Celso Lafer receberá título de Doutor Honoris Causa pela Unesp em novembro

Em entrevista ao Jornal da Unesp, jurista e diplomata discorre sobre sua trajetória na academia e no serviço público, que inclui passagens pelos ministérios das Relações Exteriores e da Indústria e Comércio e a presidência da Fapesp.

No próximo dia 23/11, o jurista Celso Lafer será agraciado com o título de Doutor Honoris Causa pela Unesp.  Professor-titular aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Celso Lafer construiu uma trajetória que se destaca pela grande diversidade de funções de alto nível que desempenhou, tanto na academia quanto como funcionário de Estado, e também junto a órgãos internacionais e multilaterais.

Entre os anos 1990 e o começo dos anos 2000 ele atuou por duas vezes como ministro de Relações Exteriores, durante os governos Fernando Collor de Melo (1990 – 1992) e Fernando Henrique Cardoso (1995 – 2002), e neste também ocupou o ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. Foi também embaixador do Brasil junto à Organização Mundial do Comércio e à Organização das Nações Unidas. Na OMC presidiu o órgão destinado a solução de controvérsias, e na ONU integrou o Conselho Executivo destinado a temas relacionados ao desarmamento, indústria e comércio. Em São Paulo, presidiu a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) entre 2007 e 2015. Ele é integrante da Academia Brasileira de Ciências, da Academia Paulista de Letras e, desde 2006, ocupa a cadeira 14 na Academia Brasileira de Letras.

A outorga do título de Doutor Honoris Causa a Celso Lafer foi aprovada por unanimidade no dia 1º de julho, durante sessão do  Conselho Universitário da Unesp. A proposta do título de Doutor Honoris Causa fora encaminhada em 27 de julho de 2020 pelo professor Marcos Cordeiro Pires, da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) do câmpus de Marilia, endossada pelo Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI) da Unesp e recebeu parecer favorável do professor Milton Lahuerta, da Faculdade de Ciências e Letras (FCLar) do câmpus de Araraquara.

O título de Doutor Honoris Causa é a mais alta honraria concedida pela Universidade e está destinado a personalidades que se destacam pelo comprometimento com valores humanísticos intrínsecos à própria missão universitária. De forma mais literal, a “personalidades que se tenham distinguido, seja pelo saber, seja pela atuação em prol das artes, das ciências, da filosofia, das letras, da promoção dos direitos humanos, da justiça social, dos valores democráticos ou do melhor entendimento entre os povos”.

Em entrevista ao Jornal da Unesp, ele discorre sobre os desafios que enfrentou nos períodos à frente do Ministério das Relações Exteriores e da Fapesp, e comenta os atuais conflitos no cenário das relações internacionais e a necessidade de uma guinada na política externa brasileira nos próximos anos.

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Durante a sua primeira passagem à frente do Ministério das Relações Exteriores, o senhor geriu a organização e foi vice-presidente da conferência Rio-92, o primeiro encontro de líderes mundiais em torno dos temas da ecologia e da sustentabilidade. Olhando em retrospecto, qual o senhor crê que tenha sido o legado global da conferência? E de que forma ela impactou o Brasil?

Celso Lafer: A Rio-92 foi um momento solar da diplomacia brasileira, do qual guardo a mais viva lembrança. Ampliou a credibilidade internacional do país e abriu construtivo espaço para o lugar do Brasil no mundo por meio do encaminhamento de um tema de alcance global.

Foi o maior evento internacional sediado em nosso país. A sua realização representou uma grande e bem-sucedida oportunidade para uma ação diplomática brasileira que reposicionou, no clima de cooperação internacional então vigente, na interação interestatal com os membros da comunidade internacional, o alcance de uma abrangente agenda do meio ambiente.

No andamento da Conferência, e para equacionar os problemas pendentes, foi mobilizada uma excepcional equipe de experientes e qualificados diplomatas. Foi o que me permitiu, na condição de Chanceler do Brasil, e como vice-presidente “ex officio” da Conferência, encontrar caminhos e aproximar posições.

No exercício do papel de tertius institucional, o Brasil, lastreado no seu capital diplomático, foi uma força de equilíbrio e moderação na edificação do consenso nas grandes questões do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável, propostas na substantiva agenda de sua convocatória.

Na Rio-92, a diplomacia brasileira beneficiou-se da sensibilidade e das características de um país como o nosso, apto a entender as perspectivas das polaridades Norte-Sul, e com o locus standi que provinha da indispensabilidade da cooperação brasileira no encaminhamento global das grandes questões ambientais.

O legado da Rio-92 é da maior importância. Teve o significado inaugural de consolidar de maneira duradoura na agenda internacional os temas do meio ambiente e sua constitutiva interligação com o desenvolvimento sustentável – conceito que superou na Rio-92 os problemas que, devido à polaridade Norte-Sul, limitaram o alcance da Conferência de Estocolmo. Foi o evento no qual se celebrou a assinatura das duas convenções internacionais até hoje as mais importantes sobre o meio ambiente: a Convenção das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas e a Convenção das Nações Unidas sobre Bio-Diversidade. Estas têm a natureza de tratados-quadro, e a periodicidade das reuniões de suas partes contratantes – as COPs – tem se beneficiado de uma engenharia normativa que vem permitindo o aprofundamento de suas normas de mútua colaboração, mantenedoras da continuidade da dinâmica do direito internacional do meio ambiente.

Na Rio-92, logrou-se adotar um ambicioso programa ambiental para o futuro: a Agenda 21. Trata-se de um documento de grande envergadura. Foi a fonte de inspiração que levou à moldura das diretrizes da ONU relacionadas aos múltiplos objetivos do desenvolvimento sustentável, que hoje impregnam, no plano interno, a vida dos países.

Permito-me destacar, em conclusão, a vis directiva da Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, que emanou da Rio-92. A Declaração, na arquitetura normativa dos seus 27 princípios, é um “road map”: traça os rumos do desenvolvimento progressivo do Direito Internacional do Meio Ambiente e da sua interpenetração nas legislações nacionais.

Sistema multilateral de comércio está em crise

O senhor também foi chefe da missão brasileira junto à OMC, e também atuou no órgão de solução de controvérsias da OMC. Como enxerga o atual estado do regime multilateral de comércio, especialmente considerando as controvérsias que estão engajando as grandes potências?

Celso Lafer: A OMC foi a primeira organização internacional criada no pós-guerra fria. Resultou de uma avaliação dos negociadores dos textos, que emanaram da Rodada Uruguai e que tinham se diluído na década de 1990, sobre os conflitos de concepção quanto à organização da ordem comercial internacional. É o que ensejou a institucionalização de um sistema multilateral de comércio de alcance geral, lastreado em normas voltadas para conter a ação unilateral dos seus membros na matéria. O adensamento da juridicidade, que contrasta com a prévia experiência do GATT, baseava-se na ideia de que as normas assegurariam a previsibilidade das expectativas, estimulando as oportunidades da expansão internacional do comércio.

Um dos pilares da OMC é o seu sistema de solução de controvérsias que partiu do pressuposto de que os contenciosos comerciais se caracterizam por ser conflitos de interesse, passíveis de soluções e encaminhamentos pelos procedimentos jurídicos acordados na Rodada Uruguai. O adensamento da jurisdicidade na OMC, do qual seu sistema de soluções de controvérsia é um paradigma, foi uma oportunidade para o Brasil afirmar, por meio do Direito, os seus interesses no plano do comércio internacional.

Foi por isso que, como Embaixador em Genebra, dediquei-me a fortalecer as competências técnicas da nossa diplomacia para ampliar o locus standi do nosso país neste campo. A isto dei grande dimensão como Chanceler criando um órgão próprio no Itamaraty dedicado ao setor de contenciosos que veio a ser expressão do qualificado vigor da nossa diplomacia econômica, que obteve reconhecimento internacional. O Brasil foi muito bem-sucedido na sua atuação no sistema de solução de controvérsias.

Esse sistema está em crise. A manifestação mais ostensiva da crise resultou da impossibilidade de recompor o Órgão de Apelação, a segunda instância do sistema. Ela teve início quando os EUA, valendo-se da regra de consenso, foi bloqueando a recomposição do Órgão de Apelação, situação que persiste e compromete a efetividade e o alcance do sistema. São muitos os fatores que estão na raiz da crise. Uma das mais significativas foi o persistente impasse do pilar negociador da OMC, que ficou patente pela impossibilidade político-diplomática de levar adiante o abrangente mandato negociador da agenda de desenvolvimento de Doha, de cuja elaboração participei como Chanceler na Conferência Ministerial de 2002.

Essa impossibilidade traduziu significativas dificuldades de se obter consenso em função, inter alia, dos deslocamentos de poder econômico no plano internacional, como a que resultou da emergência da China; do mais significativo poder político dos países em desenvolvimento na OMC; das transformações do comércio mundial na era digital e da difícil interação para o encaminhamento equilibrado nas negociações de temas tradicionais, e de temas ligados às aspirações de lidar com as novas exigências da pauta do comércio internacional.

O esvaziamento do pilar negociador resultou na preeminência do pilar do sistema de soluções de controvérsias que colocou em questão o equilíbrio institucional previsto na visão dos acordos emanados da Rodada Uruguai. Daí a sobrecarga do sistema de solução de controvérsias não só em matéria de volume de disputas, mas sobretudo na amplitude com o qual foi enfrentando e preenchendo o concreto das lacunas provenientes da abrangência do ordenamento jurídico da OMC. Disso proveio uma insatisfação, numa organização tradicionalmente conduzida por seus membros (“member driven”), do que foi visto (injustamente no meu entender) como um “ativismo judicial”.

Estas são facetas da profunda crise do sistema multilateral do comércio. Trata-se de uma realidade distinta da que enfrentei como Embaixador em Genebra e Chanceler de FHC e daquelas com as quais se confrontou Celso Amorim como Chanceler de Lula que se empenhou em fazer avançar o pilar negociador do mandato da agenda de desenvolvimento de Doha.

O senhor ocupou por duas vezes o cargo de ministro das Relações Exteriores do Brasil. Quais considera terem sido os principais desafios que enfrentou durante os períodos de sua gestão?

Celso Lafer: Vou responder muito sinteticamente. Em 1992 o desafio era levar adiante e conduzir com sucesso a Rio-92. Em 2001-2002 o desafio foi lidar com o inesperado da mudança do eixo diplomático que resultou dos ataques terroristas aos EUA de 11 de setembro de 2001. Estes afloraram a incidência na vida internacional da sublevação dos particularismos e o potencial de violência, limitado, mas não menos cruel, de terrorismos – expressão de fanatismos e também de desespero – com seus desdobramentos na agenda internacional de segurança. Foi o que tornou mais esquiva a cooperação internacional no plano mundial, em contraste com o ano de 1992. Por via de consequência, foi mais difícil a operacionalização diplomática da busca da “autonomia pela participação” em instâncias internacionais e regionais, que caracterizou o sentido de direção da política externa da presidência Fernando Henrique Cardoso.

Como o senhor enxerga a atual política externa adotada pelo Brasil?

Celso Lafer: O legado da política externa do governo Bolsonaro é muito negativo. Isolou o Brasil no mundo; dilapidou o capital diplomático do nosso país; diminuiu o potencial de articulações com nossos grandes parceiros; comprometeu a ação do Brasil nas instâncias multilaterais que sempre foi um histórico ativo do nosso país na afirmação construtiva dos seus interesses. Em síntese, o governo Bolsonaro não soube traduzir apropriadamente necessidades internas em possibilidades externas, que é a tarefa da política externa como uma política pública, que na interação entre o “interno” e o “externo” enfrenta o desafio de obter a nossa melhor inserção num mundo assinalado por interdependências de toda natureza.

Recuperar a presença do Brasil no mundo e na nossa região será uma tarefa da terceira presidência Lula. Será facilitada pela expressiva e generalizada percepção do que ele positivamente representa para um sem-número de interlocutores internacionais e suas expectativas do que isto significa para uma renovada presença do Brasil no Mundo. A muito expressiva repercussão da sua eleição no plano internacional é um nítido contraponto ao legado negativo da presidência Bolsonaro. Tem o lastro positivo do capital diplomático e político que acumulou nas suas duas presidências anteriores.

Na minha avaliação, a política externa da nova presidência Lula terá que fazer ajustes e reavaliações em relação ao que fez no passado. Em primeiro lugar no plano externo, pelas mudanças de funcionamento da máquina do mundo como apontado na resposta à primeira pergunta. Em segundo lugar, porque no plano interno a sua eleição foi fruto de uma coligação de abrangente apoio, distinta do que caracterizou suas anteriores vitórias. Por isso, na interação entre o “interno” e o “externo” precisará ter uma sensibilidade para ampliar sua validação e fazer da política externa um componente de sua governança que contribua para a sua legitimação num país em que as eleições revelaram muito dividido e polarizado.

Autonomia das universidades públicas é fundamental para sucesso do sistema de CTI de SP

O senhor presidiu a Fapesp durante oito anos. Como enxerga o sistema paulista de CTI?  Quais os desafios para que a ciência possa deslanchar no Brasil, especialmente depois dos cortes que vem enfrentando nos últimos oito anos?

Celso Lafer: O sistema paulista de CTI, concebido de maneira abrangente, é composto pela densa e acumulada qualidade da pesquisa e do conhecimento das nossas universidades, em especial as públicas e de seus Institutos, como por exemplo o Butantan. Alimentado pelo potencial de interação com o setor privado é o mais robusto do país. É o que singulariza o valor agregado do conhecimento de São Paulo  na Federação brasileira. Resulta de uma política de Estado e não de governos, que reconhece a importância crítica do amparo à pesquisa e à formação de profissionais qualificados para lidar com o desafio dos processos das incessantes transformações que a inovação científico-tecnológica trazem, alterando as condições da vida e da competitividade no mundo contemporâneo. Trata-se de um sistema que parte do pressuposto de que o tempo da formação de profissionais e o de pesquisa têm cadências próprias que precisam ser respeitadas, posto que não se confundem com o tempo do calendário eleitoral ou da instantaneidade dos meios de comunicação. Estas características constitutivas de tempo do sistema CTI requerem para a sua sustentabilidade a constância da previsibilidade dos recursos sem a qual o “stop and go” afeta e compromete suas atividades e os seus resultados.

São Paulo vem dedicando, no correr dos anos, atenção a essa questão, como revela a percentagem do PIB paulista aplicado no sistema CTI. A autonomia das universidades públicas paulistas elevou o patamar de sua relevância quando passou a ter assegurado o seu financiamento pelo percentual de ICMS a elas destinado.

É o que me leva a fazer sucintas considerações sobre a Fapesp, pioneiramente concebida pela Constituição de 1947 e reconhecida na sua importância pela Constituição Estadual de 1989. Esta assegurou a destinação de um mínimo de um por cento da receita tributária estadual como renda de sua privativa administração, assegurando desta maneira a sua autonomia. Uma obrigação jurídica que tem sido cumprida por sucessivos governos estaduais.

A Fapesp exerce a sua autonomia desde que foi posta em marcha pelo Governador Carvalho Pinto, pela lei que a criou (lei nº 5918 de 1960) e pelo decreto que aprovou os seus estatutos (decreto nº 40.132 de 1962).  A autonomia de que desfruta a Fapesp é um dos pilares para o bom desempenho de sua missão. Não é uma autonomia autorreferida. É pautada por exigências de eficiência administrativa que legalmente impõem que não mais de 5% de seu orçamento seja gasto com despesas de custeio, inclusive a folha de pagamento –  95% ou mais de seu orçamento é obrigatoriamente destinado às entidades-fim, ou seja, o amparo e pesquisa.

O cumprimento do teto de gastos se vê viabilizado pelo trabalho “pro bono” dos pareceristas que avaliam as propostas submetidas à Fapesp. Predominantemente oriundos das universidades, os pareceristas são stake-holders da Fapesp e têm a clareza do papel que a Fapesp desempenha para a ampliação do papel da pesquisa e do conhecimento das instituições sediada no Estado de São Paulo.

As atividades-fim do amparo e pesquisa obedecem à moldura criada e concebida pelos estatutos que retêm plena atualidade. Destaco: a Fapesp deve apoiar  a pesquisa e não fazer pesquisa; deve fornecer elementos de orientação e auxílio financeiro sem interferir com a personalidade do investigador e de suas instituições; o âmbito da ação da Fapesp deve ser limitado pela idoneidade da avaliação do mérito dos projetos e pela extensão dos recursos disponíveis; não cabe restrição quanto ao gênero da pesquisa realizado; importa reconhecer a interdependência entre pesquisa básica e aplicada em todos os campos do conhecimento.

No exercício de suas atividades-fim, a Fapesp vem contribuindo para a formação qualificada pela concessão de bolsas; tem apoiado a melhoria da infraestrutura da pesquisa das instituições paulistas; tem financiado projetos em todos os campos de conhecimento, dos mais simples aos que exigem maior duração, como os temáticos e os CEPIDs; tem promovido projetos que na interação com o setor privado favorecem a inovação e a competitividade. A internacionalização da Fapesp, que foi um dos itens da minha gestão, é a expressão de uma diplomacia da ciência, favorecedora de construtivas interações entre nossos pesquisadores e os pesquisadores de outros países, que compartilham o valor do avanço do conhecimento. Em síntese, para o sistema paulista de CTI, a Fapesp a partir da década de 1960 só tem paralelo com a importância da criação da USP em 1934.

Trata-se de um paradigma de persistência sustentável de propósitos. Representa um legado que contrasta com as descontinuidades que ocorreram no plano federal e que se agravaram com o plúmbeo descaso negativista do governo Bolsonaro.

Atualmente, vemos um cenário duro no campo das relações internacionais, talvez o mais difícil desde a Segunda Guerra Mundial. Como o senhor enxerga esse quadro? E há alguma possibilidade de que o Brasil, como um player tradicional no campo das relações internacionais, possa atuar para ajudar a distensionar o cenário?

Celso Lafer: O cenário internacional contemporâneo está permeado por tensões e incertezas. Elas são distintas daquelas que enfrentei como Chanceler em 1992 e em 2001-2002. São diferentes das que enfrentou o governo Lula nos seus dois primeiros mandatos presidenciais. Para valer-me da “lição dos clássicos”, a máquina do mundo moveu-se para Hobbes, ou seja, para uma dinâmica internacional na qual o predomínio do conflito é muito mais forte do que a propensão para a sociabilidade da cooperação e do entendimento entre os atores internacionais. É o que torna mais desafiadora e complexa a tarefa da política externa brasileira de traduzir necessidades internas em possibilidades externas.

Indico a seguir, a título de ilustração, facetas que permeiam a dinâmica do mundo no momento atual.

Começo dando destaque à crescente relevância da competição EUA/China por hegemonia no sistema internacional e seus desdobramentos na atual distribuição geopolítica do poder. É o que faz da dinâmica instável das suas relações bilaterais um componente de primeira grandeza no contexto internacional, que também tem incidência na América do Sul com repercussão em nossa inserção regional.

Vou deter-me com maior vagar sobre a guerra da Ucrânia e seus efeitos que vão muito além das partes diretamente envolvidas no conflito. A ação de Putin representa uma ruptura com o padrão do aceitável contemplado pelas normas internacionais, proibitivas das guerras de conquista e preservadoras da integridade territorial dos Estados. O uso unilateral da força militar pela Rússia contra a Ucrânia compromete esta regra de equilíbrio político do sistema internacional consagrado na Carta da ONU à luz das experiências que antecederam e instigaram a Segunda Guerra Mundial. Ela é magnificada pelo fato de a Rússia ser uma potência nuclear e um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU.

A guerra da Ucrânia vem sendo conduzida com determinação militar pela Rússia e resistida com valentia pela Ucrânia com o apoio logístico dos europeus e dos EUA, mediante o complemento das sanções plurilaterais de natureza econômica, de muito alcance, que impuseram. Daí a significativa ampliação das tensões de segurança no plano internacional, os impactos energéticos que não se restringem à Europa, problemas de segurança alimentar, em especial na África, alterações nas cadeias globais de bens e serviços; aumento do já prévio significativo número de refugiados e deslocados no mundo.

O Brasil que é do mundo e não apenas está no mundo, como diria Hannah Arendt, também se vê atingido pelos efeitos diretos e indiretos da crise ucraniana que alcança a dinâmica da política e da economia mundial.

A isto acrescento para indicar a complexidade das coisas (i) a agenda não apropriadamente equacionada no plano mundial dos desdobramentos da Covid-19 para a saúde das populações; (ii) o agravamento dos problemas ambientais com a crescente vulnerabilidade da natureza que afeta a vida na Terra; (iii) a erosão do sistema multilateral do comércio, contemplado na OMC.

Imagem acima: Celso Lafer em depoimento à Comissão de Relações Exteriores do Senado, em 2018. Crédito: Wilson Dias/Agência Brasil.