É raro encontrar um cidadão paulistano que não cultive uma relação afetiva com as feiras livres. A diversidade de produtos, os preços acessíveis e o caráter público certamente colaboram para tornar a feira uma marca registrada da cidade de São Paulo. Os dados da prefeitura de São Paulo confirmam a presença das feiras livres no cotidiano do cidadão: as ruas da capital abrigam hoje nada menos que 942 feiras livres, realizadas de terça a domingo, ao longo de todo o ano.
E se existe um aspecto comum a praticamente todas as feiras livres da capital, além do pastel e do caldo de cana, é a grande quantidade de resíduo e alimento desperdiçado que ela é capaz de gerar. Ainda assim, dados relativos à produção de resíduos em feiras livres são escassos na literatura científica.
A ausência de informações sobre o Brasil – e na América Latina em geral – foi destacada no Índice de Desperdício Alimentar, um relatório da ONU para o Meio Ambiente publicado em 2021. O documento ressalta que as pesquisas sobre desperdício de alimentos no continente até abordam de forma satisfatória a esfera dos lares e domicílios, mas os dados são escassos quando o foco está nos serviços alimentares (como restaurantes) ou no varejo de comida (caso dos supermercados e das feiras livres). Nestas duas áreas, segundo o relatório da ONU, Brasil e América Latina apresentam “uma lacuna substancial de dados”.
“Um dos objetivos da Agenda 2030 é reduzir pela metade o desperdício de alimentos”, diz Pedro Brancoli, da Universidade de Boras, na Suécia. “Porém, se não há dados apontando a situação atual, é impossível medir se realmente está havendo redução do desperdício ou não”, pondera. O pesquisador brasileiro radicado no país escandinavo lidera um projeto que pretende analisar o desperdício de alimentos em feiras livres de São Paulo com a finalidade de fornecer informações que primordialmente deem suporte a ações de prevenção ao desperdício, mas que também possam colaborar com o manejo e a valorização destes resíduos. Além da sua universidade, participam da iniciativa a UFMG e a Unesp, no câmpus de Tupã.
Na primeira ação do projeto, o grupo de pesquisadores elaborou uma estimativa da quantidade de alimentos desperdiçados nas feiras livres da capital paulistana. Para isso, os pesquisadores selecionaram quatro feiras livres de diferentes bairros da capital (Mooca, Belenzinho, Pacaembu e Aclimação), cujo tamanho variava de apenas quatro a até 73 barracas.
Ao final das atividades de cada feira, os resíduos eram recolhidos por funcionários das concessionárias de limpeza e levados para um galpão. Lá, uma equipe treinada pelo projeto realizava manualmente a gravimetria do resíduo, ou seja, a separação física, pesagem e categorização do lixo recolhido na feira, bem como o cálculo de sua porcentagem em relação ao total do resíduo gerado.
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Agronegócio e Desenvolvimento no câmpus da Unesp em Tupã, Paula Garcia Lima fez parte da equipe que realizou o processo de gravimetria do lixo das feiras paulistanas, elaborando e aplicando os protocolos de separação e contabilizando cada elemento presente nos resíduos. Em seu mestrado, Paula já havia trabalhado na gravimetria de resíduos domésticos do município de Tupã, mas com foco na reciclagem desse material. Já no mestrado, a pesquisadora notou uma lacuna sobre o tema na literatura científica, impressão que foi reforçada pelo trabalho nas feiras de São Paulo.
“Uma dificuldade da pesquisa de resíduos no Brasil é que não existe uma padronização das categorias usadas no processo de gravimetria. Um dos objetivos dessa parceria com a Suécia é justamente desenvolver estudos que possam preencher essa lacuna de padronização”, explica a pesquisadora. “Para a análise de resíduos, quanto maior o número de categorias que nós conseguimos criar, mais detalhada será a informação sobre o percentual que eu tenho de cada resíduo”.
Neste sentido, o trabalho estabeleceu três níveis de categorias, de acordo com o detalhamento da gravimetria. No primeiro nível de categorização, os resíduos foram divididos em evitáveis, não evitáveis, embalagens e resíduos externos. A escolha destes termos, explica Brancoli, segue orientações estipuladas pelo próprio Índice de Desperdício Alimentar publicado pela ONU.
Os resíduos evitáveis, portanto, seriam aqueles produtos que em algum momento poderiam ter sido consumidos, como uma maçã ou banana, mesmo que no momento da análise estejam podres ou sem condições de consumo. Já os resíduos não evitáveis seriam partes de alimentos que não podem ser consumidas, por exemplo, o bagaço de cana-de-açúcar ou a casca do coco. “Independentemente do momento ou do uso destes alimentos, ninguém consegue consumir uma casca de coco ou um bagaço da cana-de-açúcar. Uma maçã podre, por outro lado, poderia ter sido consumida em algum momento”, diz o pesquisador.
Já a categoria das embalagens compreende os pacotes e caixas em que se embalam os produtos das feiras, e o resíduo externo é o lixo levado até a feira, por exemplo, pelos consumidores, mas que não foi necessariamente gerado ali. Um segundo nível de categorização detalhou o tipo do alimento – como legumes, frutas, folhas, tubérculos, comida processada, etc. Por fim, o terceiro nível de categorização apontava o alimento em si: cebola, alface, manga, tomate, etc.
O levantamento dos pesquisadores constatou que a quantidade de resíduo variou de 17 kg a 34,6 kg por barraca, dependendo do tamanho da feira livre analisada. Resíduos não evitáveis representaram a maior parte do lixo recolhido em qualquer uma das feiras analisadas, variando de 9,6 kg a 14,9 kg por barraca. A segunda categoria com maior quantidade de resíduos foi o grupo de alimentos formado por folhas, flores e caules, com 3,9 kg por barraca. Embalagens totalizaram 3,6 kg por barraca e as frutas somaram 1,4 kg por barraca.
O levantamento apontou que cerca de 70% dos resíduos das feiras se encaixam nas categorias de não evitáveis ou de embalagens, uma informação importante para políticas públicas de compostagem de resíduos. Isso porque a maioria das embalagens não pode ser compostada, e a maioria dos resíduos não evitáveis, como bagaço de cana-de-açúcar ou casca de coco, necessitam de cuidados extras para serem compostados. Atualmente, a prefeitura de São Paulo tem cinco pátios de compostagem de resíduos em operação com capacidade de processar até três mil toneladas de resíduos por ano e onde os restos de feiras livres e podas de árvores são transformados em adubo que é aplicado em jardins e praças.
A partir da contabilidade das feiras livres selecionadas pelo projeto, os pesquisadores escalonaram os resultados para a cidade de São Paulo como um todo [veja o infográfico acima]. De acordo com Pedro Brancoli, os resultados são importantes para jogar luz sobre a questão dos resíduos e do desperdício em um setor do varejo extremamente popular na cidade, que é a feira livre. Ele considera, porém, que o trabalho apresenta algumas limitações, como um número restrito de feiras livres analisadas e uma distribuição geográfica e socioeconômica limitada, quando comparada ao tamanho e à diversidade do município.
“O estudo foi bastante quantitativo no sentido de que coletamos e analisamos tudo que era descartado das feiras que selecionamos. Anteriormente, não tínhamos a menor ideia da quantidade ou da composição desse resíduo”, diz Brancoli. “Vejo o trabalho como um primeiro chamado para dar a dimensão de um problema que até então era completamente ignorado. Às vezes esse primeiro número é importante para iniciar um movimento.”
A segunda parte do projeto prevê a análise das causas e dos fatores de risco para o desperdício dos alimentos. Segundo o pesquisador, a grande quantidade de folhagens e folhas individuais no lixo, por exemplo, sugere que elas são descartadas no decorrer do dia, para melhorar a aparência do produto, da mesma forma que se observa um alto número de tomates “machucados”, o que pode indicar problemas no modo como é realizado o transporte desse legume.
Foto acima: Feira livre no bairro da Vila Mariana, em São Paulo. Crédito: Luciana Christante.