Uso de braille para registro de composições estimula autonomia de músicos com baixa visão

Desafios do uso de sistema de escrita na transcrição de peças barrocas são tema de pesquisa no Instituto de Artes. Recurso ainda é pouco empregado, mas já beneficia instrumentistas e estudantes com deficiência visual.

Talvez um dos poucos espaços públicos onde pessoas com deficiência têm conseguido exercitar seu talento enfrentando um pouco menos de preconceito seja a carreira musical. Na verdade, o sucesso global alcançado por nomes como Ray Charles, Stevie Wonder e Andrea Bocelli ajudou a fomentar o estereótipo de que músicos cegos possuem algum tipo de superdotação musical inata. O fato, porém, é que os músicos com deficiência visual que desejam desenvolver sua musicalidade também precisam investir horas e horas em atividades como ensaios e estudos, e muitos acabam se afastando da música pelas dificuldades com que se deparam. Para este grupo, a possibilidade de recorrer a partituras escritas no sistema braille pode abrir novos caminhos de conhecimento e de performance.

O braille é um sistema de escrita e leitura em relevo utilizado por pessoas com deficiência visual e que existe desde o século 19. A escrita de música neste sistema foi o tema de uma pesquisa de mestrado defendida no Instituto de Artes da Unesp. A dissertação “Processos de leitura da polifonia barroca para teclados e possíveis abordagens de transcrição braille”, escrita pela professora de música e musicista Jéssica de Almeida Rocha Franco e orientada pela docente Dorotea Machado Kerr, traz reflexões sobre a musicografia braille e o processo de transcrição de partituras.

Na verdade, a fantasia de que pessoas com deficiência visual seriam capazes de aprender e decorar músicas de ouvido com grande facilidade tem contribuído para que a área da musicografia braille se mantenha ainda pouco conhecida. Jéssica Franco diz que, mesmo após a implementação da Lei Brasileira de Inclusão, também chamada de Estatuto da Pessoa com Deficiência, os materiais escritos neste sistema são pouco difundidos. E no caso do ambiente musical, a oferta é ainda mais escassa.

Durante o período em que cursou a licenciatura em música, também pelo Instituto de Artes da Unesp, Jéssica Franco teve seu primeiro contato com alunos com deficiência visual ao atuar como voluntária na ONG Unidade de Reabilitação para Deficientes Visuais, ministrando aulas de musicalização. Foi pela convivência com um dos alunos, que já tinha tido contato com partituras registradas nesse sistema através da EMESP, que surgiu a ideia de trabalhar a musicografia braille durante suas aulas. Como a professora não possuía qualquer conhecimento sobre o assunto, procurou ajuda. No próprio IA ela conheceu Jonathan Franco. À época estudante de composição, ele atuava também como editor da Fundação Dorina Nowill, organização que se dedica à inclusão de pessoas cegas e com baixa visão através da produção e distribuição gratuita de livros em braille e de outros serviços.

Da experiência em sala surgiu o interesse por pesquisar o tema. “Tive a oportunidade de trabalhar com alunos cegos e vi a necessidade de ensinar a leitura de partitura. Depois, dei continuidade ao meu aprendizado do sistema e fui trabalhar como editora braille, e constatei uma carência muito grande nessa parte da editoração musical”, diz Jéssica Franco. Hoje casados, Jéssica e Jonathan Franco trabalham com aulas de piano, musicografia braille e a transcrição e a editoração de partituras neste sistema. Sabendo da dificuldade de acesso a formação na área, ela busca, através da pesquisa, disponibilizar esse conhecimento para que outros estudantes e pesquisadores possam aprender a transcrever e editorar partituras no sistema.

Indicações do manual de musicografia em braille

Estudo mostra conceitos da musicografia braille

A musicografia braille consiste na escrita da notação musical segundo as regras do sistema, que estão representadas no Manual Internacional de Musicografia Braille. A pesquisadora explica que o primeiro passo para trabalhar no campo é ser alfabetizado no sistema, a fim de consolidar o entendimento do seu funcionamento como um todo. E essa alfabetização passa por uma educação do tato. “É preciso ter segurança do tato para fazer a leitura e também para memorizar o sistema, porque o ensino da musicografia não segue a mesma ordem de aprendizagem da teoria musical para videntes”, explica.

O manual apresenta três modelos de transcrição de partituras. A opção por um deles se dá de acordo com as particularidades de cada partitura e também das preferências do músico.

O primeiro modelo é o compasso por compasso. Nele, apresenta-se um compasso (divisão da música em intervalos de tempos iguais) por vez. No caso de uma transcrição para teclado, seria apresentado um compasso a ser tocado pela mão direita, um compasso para a mão esquerda, um compasso da pedaleira, e assim por diante. Já o modelo compasso sobre compasso é o que mais se assemelha às partituras grafadas em tinta, onde os compassos são apresentados por linhas completas, ou seja: uma linha para mão direita e logo abaixo uma linha para a mão esquerda, e assim sucessivamente. Por último há o modelo seção por seção ou modelo em parágrafos, onde se transcreve uma sessão referente à mão direita e depois uma sessão para a mão esquerda.

O passo inicial para realizar uma transcrição é analisar a partitura a fim de entender suas particularidades. Em paralelo, consulta-se o manual quando necessário para relembrar os sinais específicos que serão utilizados. Utiliza-se para a escrita o programa Braille Fácil, um software gratuito brasileiro muito empregado por professores de educação básica e que permite transcrever textos automaticamente. Porém, no caso da escrita de uma partitura, o processo é mais trabalhoso; deve-se digitar caractere por caractere em braille no computador, recorrendo-se a uma função do programa que funciona como uma máquina de escrever. “Optei por este programa porque me permitir escrever cada caractere por vez”, explica Jéssica Franco.

Exemplo de linhas com sinal de – em acorde – da peça BWV 665

Na sua dissertação, a musicista optou por estudar a adaptação de partituras para teclado de músicas do período barroco, por ser esta sua área de estudo técnico. A música barroca é caracterizada por sua estética polifônica, na qual várias melodias são tocadas simultaneamente. As peças selecionadas foram o Prélude non mesuré en sol mineur  de Jean-Henri D’Anglebert, o prelúdio e fuga em ré maior (BWV 850), de Bach (tomando por objeto uma transcrição analítica já existente)  e a peça  Jesus Christus, unser Heiland  (BWV 665), também de Bach.

As peças foram escolhidas justamente pensando nos possíveis problemas para transcrição, pensando seu grau de dificuldade no braille. Por exemplo, na peça  Prélude non mesuré en sol mineur, por ser uma anotação muita antiga onde não foi possível representar alguns sinais em braille.  Já Jesus Christus, unser Heiland exigiu que uma única melodia fosse desdobrada em várias linhas, algo que se mostrou tecnicamente difícil de fazer. As partituras transcritas serão disponibilizadas na livraria online IMSLP em tinta braille para que os professores possam utilizá-las com os alunos. E os músicos cegos que também se interessarem poderão entrar em contato por e-mail para que seja enviada a partitura de forma gratuita.

Jéssica apresenta o programa usado para as transcrições

Pensar a formação dos profissionais é essencial

A orientadora do trabalho, Dorotea Kerr, professora aposentada do Departamento de música do Instituto de Música da Unesp, câmpus de São Paulo, diz que o universo da musicografia braille ainda é pouco conhecido e debatido, tanto nas universidades quanto nos conservatórios e escolas de música.  “Os cursos superiores de música estão focados em formar alunos de performance, que construam carreiras conceituadas”, diz. “As disciplinas focam a execução musical, a prática de instrumento, e há pouco espaço para outras áreas de estudo.” Daí a importância de trabalhos como o de Jéssica Franco, que introduzem novos problemas que a universidade pode ajudar a solucionar. “Penso que a universidade pode contribuir talvez ajudando ou criando um jeito de publicar essas partituras por um preço bem mais acessível, e divulgando a existência desse recurso. Pelo que sei, não há muita gente que escreve música em braille”, diz.

Jéssica Franco conta que poucas encomendas de transcrição de textos para esse sistema são relacionadas à música. A maior parte das demandas vem do segmento de livros didáticos escolares. “Percebi que existe uma carência grande com relação ao campo da musicografia. Por isso temos poucos músicos cegos com capacidade de ler com fluência essas partituras, e também poucas pessoas capazes de fazer a transcrição.” Parte dessa carência está ligada à dificuldade de ter acesso à formação específica. A maioria dos profissionais que dominam esta técnica aprendeu ao trabalhar para alguma instituição onde ela é necessária.

Para a pesquisadora, é necessário destacar a importância de introduzir a escrita braille nos cursos de música, tanto para quem se formará como professor quanto para maestros e regentes. E, principalmente, para atender as pessoas que realmente necessitam desse tipo de partitura, como forma de combater a injusta disparidade de acesso a informações para pessoas com deficiência visual.

Outro desafio está nos elevados custos para a impressão em braille no Brasil,  assim como o acesso às partituras transcritas.  O pequeno número de editores se reflete no baixo número de opções de repertório disponíveis, e a carência é ainda maior quando se trata de repertórios mais específicos.  A solução passa pelo reconhecimento da importância do tema e ampliação da oferta de ensino nas instituições. “É preciso que isso esteja no currículo, no conteúdo programático dos cursos de formação, porque são esses profissionais, principalmente os da educação, que vão passar esse conhecimento para a frente”, diz a pesquisadora.

Filipe Oliveira mostra uma partitura em braille

Partituras em braille garantem o aprendizado de pessoas com deficiência visual

Filipe Oliveira é jornalista e músico, e tem baixa visão. Começou na música na adolescência tocando violão, e logo passou a se interessar pela música clássica para teclado. Oliveira cursou faculdade de música, mas após se formar permaneceu alguns anos afastado do meio musical pelas limitações visuais que enfrentava, e por acreditar que não conseguiria seguir uma carreira profissional devido à escassez de materiais e repertórios disponíveis para estudo. Aos poucos, porém, retomou o contato com o universo da música. Começou buscando conteúdos na internet e chegou a uma professora de piano popular, modalidade que exige um pouco menos de leitura. Mas o elemento decisivo foi a descoberta, em 2020, da musicografia braile, após contato com uma pesquisadora da Unicamp que o ensinou a ler partituras neste sistema em aulas que ocorriam online.

As partituras em braille permitem que Oliveira continue estudando música erudita, algo que não conseguiria se estivesse limitado à leitura visual. “Desde então a música voltou a ter a importância que tinha para mim lá atrás. Talvez até ainda maior, porque encontrei uma forma de estudar que é muito mais confortável e eficiente”, conta Oliveira. O músico baixa suas partituras em bibliotecas online e utiliza a Linha Braille, um equipamento que converte arquivos do computador para linhas em alto relevo do sistema braille. “Não é um equipamento barato”, diz o músico.  Oliveira teve acesso às transcrições que foram elaboradas por Jéssica Franco e esteve presente em sua defesa de mestrado. Ele destaca a importância de trabalhos como o dela para que mais pessoas tomem conhecimento da musicografia braille, e se sintam incentivadas a atuarem como transcritoras.

Jéssica Franco pondera que a possibilidade de acessar a musicografia braille, além de conferir autonomia aos músicos, também combate o estigma de que a pessoa com deficiência visual deva possuir um ouvido “mágico”. “Se você confia a obrigatoriedade da memorização contínua ao ouvido do aluno, já está tirando dele o direito de escrever suas músicas. Ele precisa saber ler e escrever, para que possa também registrar as próprias obras com autonomia”, conclui.

Imagens acima e ao longo do texto: acervo pessoal.