo tempo do jogo entre Palmeiras e Botafogo de Ribeirão Preto, em 19 de janeiro, válido pela segunda rodada do campeonato paulista. A faixa, levada pela torcida Resistência Caipira, terminou por atrair mais atenção do que o futebol apresentado na partida entre as duas equipes na Arena Eurobike, em Ribeirão Preto, que terminou num magro 0X1 para o Palmeiras.
Segundo os integrantes, a faixa era um protesto contra o gravíssimo atentado à democracia, às instituições e aos símbolos nacionais ocorrido no dia 8 de janeiro, quando uma turba aproveitou um suspeitíssimo apagão das forças militares e de segurança do DF para promover a destruição das sedes do STF, do Congresso e do executivo federal. E, no entanto, o mesmo mote já circulava antes mesmo que estes terríveis acontecimentos tivessem lugar.
Ainda durante a cerimônia de posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, uma semana antes dos ataques, era possível escutar parte da multidão presente entoando a palavra de ordem “sem anistia”, a certa altura do evento. O canto buscava combater certas sugestões, veiculadas na mídia por autoridades como o ex-presidente Michel Temer e o ex-ministro do STF Marco Aurélio Mello, de que deveria ser criado algum instrumento legal para isentar de responsabilização indivíduos que desempenharam papéis importantes em algumas das polêmicas iniciativas do governo Jair Bolsonaro, incluindo aí o próprio Bolsonaro.
De lá para cá, a expressão “sem anistia” foi reproduzida diversas vezes, e por diversas vozes. “Deus não fez anistia”, disse o ministro da Justiça Flavio Dino dois dias após os ataques em Brasília. “É preciso punir todos aqueles que participaram dos atos fascistas-terroristas de 8 de janeiro, dos crimes ambientais, dos crimes contra a vida e contra a democracia. A palavra de ordem “SEM ANISTIA” deve ser um imperativo do Partido para culpabilizar os responsáveis”, declarou uma resolução do Partido dos Trabalhadores divulgada nesta quinta, 16.
Para os especialistas ouvidos pelo Jornal da Unesp, embora leis de anistia e iniciativas semelhantes tenham desempenhado um papel importante na história pregressa do Brasil, permitindo que o país contornasse muitas crises importantes e pudesse dar prosseguimento à vida política nacional por meio das instituições, não há por que adotar o recurso neste momento.
Projetos de anistia no Congresso Nacional
No último 24 de novembro, o então deputado federal Major Vitor Hugo (PL-GO) protocolou o Projeto de Lei 2858/22 para conceder a anistia a todos que se manifestaram publicamente para contestar os resultados da última eleição presidencial. Isto incluiria as milhares de pessoas que se reuniram nas frentes dos quarteis a partir do dia 31 de outubro, pedindo intervenção militar, mas potencialmente poderia beneficiar também outros grupos de manifestantes, como caminhoneiros e ativistas que fecharam rodovias do país buscando causar tumulto.
No dia 12 de dezembro, o deputado federal José Medeiros (PL – MT) entrou com o PL 2954/2022 para reforçar o PL 2858/2022. O texto amplia a solicitação de anistia para alcançar “a todos aqueles que, no período entre 1º de junho de 2022 até a data de entrada em vigor desta Lei, tenham se manifestado, por meio de atos individuais ou coletivos, ou tenham financiado ou participado de tais manifestações e protestos, relacionados às eleições de 2022 e temas a elas pertinentes”.
Fora do Congresso, a ideia de buscar caminhos para evitar a punição desse segmento da população brasileira também tem contado com defensores. Ainda em setembro passado, durante um evento organizado por um jornal, o ex-presidente Michel Temer declarou que, qualquer que fosse o vencedor das eleições presidenciais, o eleito deveria fazer um pacto nacional em prol da pacificação do país. Esse pacto poderia incluir alguma forma de anistia. “O ideal seria fazer um grande pacto nacional, como aconteceu na Espanha”, disse. “Quando falo nesse pacto de pacificação, estou imaginando que seria verificado, se houver anistia, o que é anistiável e o que não é. Mas seria um gesto de harmonia no país.”
Em entrevistas em novembro e dezembro, o ex-ministro do STF Marco Aurélio Mello defendeu que o presidente eleito buscasse “entendimento para combater as mazelas do Brasil” e que contemplasse a possibilidade de concessão da graça a Bolsonaro. “Seria pela pacificação do país. E para afastar esse antagonismo reinante que é muito ruim, é péssimo”, afirmou. “É um ato soberano do presidente da República (a concessão da graça). Que o empossado em 1º de janeiro perceba essa possibilidade, mas vamos ver”, disse.
Já em 23 de janeiro, também numa entrevista, a ideia foi retomada pelo general da reserva Sergio Etchegoyen. O militar, que foi chefe do Gabinete de Segurança Institucional durante o governo Temer, defendeu, ainda que de forma indireta, a ideia de anistia, ao criticar as investigações conduzidas pela Polícia Federal e pelos órgãos de segurança, sobre um eventual papel das forças armadas na cadeia de eventos que levou aos ataques do dia 8 de janeiro. “É a velha técnica de procurar culpados”, declarou. “E como é que se pacifica o país a partir daí? Como é que se pacificam as forças armadas?”, indagou.
Mais de 40 anistias já concedidas no Brasil
No Brasil, o código penal prevê três formas para extinguir punições. São elas a concessão da graça, do indulto e da anistia. Enquanto a graça pode ser concedida pelo presidente, e beneficia indivíduos isolados, a anistia tem caráter coletivo e só pode ser promulgada por meio de lei do Congresso Nacional. No Brasil Republicano, o processo de anistia mais conhecido e discutido foi o que se deu a partir dos anos 1970, e articulou-se a partir das reivindicações da sociedade civil em resposta às prisões, condenações e perseguições ocorridas durante a ditadura militar (1964 – 1985). Esse processo culminou com a Lei de anistia de 1979.
Paulo Cunha, professor da Faculdade de Filosofia e Ciências do câmpus de Marília, diz que etimologicamente falando, a palavra “Anistia” pode conter em si dois significados opostos. Um deles é o de reminiscência (como no termo anamnesis) e o outro de olvido, perda total ou parcial da memória (amnésia). “Em função do seu caráter político, a etimologia também permite remeter à ‘ação de trazer à memória ou à lembrança’”, diz. No sentido prático, o conceito está relacionado “com o esquecimento e o perdão em sentido amplo, nas instâncias políticas e penais. Os delitos são perdoados e as condenações esquecidas”, diz.
Cunha diz que a história republicana brasileira registra um total de 48 episódios de anistia. A primeira ocorreu ainda em 1895, durante o governo Prudente de Moraes, e teve por objeto os militares que participaram de movimentos rebeldes no início da República, em especial os da Revolução Federalista. A mais recente foi a lei de 1979. “Em quase todos esses episódios as anistias apresentaram um tom conciliatório”, analisa o docente.
Cunha acredita que, no momento, não há a menor condição política para se considerar anistia aos envolvidos no dia 8 de janeiro, mas não descarta a possibilidade de que haja “responsabilização seletiva ou até mesmo a absolvição” no futuro.
Alberto Aggio, professor da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, do câmpus de Franca, ressalta que a opção feita pelas elites políticas no fim dos anos 1970 para encaminhar uma lei de anistia, que beneficiasse tanto os indivíduos presos, exilados e perseguidos quanto as autoridades civis e militares responsáveis por esse processo, se baseava em uma perspectiva de construção do futuro e de encaminhar o país para um regime democrático.
“[Sem a Anistia] não haveria democracia no Brasil. Dela derivaram a Constituinte e a Constituição de 1988, e também os governos democráticos. Havia razões para fazer uma negociação política, no lugar de um processo sangrento e cheio de questões abertas e com levantes militares, como aconteceu na Argentina. Ou que poderia resultar em 30 anos de luta armada, como ocorreu na Colômbia”, analisa. “Pensar que o processo brasileiro é apenas conciliador, e que por isso nada foi resolvido, é falta de visão política da história brasileira”, diz.
Em suas redes sociais, o Major Vitor Hugo se apressou em afirmar que o PL de sua autoria não tem a intenção de anistiar atos de “vandalismo e violência”, e que “a individualização das condutas precisa ser bem conduzida a fim de separar manifestantes pacíficos dos criminosos”. Porém, logo na sequência apressou-se em insinuar que os ataques haviam sido perpetrados por indivíduos infiltrados, pois ações violentas “não são do feitio da direita”.
“Meu PL 2858/22 prevê anistia para quem se manifestou pacificamente, desde 30/10. Exclui quem cometeu crimes contra a vida e a integridade física de pessoas, de sequestro ou cárcere privado, terrorismo, tortura, tráfico de drogas e crimes hediondos, em observância à nossa CF. A concessão da anistia para os que não cometeram os crimes anteriormente citados pode ser um passo importante para a pacificação dos ânimos e a reconciliação da Nação. Esse meu maior objetivo com a proposição: paz e reconstrução”, escreveu.
Na conjuntura atual, Aggio pensa que é um contrassenso debater anistia. “Essas palavras ‘sem anistia’ giram no vazio. Primeiro, porque as pessoas ainda estão sendo processadas. Estão detidas, não condenadas e, portanto, não existe um processo para que elas sejam anistiadas”, afirma.
Ele avalia que a tentativa de golpe do dia 8 de janeiro insere-se em uma “cultura golpista” que existe no Brasil, por isso acredita que os atos contra a democracia precisam ser processados e punidos. Mas que não acredita que os PLs em questão possam ser aprovados. “A Lei de anistia de 1979 foi baseada em um consenso na sociedade e no Parlamento que não existe hoje [em relação ao dia 8 de janeiro]”.
Anistia: benefícios desiguais
Embora a Lei de Anistia de 1979 tenha ficado conhecida como “ampla, geral e irrestrita”, ela não aconteceu sem embates. De um lado, os Comitês Brasileiros pela Anistia (CBAs) tinham a intenção de divulgar as denúncias de torturas, assassinatos e outras formas de abuso cometidas pelo regime militar. E, do outro, o governo tentava aprovar uma transição política de tom conciliatório, que o eximisse dos crimes cometidos. Dessa forma, com a adoção desta fórmula, presos políticos e exilados políticos contrários ao governo foram beneficiados, mas muitos crimes de tortura, assassinatos e desaparecimento cometidos pelas forças armadas também foram enterrados.
Cunha, que é especialista em história da esquerda militar, diz que a anistia concedida aos militares foi caracterizada pelo que chamou de “dueto desarmônico”. Na prática, ele diz que houve historicamente a tendência de anistiar os militares aliados à direita, mas nunca aqueles à esquerda.
“Os militares e policiais não devem ser vistos como um bloco homogêneo. São instituições conservadoras, sem dúvida, mas existe uma esquerda militar que sempre esteve no campo democrático. Quando se faz referência às ações protagonizadas pelos praças, como subtenentes e marinheiros, há uma tendência a não reconhecer suas ações políticas como legítimas, e sim como quebra de hierarquia”, diz. “Já no caso dos oficiais, aqueles alinhados com a esquerda eram acusados de impatrióticos e subversivos, enquanto que os de direita recebiam elogios como patriotas. Esse grupo conseguia obter anistia em sua plenitude, incluindo o perdão dos seus crimes e a volta às forças armadas. Esse padrão duplo foi uma constante na história”, diz.
Um exemplo foi o da Revolta da Chibata, em 1910, cujos marinheiros participantes, embora tenham sido anistiados, foram presos poucas semanas depois. Alguns foram torturados, outros exilados. Também não houve anistia integral para os militares partícipes da Intentona Comunista, de 1935. Outro elemento de distinção está na disparidade do período de tempo transcorrido para que os indivíduos dos diferentes grupos possam desfrutar dos benefícios da anistia. “Algumas reparações históricas decorrentes da Revolta da Chibata, de 1910, só foram acontecer em 1997”, diz Cunha.
Foto acima: ocupantes de acampamento em frente ao quartel federal do exército, no DF, presos após os ataques de 8/1. Reprodução das redes sociais.