Cada vez mais, cientistas recorrem à tecnologia para poder acompanhar as evoluções dos ecossistemas no planeta, buscando por sinais de que eles estejam a caminho ou mesmo perto de alcançar um ponto crítico. Essa antecipação permite que medidas sejam tomadas antes que regiões inteiras pereçam devido às mudanças climáticas e às ações antrópicas. Entretanto, dada a pluralidade de ecossistemas no mundo, é difícil encontrar padrões ou sinais de alerta que se repitam para as diferentes áreas e, igualmente complicado, identificar esses sinais nos diferentes ambientes estudados concretamente.
Em artigo publicado na Ecography, o pesquisador do Instituto de Física Teórica da Unesp, e do Instituto Sul-Americano para Pesquisa Fundamental, Ricardo Martinez-Garcia, juntamente com colaboradores, voltou sua atenção para os sinais de desertificação em ecossistemas áridos. Michiel P. Veldhuis, da Universidade de Leiden, Holanda, um dos autores do artigo, explica que o estudo teve como um dos principais objetivos testar um modelo teórico, que relaciona a formação de padrões de vegetação em ecossistemas áridos com informações sobre a resiliência da região.
O modelo é usado por pesquisadores para descrever de que maneira a vegetação de um ecossistema árido irá responder em casos de estresse hídrico. Segundo as previsões, caso o crescimento da vegetação em uma determinada área seja limitado pela quantidade de água, a vegetação começaria a apresentar um padrão de buracos, falhas na cobertura vegetal. Se a falta de água continuar, o padrão evoluirá para um labirinto, seguido por um padrão de pontos e, por fim, o ecossistema chegaria à desertificação.
Apesar de muito utilizado, até hoje o modelo não havia sido testado, o que gera embates entre comunidades científicas que o defendem e as que são contra seu uso. ““Esses ecossistemas receberam muita atenção de pesquisadores teóricos por causa de seus padrões fascinantes. Entretanto, praticamente não há trabalhos empíricos, por causa dos desafios com a logística – especialmente no Sudão”, explica Veldhuis.
Buscando dar os primeiros passos para desenvolver técnicas que permitam colocar o modelo à prova, Martinez-Garcia e colaboradores agruparam dados e imagens de satélites, sobre as modificações no espaço e no tempo da vegetação de uma região no Sudão. Com isso, foi possível realizar uma comparação com os resultados previstos do modelo para essa mesma área.
“Nós usamos uma base de dados dos padrões espaciais, que já havia sido agrupada por um dos coautores, e adicionamos uma base de dados de séries temporais, construída com mídias satelitais que informam a densidade da vegetação. O objetivo era medir, nas séries temporais, as previsões do modelo sobre o comportamento da densidade da vegetação ao longo do tempo, quando o ecossistema se aproxima da transição para a desertificação. A maior novidade do artigo é, precisamente, conseguir relacionar muitas das previsões teóricas, sobre como a vegetação responde a mudanças ambientais quando ela forma padrões espaciais, com as séries temporais existentes de dados”, comenta Martinez-Garcia.
O pesquisador explica que esses padrões são chamados de “auto-organizados” porque surgem sem a pressão de uma força externa. “Eles são criados unicamente a partir das interações entre a vegetação e o uso dos recursos que elas têm. No caso, o recurso-limite mais importante que os modelos propõem é a água. Portanto, esses padrões contém informação muito relevante sobre como os ecossistemas respondem a estresses hídricos”, completa.
Segundo Martinez-Garcia, o modelo tem duas previsões importantes: a primeira, já testada em 2008 por Vincent Deblauwe, um dos coautores do artigo, é que a estrutura espacial formada pela vegetação está fortemente relacionada com a disponibilidade de água. Portanto, os desenhos e padrões que surgem quando uma área passa por estresse hídrico seriam uma forma da vegetação se auto-organizar para otimizar a obtenção de água. A segunda previsão do modelo teórico é que, caso a disponibilidade de água continue diminuindo, o ecossistema irá colapsar de maneira abrupta, entrando em estado de desertificação. No artigo publicado, o grupo de pesquisadores foi capaz de testar algumas das previsões do modelo referentes ao comportamento da vegetação próximo à etapa de transição para desertificação.
Colocando a teoria à prova
Para confirmar essas previsões com dados do mundo real, os pesquisadores utilizaram dados do EVI (Índice de Vegetação Melhorado). O índice identifica as regiões com presença de vegetação, permitindo caracterizar sua evolução no decorrer do tempo. Além disso, o grupo de pesquisa também coletou dados de precipitação nas regiões estudadas.
O próximo passo foi aplicar o modelo para a mesma região das imagens coletadas. Ao final, os pesquisadores contaram com duas bases de dados: uma com dados reais, com os padrões espaciais obtidos por imagens de satélites e as séries temporais de EVI, e outra com as mesmas informações, porém geradas pelo modelo. Com isso, os cientistas compararam as alterações da vegetação ao longo do tempo para ver se eram iguais ou não.
Para a pesquisa, foram medidos os comportamentos de três indicadores específicos que, teoricamente, predizem quando um sistema se aproxima de uma transição abrupta. Um dos indicadores é a autocorrelação temporal, que ocorre quando uma medida feita em um ponto tem as mesmas informações que outra medida feita em outro ponto da região estudada. Segundo a teoria, a autocorrelação temporal deve aumentar quando o ecossistema está próximo do ponto de transição. O segundo indicador é referente a alterações na densidade de biomassa da região. O modelo indica que essa variância deve aumentar quando a área está próxima a um ponto crítico. Por fim, o terceiro indicador analisado é responsável por medir como o ecossistema responde a perturbações externas. A teoria aponta que a responsividade deve ser menor quando o ecossistema está próximo da transição.
Ao comparar os dados teóricos com as informações empíricas, o resultado foi positivo: dos três indicadores, dois tiveram suas previsões corroboradas pelo mundo real. “Nós encontramos dados segundos os quais a autocorrelação temporal aumenta quando o ecossistema começa a mostrar padrões de buracos e labirintos, e que a responsividade do ecossistema de fato fica menor quando ele apresenta o padrão de buracos, o que apoia as predições do modelo. Porém, nossos resultados indicam que a variância de biomassa tem um padrão contrário do esperado na teoria: a variância diminui quando a vegetação forma padrões de pontos”, comenta Martinez-Garcia.
Embora um dos indicadores ter apresentado um resultado diferente do previsto pela teoria, o resultado segue sendo considerado positivo pois, a partir dos novos dados coletados, é possível refinar o modelo para torná-lo mais preciso. Martinez-Garcia aponta que, nos próximos passos, os grupos de pesquisa dos quais faz parte têm a intenção de estudar a formação desses padrões a partir de escalas menores, observando as interações de plantas individuais e não o comportamento de regiões inteiras, nas quais não é possível discernir quantas plantas estão compondo a vegetação. “Um objetivo a longo prazo é desenvolver uma teoria muito mais mecanicista, baseada em processos do nível do indivíduo, para tentar entender a formação dessas estruturas. Ou seja, queremos entender como uma planta interage com outra através dos recursos disponíveis para criar esses padrões”, finaliza.
Imagem acima: Crédito: Wollwerth | Deposit Photos.