Posse de Lula sinaliza novos tempos para a democracia e a sociedade no Brasil, mas governo deverá enfrentar pressões e desafios políticos vindos inclusive da sua base

Cientista político da Unesp de Marília compara frente ampla que elegeu novo presidente à mobilização que pôs fim ao período militar, mas pondera que novo mandatário “não recebeu cheque em branco” por parte de eleitores, e temas sensíveis, como cobrança por revisão da reforma trabalhista, opõem setores diferentes de apoiadores.

Neste último domingo, 1º de janeiro, Luiz Inácio Lula da Silva tornou-se o 39º presidente da história do Brasil após uma concorrida cerimônia de posse que levou milhares de apoiadores à Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Ao invés da tradicional passagem da faixa presidencial do presidente em exercício para o presidente eleito, Lula recebeu o adereço das mãos de um grupo de pessoas comuns que representaram diversos segmentos do povo brasileiro.

Durante os discursos que proferiu, primeiro no Congresso e depois no Palácio do Planalto, o presidente realçou a necessidade da defesa da democracia  e o foco no combate à pobreza e à fome. Ao tratar do tema da fome durante a fala no parlatório do Palácio do Planalto, de frente para a multidão, Lula se emocionou e chorou.

Ele também fez críticas ao governo anterior, sem citar o nome do ex-presidente Jair Bolsonaro, que viajou para os EUA às vésperas do evento para não passar a faixa presidencial.

Apesar das dúvidas e do clima de apreensão em torno da posse, suscitado pelo medo de algum atentado ou episódio de violência, Lula subiu no tradicional Rolls Royce da Presidência, acompanhado da primeira-dama, Janja da Silva, do vice-presidente, Geraldo Alckmin, e da mulher do vice, Lu Alckmin.

O petista foi oficialmente empossado no Congresso, em cerimônia diante de parlamentares e do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).

Em discurso que durou aproximadamente 30 minutos, o presidente falou em “democracia para sempre” e disse também que seu governo vai buscar fomentar a união do país e evitar o espírito de revanchismo. Mas, sem citar nomes, afirmou que irregularidades ocorridas durante a pandemia devem ser investigadas, pois envolvem questões de um ex-governo negacionista, obscurantista e insensível à vida.

“Hoje, nossa mensagem ao Brasil é de esperança e reconstrução. O grande edifício de direitos, de soberania e de desenvolvimento que essa nação levantou a partir de 1988, vinha sendo sistematicamente demolido nos anos recentes. É para reerguer esse edifício de direitos e valores nacionais que vamos dirigir todos os nossos esforços”, disse Lula.

Ao sair do Congresso, Lula foi para o Palácio do Planalto e subiu a rampa. Ali, protagonizou uma das cenas mais emblemáticas desta posse, ao subir acompanhado de Janja, cidadãos comuns e a cachorrinha do casal, chamada de Resistência, em referência ao período em que Lula esteve detido.

No alto da rampa, a faixa passou pelas mãos dos representantes do povo e foi finalmente entregue a Lula por Aline Sousa, uma mulher preta de 33 anos, catadora desde os 14.

Já dentro do Palácio do Planalto, recebeu cumprimentos de líderes estrangeiros. Entre eles, estavam 17 chefes de Estado. Em seguida, deu posse a seus 37 ministros.

Ainda no Palácio do Planalto, Lula assinou os primeiros atos administrativos de seu mandato. Um deles foi a medida provisória que garante o pagamento de R$ 600 do Bolsa Família. Assinou decreto que altera a política de Bolsonaro de flexibilização de acesso às armas e já prevê reavaliar sigilos impostos pelo ex-presidente Jair Bolsonaro em determinados documentos.

Para Antonio Carlos Mazzeo, cientista político  e professor da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp, câmpus de Marília, a posse de Lula sinaliza novos tempos para a democracia e a sociedade brasileiras, mas o governo enfrentará uma série de pressões e desafios políticos. “A posse de Lula 3 expressou um caráter de frente ampla que lembrou a experiência do fim do período da ditadura militar brasileira”, compara. A presença de grupos da sociedade que nos últimos tempos ficaram fora de cena  da vida brasileira, como os trabalhadores e trabalhadoras, ambientalistas, negros, índios, LGBTs e indivíduos de grupos minoritários, entre outros que foram representados na posse “sinaliza novos tempos da democracia no Brasil” diz Mazzeo. “Entretanto, o governo irá sofrer uma série de pressões de diferentes setores. A sociedade brasileira não está dando uma carta branca ao Lula. Apesar do bom apoio popular, há uma construção política atípica no ar, que açambarca tanto a oposição e os manifestantes de extrema direita quanto o grupo de apoiadores que visa espaços dentro deste governo”.

Segundo o cientista político, apesar de Lula ter feito um discurso amplo e democrático ainda pairam questionamentos de diferentes setores. “Existem dois núcleos importantes no processo de luta da sociedade brasileira. Uma questão, que vem na esteira de uma pressão do movimento dos trabalhadores organizados, envolve a revisão da reforma trabalhista e da reforma da previdência. Isso não pode passar impune. Essa é uma pressão inevitável que irá chegar para Lula”.

Ainda de acordo com Mazzeo, o presidente deverá dialogar com os movimentos para não sofrer politicamente como a ex-presidenta Dilma Rousseff. “Para atingir o avanço do processo brasileiro e construir uma governabilidade estável, Lula precisa ter o apoio do povo na rua, da massa trabalhadora, dos sindicatos e dos grupos considerados minorias, e que não são minorias. Esse deve ser o caminho para obter apoio amplo da sociedade brasileira”.

Ouça a íntegra da entrevista ao Podcast Unesp no link abaixo.

Foto acima: Cerimônia de posse do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva no Palácio do Planalto. Tânia Rego/Agência Brasil.