Nobel da Paz premia ativistas que lutam por democracia e direitos humanos na Bielorrúsia, Ucrânia e Rússia

Líder do comitê que confere o prêmio veio a público assegurar que escolha não reflete mensagem indireta para o presidente russo Vladimir Putin, cujas políticas dirigem ou afetam os três países. Para estudiosos de relações internacionais e direitos humanos da Unesp, escolha reflete visão de mundo unipolar alinhada com interesses do Ocidente.

O anúncio dos vencedores da edição de 2022 do Prêmio Nobel da Paz, ocorrido nessa sexta-feira, 7, gerou uma corrente de comentários que varou o globo. O Comitê Norueguês para o Nobel, o órgão responsável pela premiação, decidiu destacar o trabalho de um ativista e de duas instituições que historicamente vêm lutando pelo direito à democracia e em prol dos direitos humanos. O ativista é o líder cívico bielorusso Ales Bialiatski, que desde 2020 está preso em seu país por sua oposição ao governo de Aleksandr Lukashenko, aliado do presidente russo Vladimir Putin. A premiação foi dividida com a ONG russa Memorial e a instituição ucraniana Centro para as Liberdades Civis. Os três têm em comum forte oposição ao governo do presidente da Rússia Vladimir Putin.

“Os laureados representam a sociedade civil em seus respectivos países. Por muitos anos, eles têm promovido o direito de criticar o poder e proteger os direitos fundamentais dos cidadãos. Eles têm atuado como uma força-tarefa tremenda para divulgar os crimes de guerra, o abuso dos direitos humanos e de poder. Juntos, eles demonstram a importância da sociedade civil pela paz e pela democracia”, declarou o comitê.

Embora a mídia brasileira e a estrangeira tenham levantado a hipótese de que a premiação serve como uma espécie de recado para o líder russo, o Comitê preferiu desconversar. Seu chefe, o norueguês Berit Reiss-Andersen afirmou diretamente que a escolha “não era um recado para o presidente Putin” e soliciou a libertação de Bialiatski.

Para Marcos Cordeiro Pires, vice-coordenador do programa de pós-graduação em relações internacionais San Tiago Dantas, vinculado ao Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI), a mensagem do prêmio é claramente política. “Trata-se de um instrumento para a política norte-americana, ou para a política ocidental. Se analisarmos as indicações, elas invariavelmente são concedidas a pessoas ou entidades que fazem oposição a governos que se contrapõem à hegemonia do Ocidente”, explica ele, ressaltando a existência de algumas exceções, como a premiação aos Médicos sem Fronteiras.

Segundo Pires, essa é uma política praticada há muitos anos e enfatiza a perspectiva de um mundo unipolar, ou seja, no qual o poder sociopolítico e econômico é exercido de forma hegemômica pelo Ocidente. “É só resgatar as últimas premiações. No ano passado, uma das ganhadoras, a jornalista filipina Maria Ressa, foi escolhida justamente quando o governo filipino se contrapunha aos Estados Unidos e se aproximava economicamente da China”, explica. O mesmo aconteceu em 2019, quando o selecionado foi o ministro etíope Abiy Ahmed Ali. Ao receber o prêmio, Ali foi bastante elogiado por ter encerrado uma guerra de 20 anos entre a Etiópia e a Eritreia.  Mas, após receber a premiação, Abiy Ahmed Ali iniciou uma guerra civil no país. “E por que ele foi premiado? Porque está dentro do campo geopolítico de interesse do Ocidente. Esses exemplos se prolongam pela lista dos vencedores do Nobel da Paz.  Isso reflete a unipolaridade que se seguiu ao fim da URSS”, diz o docente.

Como exemplo de um tempo em que as escolhas seguiriam uma lógica diferente, ele aponta a premiação do argentino Adolfo Peréz Esquivel, que se notabilizou por denunciar os 30 mil mortos pela ditadura na Argentina, ocorrida em 1980. “Eram tempos em que ainda existia uma bipolaridade política e um  certo distanciamento das Academias Sueca e Norueguesa para escolher os vencedores do prêmio”, diz. Hoje, ele pensa que o critério de seleção “não inviabiliza as discussões sobre a paz, mas certamente leva em conta os interesses do ocidente”.

Para Clodoaldo Meneguello Cardoso, coordenador do Observatório de Educação em Direitos Humanos e professor da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp, câmpus de Bauru, é importante avaliar a atuação dos ativistas e das instituições escolhidos “em tempos de não-guerra. Para isso, é preciso fazer uma reflexão dos vários sentidos da palavra paz, que consiste em um aspecto dos direitos humanos: a paz como um componente da dignidade humana”. Cardoso diz que existem algumas definições para a paz. O primeiro envolve o limite da paz, que é a ausência da guerra. O segundo se apresenta como uma visão liberal da paz em que se coloca o indivíduo como central e o coletivo como a soma desses indivíduos. E um terceiro conceito, em que a paz aparece apenas na condição de justiça social, porque se acredita que “não há paz sem comida, não há paz com o desemprego, sem moradia digna”, explica.

Ele concorda com a avaliação de Pires quanto à perspectiva adotada pelo Comitê Norueguês. “A premiação tem perfil ocidental. Não são discutidas outras questões que ameaçam a paz no mundo”, diz.

Imagem acima: ilustração de Ales Bialiatski e dos logotipos da ONG Memorial e do Centro para Liberdades Civis. Crédito: Niklas Elmehed © Nobel Prize Outreach.

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Este artigo pertente à série Nobel do Jornal Unesp. Conheça a trajetória científica e as pesquisas dos laureados com o prêmio Nobel nas categorias fisiologia ou medicina, física, química, economia, literatura e da paz a partir do ano de 2022.

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