“Inclusão é a participação efetiva de todas as pessoas”

Unespianos com deficiência relatam suas vivências na universidade, que vem adotando iniciativas para promover integração e acolhimento de alunos, funcionários e professores.

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O Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência, celebrado em 21 de setembro, é uma ocasião para fomentar a consciência pública em relação aos problemas e dificuldades enfrentados por essas pessoas cotidianamente, e o longo caminho a ser percorrido para transformar de maneira definitiva esse quadro. Mas a data também serve para celebrar os muitos esforços que já foram realizados até aqui, e os resultados positivos que eles geraram. “Se a sociedade mudou e avançou, deveu-se muito à luta dessas pessoas, dos seus familiares e dos pesquisadores, para garantir que esses direitos possam ser respeitados”, diz a professora Vera Capellini, diretora da Faculdade de Ciências da Unesp, campus de Bauru, e presidente da Comissão Central de Acessibilidade da Unesp.

Desde 2020 a Unesp possui uma Política de Acessibilidade e Inclusão, além de um conjunto de Diretrizes Gerais que apresenta orientações específicas para a implementação dessa política. Essas orientações, somadas às ações da Comissão Central, vêm resultando em importantes transformações. Vera Capellini, que é doutora em educação especial e livre-docente em educação inclusiva, vêm acompanhando estas mudanças com atenção. “Tenho 31 anos de efetivo exercício como professora de educação especial. Ao longo deste tempo, pude observar diversas melhorias que tem acontecido na universidade nesta área, tais como a contratação de professores especializados, a criação de comissões de acessibilidade e a adoção do uso de libras para o vestibular”, enumera.

Leia a seguir os relatos de três pessoas com deficiência que integram ou integraram a comunidade unespiana, e que descrevem as mudanças que a Universidade vem experimentando para aumentar a inclusão e reduzir o capacitismo.

Unesp adota vestibular em libras – TV Unesp

Ficou mais fácil falar desses temas

Professor do Departamento de Física e Química do câmpus de Ilha Solteira, há exatos 30 anos Eder Pires de Camargo iniciou sua trajetória na Unesp como estudante do curso de física, no campus de Bauru, em 1992. Depois da graduação, foi aluno da primeira turma do mestrado Educação para Ciência, também em Bauru. Doutorou-se na Unicamp em 2005 e, no ano seguinte, entrou no concurso para docente do câmpus de Ilha Solteira. “Já tenho 16 anos como professor. Passei praticamente minha vida toda na Unesp”, conta.

Camargo nasceu com retinose pigmentar, uma alteração genética hereditária que provoca degeneração na retina, e a partir dos sete anos começou a perder a visão. Em 1992, quando entrou para Unesp, já estava cego. Na graduação, ele contou com iniciativas de apoio pontuais, ofertadas por professores e colegas de turma – que estudavam com ele e o ajudavam com as leituras. Pouco depois de se tornar professor, procurou incorporar recursos para aprimorar a acessibilidade em seu laboratório. O primeiro passo foi dado em 2008 quando, graças ao apoio de um projeto do CNPq, pôde adquirir um primeiro dispositivo para a leitura em braille. Desde então o laboratório foi crescendo e incorporando mais recursos para facilitar a interação dos estudantes com deficiência.

Graças ao edital “Acessibilidade Digital no Ensino da Graduação”, Camargo foi contemplado com R$ 200 mil para criar uma Central de Acessibilidade do câmpus de Ilha Solteira. A nova central será referência para alunos e funcionários da Unesp de Ilha Solteira, e também vai funcionar em parceria com a prefeitura, além de alocar projetos de extensão que visam acessibilidade e inclusão, como a formação em braille e libras para professores da rede pública de Ilha Solteira e região.  “Vamos adquirir um computador da Apple com tecnologia própria para deficientes visuais e auditivos, com direito a legendas simultâneas e impressora 3D. E a central também vai oferecer aulas de língua de libras e braille”, diz. Outra tecnologia que deve chegar à Central é um dispositivo denominado OrCam MyEye, que permite capturar as páginas de livros e fazer a leitura para o portador, além de identificar objetos e pessoas por meio de reconhecimento facial.

Além da busca de equipamentos especializados, Camargo também utiliza experimentos abertos de cunho auditivo e tátil, que complementam as exposições, seminários e discussões reflexivas que conduz em suas aulas. Inclusive, uma dessas disciplinas, intitulada “Representações Multissensoriais de maquetes e experimentos físicos” era optativa e se tornou obrigatória. Camargo explica que desenvolveu essas metodologias para ter condições de trabalhar, participar efetivamente e comunicar os conceitos de física para os seus alunos, respeitando o ritmo de aprendizagem individual. “Inclusão é a participação efetiva de todas as pessoas, principalmente daquelas que foram historicamente marginalizadas do trabalho, da educação, do lazer, do transporte”, diz.

Ele observa que o processo que resultou na adoção de Diretrizes Gerais da Política de Acessibilidade e Inclusão da Unesp, que ocorreu em 2020 (portaria 69), reflete um gradual desenvolvimento de legislações e normativas favorecendo a inclusão. “Isso inclui a Constituição de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases, e até a Política Nacional de Educação Especial mais recente. E o Brasil também é signatário de diversos acordos internacionais, como o de Salamanca”, enumera. “Essas leis se fazem refletir na educação e na universidade. Quando entrei na Unesp, era muito difícil discutir esses temas.”

A busca por autonomia

Uillian Vigentim ingressou no curso de Ciências Sociais, em 2007, e atualmente é assistente de suporte acadêmico do câmpus de Araraquara. A distância temporal que separa Camargo e Vigentim dentro da instituição, coincide com o crescimento vertiginoso do mundo digital e de tecnologias assistivas.

Ao nascer com retinoblastoma bilateral, um tipo raro de câncer ocular, Vigentim perdeu a visão do olho direito ainda bebê. A radioterapia não foi suficiente para evitar que, aos sete anos, ele perdesse também a visão do olho esquerdo. Seus pais à época faziam um grande esforço para trazê-lo semanalmente de Santa Cruz das Palmeiras até o instituto Laramara, em São Paulo, numa viagem que levava cerca de 3h30, para que ele pudesse aprender a ler braille e a andar de bengala.

Enquanto Camargo contou basicamente com a camaradagem dos colegas e do corpo docente, Vigentim chegou à Unesp com a possibilidade de ter o auxílio do aluno ledor – um bolsista que o acompanharia em algumas aulas e leria os textos para ele. Mas, quando chegou à academia, já estava bastante independente para permitir que outra pessoa conduzisse suas leituras. “Em vez disso, a minha solicitação foi um scanner para que eu mesmo pudesse fazer a digitalização e utilizar o dispositivo de leitura de tela do meu computador”, diz. 

Vigentim também conseguiu que a unidade adquirisse computador com leitor de tela, scanner e uma linha braille. E a bolsa originalmente destinada a financiar um aluno ledor foi reconfigurada. O bolsista passou a corrigir as versões escaneadas, que saem com alguns erros. “Sempre busquei autonomia”, conta o funcionário.

Um caso de apoio sem precedentes

A trajetória da jornalista Ana Raquel Mangili, durante os seus anos de graduação e pós-graduação no câmpus de Bauru, já foi narrada em episódio do documentário “Caminhos: quando sonhos encontram a educação”, idealizado pela Assessoria de Comunicação e Imprensa da Unesp. Ana Raquel nasceu com distonia generalizada – o que causa limitação de movimentos nos braços e pescoço – e surdez bilateral moderada. Na infância, como podia escutar, aprendeu a falar e a ler sem dificuldades. Por volta dos sete anos, no entanto, passou a enfrentar problemas para escutar os personagens de desenhos animados: não entendia por que eles sussurravam. A dificuldade inquietou seus pais, que percorreram diversos especialistas até obterem um diagnóstico de perda auditiva. Com o passar dos anos, o sintoma se intensificou. “Ir à biblioteca era um hobby. Eu sempre li muito, e muitas vezes para não ficar perdida no ambiente por conta da dificuldade em ouvir, eu lia. Depois acabei encontrando na escrita uma forma de me expressar e veio daí a ideia de estudar jornalismo”, diz.

Ana Raquel entrou na graduação em 2013, em um contexto em que a discussão social e a legislação já andavam mais avançadas. Assim como aconteceu com Vigentim, ela pôde dispor de um respaldo acadêmico e tecnológico maior. Durante a graduação, a jornalista solicitou da universidade, e obteve, o suporte de profissionais monitoras durante as aulas. Também teve acesso a um notebook e à legendagem de conteúdos audiovisuais exibidos em sala. Esses vídeos que os professores usavam nas aulas eram legendados pelo grupo de pesquisa de Mídia Acessível e Tradução Audiovisual, da Unesp.

Ana Raquel e a monitora durante intercâmbio na Espanha

Se, por um lado, os obstáculos técnicos foram derrubados com maior facilidade, Ana Raquel conta que sofreu mais com as barreiras atitudinais que encontrou junto ao alunado. Mas nem por isso desanimou. Além de cursar especialização em Linguagem, Cultura e Mídia, também realizou o sonho de fazer um intercâmbio, em Salamanca, na Espanha. Nessa viagem, contou com recursos de acessibilidade e uma monitora custeados pela Unesp.  “Foi um caso sem precedentes de apoio ao intercambista brasileiro com deficiências nos graus que eu tenho”, diz. Em outras duas oportunidades, em Guadalajara (México) e Valparaíso (Chile), ela representou a universidade em eventos acadêmicos sobre inclusão.

Para o seu pai, João Mangili Júnior, a luta valeu a pena e o encheu de orgulho ver a filha se formando na mesma universidade que ele. “Ana sempre provou que ela consegue, que ela pode. Eu sempre pensei na educação como um meio para formar minhas filhas mulheres independentes, pessoas independentes.” 

Desafios atuais para a inclusão na Unesp

Em 2021, em trabalho desenvolvido em parceria com a Comissão Central, a Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD) tornou público o programa  “Acessibilidade Digital no Ensino da Graduação”, parte da Chamada “UNESP Presente – investimento do retorno”, com valor global de R$ 4.760.000,00. O edital destinou recursos orçamentários para que as unidades e campi pudessem adquirir equipamentos digitais e outros recursos de tecnologias assistivas e de comunicação alternativa/aumentativa/suplementar a fim de incluir no processo de ensino os alunos com deficiência. Este ano, houve uma segunda chamada ao programa para aquelas unidades que não se inscreveram em 2021.

Atualmente, além da Comissão Central de Inclusão e de Acessibilidade, há 34 comissões locais em atividade na Unesp, uma em cada campus. “Essa rede, articulada com os recursos que recebemos pelo edital, pode ofertar formação a toda a comunidade – docentes, alunos e funcionários – e transformar a cultura da universidade”, diz Vera Capellini.

Uma prioridade da gestão é o aprimoramento da coleta de dados, o que significa melhorar a identificação dos alunos elegíveis aos serviços de educação especial, para ampliar o atendimento a eles. Atualmente, os dados são sistematizados através da autodeclaração no momento da inscrição. Mas isso nem sempre acontece. “A Unesp já teve casos de alunos chegarem à graduação sem ter diagnóstico algum. E o encaminhamento para uma avaliação foi feito a partir da comissão de acessibilidade local”, conta a docente. A ideia é melhorar a acessibilidade formando docentes e coordenadores de curso para que eles possam identificar e acolher as dificuldades dos alunos, mesmo no caso da negativa da autodeclaração.

Outra estratégia é a formação continuada com foco na inclusão. “A universidade precisa formar seus docentes para essa mudança de cultura”, diz Vera Capellini. Um dos elementos principais para propiciar essa formação é um curso de 100 horas, aberto a toda a comunidade, intitulado “Orientações Básicas para a Inclusão do Estudante Público-Alvo da Educação Especial no Ensino Superior”. “A gente se humaniza se tiver oportunidades de se humanizar. Um dos caminhos possíveis para superar as questões capacitistas que ainda perduram em nossa sociedade é pela informação, por meio da formação continuada” diz ela. “Precisamos investir na formação de toda a comunidade unespiana.”

Imagem acima: Eder Pires de Camargo durante atividade com estudantes. Crédito: acervo pessoal.