A Emenda Constitucional nº 95/2016, a denominada PEC do Teto de Gastos, apresentou basicamente duas finalidades: a de propiciar maior rigidez na disciplina fiscal, por período de 20 anos, e a de induzir a revisão das prioridades orçamentárias.
A intenção de impor maior disciplina fiscal, ou seja, a de impossibilitar que as despesas públicas aumentassem no decorrer dos anos em proporção maior do que as receitas, foi garantida pela obrigatoriedade de que os gastos previstos no orçamento anual passassem a ser, em termos reais, fixados. Esse congelamento ainda hoje se mantém, porque a alteração do valor total das despesas públicas no ano subsequente passou a ser corrigida pelo valor da inflação observada no ano anterior.
Quanto à outra intenção – a de rever a hierarquia das escolhas das despesas públicas –, por estar subentendida, não havendo no texto da PEC a explicitação legal, não foi debatida com a ênfase devida à época da sua aprovação. E ainda padece da falta de um debate consistente. À falta desse debate, optou-se posteriormente pelo mecanismo das Emendas de Relator e o consequente “orçamento secreto”. Ambas as distorções subvertem o papel político originário do orçamento público, que desde o século 12, na Inglaterra, impõe limites e meios de controle aos excessos do poder do mandatário, ao invés de garantir e estabelecer desatinos e despesas no mínimo questionáveis.
Essa necessidade de dar prioridade ao que de fato merece na elaboração do orçamento público – implícita na PEC de 2016 – decorria de um fator importante: repensar as atribuições e responsabilidades em conjunto com as necessidades de financiamento dos entes federados. Essa partilha de recursos e responsabilidades, é necessário observar, está sendo postergada há décadas — mais precisamente desde o governo José Sarney. Um dos ministros à época, Maílson da Nóbrega, manifestava-se, com insistência até, de que atribuições e competências na prestação de serviços à população deveriam ser equivalentes aos repasses recebidos ou às arrecadações realizadas.
Em outras palavras, o que cada poder estadual e municipal recebesse de receitas arrecadadas ou repassadas deveria ser acompanhado das equivalentes responsabilidades nas prestações de serviços. Esse debate poderá agora ser concluído, quando o tema do federalismo fiscal, complexo em sua natureza e efeitos, vier a ocorrer em sintonia com a reforma tributária que, ao que tudo indica, poderá, finalmente, ser aprovada no ano de 2023.
Outro fator a considerar é que a revisão da hierarquia das despesas – que significa bem alocar recursos entre projetos, programas, funções, fundos ou partilhas constitucionais – detém o potencial de também rever a técnica orçamentária hoje utilizada e o decorrente processo de elaboração do orçamento público. Isso pode ocorrer porque a atualmente propalada rigidez orçamentária decorre mais da inércia, ou seja, da forma de apresentar a cada ano a proposta orçamentária corrigida, do que da rígida vinculação de despesas ou ainda por excessivas despesas com pessoal.
Quanto a esse último aspecto, que envolve os salários praticados na União, o que se recebe por trabalhar na condição de servidor federal, em média – à exceção do Poder Judiciário e ilhas de privilégios – não é abusivo nem tampouco muitas vezes acima do que se pratica nas empresas. As informações de que dispomos sobre esse tema, ou apresentam as distorções existentes nos supersalários inflados por benesses vergonhosas, ou são comparações com os salários praticados no mercado, que são historicamente baixos no Brasil. O trabalho em nosso país é mal remunerado; basta comparar a massa de salários com os rendimentos de outras naturezas para facilmente perceber isso.
Dado tudo isso, é fácil concluir que o Teto de Gastos não cumpriu seu papel histórico. Tornou-se inócuo e inadequado. Ademais, tendo em vista a realidade dos fatos – principalmente dos últimos quase quatro anos, quando o “Teto foi furado” no valor de centenas de bilhões de reais –, essa forma de limitar despesas públicas já foi revista em seus fundamentos. A prática já fez a revogação do Teto, há muitos números que assim o comprovam.
É bom também ressaltar que mesmo havendo déficits elevados, decorrentes da perfuração do limite neste período peculiar dos três últimos anos, o que mais fez crescer a dívida pública foi a exponencial elevação das taxas de juros, determinadas pelo Banco Central. Esse se tornou talvez exageradamente independente ou excessivamente comprometido com a garantia de rentabilidades financeiras em nome de uma pretensa politica anti-inflacionária.
O que se está a propor agora, via nova Proposta de Emenda à Constituição, desta feita denominada como “PEC da transição”, reforça a percepção de que política fiscal envolve diversos componentes e não somente o fluxo de caixa do Tesouro Público e nem tampouco exigências de parcela da atividade econômica que sobrevive por meio da especulação. A equação entre capacidade contributiva e atendimento às demandas sociais é bem mais complexa e abrangente, principalmente em um país sob acentuadas desigualdades sociais, regionais e econômicas.
A conjuntura exige, ainda, considerar a sua tensão e as suas implicações. Constata-se haver grupos políticos violentos, descontrole estatal no acesso a armamentos e munições e expectativas elevadas no sucesso de um governo junto com as apostas no seu fracasso. Nessas condições desfavoráveis, haverá por obrigação reconstruir um país desarticulado, fragilizado e até traumatizado. Isso tudo não permite que aspectos isolados prevaleçam ou ofusquem o que de fato está em jogo. Além disso, para o ano de 2023 todas as perspectivas são de retração econômica acentuada e a política anticíclica se fará obrigatória.
Naturalmente o aspecto da disciplina fiscal e, portanto, da relação com a dívida pública não pode ser esquecido quando dessa aprovação da nova PEC. Caso não seja proposta alguma forma de disciplinamento alternativo à PEC nº 95/2016, que se revele viável, os efeitos na política de rendas no longo prazo poderão anular qualquer boa iniciativa. No entanto, é importante observar, não deve uma democracia ser orientada por especuladores financeiros que amealham ganhos bilionários por meio de instabilidades e incertezas. A preocupação maior de qualquer governo sério sempre será social, de promoção de desenvolvimento econômico, de respeito ao meio ambiente e de garantias às instituições.
Por conclusão, o que o momento exige é recuperar a política, garantir consensos, promover ganhos sociais que mitiguem desigualdades, eliminar a insegurança alimentar, garantir a produção sustentável, iniciar um novo ciclo de desenvolvimento, promover reformas estruturantes e, sobretudo, neutralizar desatinos e desatinados. Não é agenda fácil e nem tampouco de um só. O necessário é a grande união simbólica que resgate o verdadeiro patriotismo.
Alvaro Martins Guedes é professor do curso de Administração Pública da Unesp, câmpus de Araraquara.
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