Não era esse o plano

Por trás da explosão de novos lançamentos imobiliários em São Paulo está a habilidade das construtoras em manejar as regras do plano diretor da cidade segundo seus próprios interesses. Estímulo a verticalização e adensamento em polos de transporte urbano pretendia diminuir o déficit habitacional, mas acabou multiplicando edifícios de alto padrão.

Em julho, o título de edifício mais alto da cidade de São Paulo deve ganhar um novo dono. Está prevista para este mês a entrega de uma torre de 172 m de altura, que está sendo erguida no bairro do Tatuapé, na zona Leste da cidade. O arranha-céu foi concebido segundo um novo modelo de empreendimento imobiliário,  e irá abrigar, em seus 50 andares, 190 quartos de hotel, 80 apartamentos, 50 salas corporativas e 19 lojas. Mas o novo gigante não vai ameaçar o posto do atual edifício residencial mais alto de São Paulo. Que, por sinal, foi entregue em 2021 pela mesma construtora, está no mesmo bairro, também possui 50 andares e mede 168m.

O surgimento desses dois gigantes em apenas dois anos num bairro tradicionalmente residencial como o Tatuapé ilustra bem a onda de empreendimentos que está reconstruindo São Paulo a uma velocidade nunca vista. De um dia para o outro, conjuntos de pequenos comércios e casas vão abaixo e dão lugar a extensos descampados, cercados por tapumes. Rapidamente as calçadas e as ruas ficam empoeiradas, esburacadas e congestionadas pelo trânsito de caminhões, que precisam entrar e sair dos terrenos. Assim começam a subir espigões, com projetos modernos, acabamento de alto padrão, e número de pavimentos muito superior ao que os bairros costumavam abrigar.

Em algumas regiões, há quadras com dois ou mais empreendimentos em construção simultaneamente. Em Pinheiros, por exemplo, na Rua Alves Guimarães, entre a Avenida Rebouças e a Rua Arthur de Azevedo, há oito prédios subindo. Na Vila Mariana, a Rua Cubatão abriga quatro novas obras em quatro quarteirões consecutivos – entre as Ruas Correia Dias e Antônio Coelho. O barulho, a sujeira, as sombras projetadas pelas construções e a mudança na paisagem são apenas alguns dos transtornos que colocam construtoras e moradores de bairros em lados opostos de uma briga que muitas vezes acaba na Justiça.

São Paulo virou um celeiro de obras referendadas pelas regras da última edição do plano diretor da cidade, que entrou em vigor em 2016, mas só agora mostra seus efeitos. Espécie de bússola do desenvolvimento urbano, esse conjunto de normas, que indica para onde e como a cidade deve se desenvolver, apontou que o crescimento deve ser para cima, mas dentro do raio de 600 metros dos eixos de transporte urbano, ou seja, ao redor dos corredores de ônibus e das estações de metrô e trem. “O objetivo é adensar ao longo do eixo de transporte público”, diz Nabil Bonduki, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, que foi relator do plano diretor vigente. Levar a infraestrutura para as bordas da cidade custa mais do que trazer as pessoas para morar perto dela. Mas não é só isso. “A mancha urbana da metrópole não deve se estender horizontalmente por razões ambientais. As construções já avançaram nos mananciais e é preciso manter o cinturão verde ao redor para manter o equilíbrio climático”, explica Bonduki.

Adensamento sim, mas não dessa maneira

Para atrair as construtoras, o plano deu incentivos. Entre eles, permitiu projetos sem gabarito máximo de altura e com potencial construtivo equivalente a quatro vezes a área do terreno. “A ideia era adensar, mas não dessa maneira”, diz o relator. O objetivo era permitir que surgissem edifícios acessíveis à população de baixa renda, possibilitando que mais pessoas pudessem morar e trabalhar nas regiões centrais. Haveria assim a consequente diminuição do deslocamento, do trânsito e da poluição. Na tentativa de limitar o tipo de construção, o texto original restringiu a 80 m2 a área média dos apartamentos. “Na época, o mercado de imóveis estava em baixa e as construtoras pediram um período de adaptação. Ganharam então 40 m2 a mais, passando para a média de 120 m2 até 2019”, conta Bonduki.  Esse período de carência fez com que as empresas fizessem um estoque de terreno e de lançamentos.

­­Bonduki conta que inicialmente impôs empreendimentos sem vaga de garagem, para baratear ainda mais o valor do imóvel, mas o mercado não aceitou. O negociado e aprovado foi uma vaga por unidade. Então as construtoras deram um jeitinho de esticar o espaço do estacionamento. Elaboraram torres com apartamentos de tamanhos variados, ou seja, com estúdios a partir de 30 m2 e unidades com mais de 160 m2, por exemplo. Os apartamentos pequenos são vendidos sem vaga e os grandes com duas ou mais vagas.

Os bairros mais valorizados, como Pinheiros, Vila Mariana e Campo Belo, cujo metro quadrado sai em média R$ 21 mil, são os locais preferidos. “É difícil obrigar as construtoras a levantarem projetos baratos”, diz Rafael Calabria, coordenador de mobilidade urbana do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec). “O plano diretor não conseguiu fazer o adensamento socialmente justo. Ele é excludente e não atende às necessidades sociais do país.” A Fundação João Pinheiros estima o déficit habitacional do Brasil em 577 mil unidades (2019). Entre 2020 e 2030, esse número deve subir para 718 mil, de acordo com a Universidade Federal Fluminense.

“A redação do plano diretor tem equívocos, lacunas e fragilidades”, diz Valter Caldana, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Estamos vendo a realidade se desenhar de forma diferente do que pretendia o texto original, o que é um problema grave.” Ao eleger o Eixo de Estruturação da Transformação Urbana – termo usado para designar locais com transporte coletivo de média e alta demanda ­– para potencializar o uso do solo, a lei homogeneíza o território, como se ao longo dos quilômetros de extensão não houvesse diferentes topografias, hidrografias e paisagens urbanas. Algumas delas inviáveis para construções de grande porte.

É o caso da Chácara das Jabuticabeiras, na Vila Mariana, região próxima à Estação Ana Rosa do Metrô. Trata-se de um loteamento de 1925, antes batizado de Vila das Jabuticabeiras, desenhado pelo engenheiro Prestes Maia. Ela é formada por um conjunto de ruas arborizadas e estreitas de paralelepípedos, com casas de portões baixos e vazados, como se fosse uma vila. O local parece um pequeno pulmão do bairro. “Antes do atual plano diretor só era permitida a construção de prédios com no máximo oito andares na região”, conta a arquiteta Eliana Barcellos, diretora cultural da Associação de Moradores da Vila Mariana (AMVM). Mas desde 2016, por estar ao lado do metrô e de um terminal de ônibus, a altura ficou liberada.

Há outras particularidades, que fazem do local uma exceção. “A região tem subsolo recortado por um intenso lençol freático. É na Chácara das Jabuticabeiras que nasce o córrego do Sapateiro, que abastece o Lago do Ibirapuera”, conta Eliana. Sem qualquer estudo de impacto, as construtoras passaram a comprar casas na região para incorporar. Percebendo o interesse de especulação imobiliária, a associação dos moradores entrou com processo de tombamento do bairro no Compresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico Cultural e Ambiental de São Paulo). A decisão favorável à ação saiu depois de dois anos. “Mas ficaram de fora duas quadras, onde uma construtora conseguiu o licenciamento da obra antes do tombamento”, diz Eliana.

Embates entre construtoras e moradores viraram rotina

O embate entre moradores e as incorporadoras virou rotina. Em maio, a Justiça de São Paulo determinou a suspensão da construção de um prédio na Rua Capitão Cavalcanti, que fica próxima à Chácara das Jabuticabeiras, e deu 120 dias para que mostrassem o estudo de impacto. Além de a rua ser estreita (passa um carro de cada vez) e cheia de casas centenárias, ela está sobre a nascente do córrego do Sapateiro. “As escavações para a construção de garagens no subsolo afetam o lençol freático”, diz a advogada do Movimento Defenda São Paulo, Renata Esteves.

Próximo às margens do Rio Pinheiros, a advogada tem ação contra dois prédios, que bombeiam água do subsolo noite e dia”, diz ela.  São dois edifícios vizinhos. As escavações de um comprometeram a estrutura do outro.  A região tem solo arenoso e instável, que já provocou acidentes no passado, como o desabamento das obras da Estação Pinheiros do Metrô em 2007, condenando casas da vizinhança e provocando a morte de funcionários. O Movimento Defenda São Paulo ainda aponta para crimes ambientais, como lavar o cimento das betoneiras com água que corre para as galerias pluviais. “As construtoras estão destruindo a cidade, a história e o sentimento de pertencimento. Promovem o aumento da fragilidade ambiental e com isso a resiliência da cidade piora muito.” Com quase 400 artigos, o plano diretor é um conjunto de leis orgânicas que se complementam. O artigo 24, por exemplo, descreve a importância da preservação da rede hídrica, que é fundamental no equilíbrio ambiental. Segundo Renata, os licenciamentos das obras saem com base em um recorte do texto e não na interpretação da lei como um todo e daí surgem os abusos.

 “As construtoras agora querem partir para lançamentos de torres nos miolos dos bairros, onde o gabarito máximo de altura é oito andares”, diz a engenheira agrônoma Maria Lúcia Bellenzani, consultora da comissão de política urbana, metropolitana e de meio ambiente. De um lado, existe uma pressão grande das construtoras, que lutam pela verticalização liberada em toda a cidade. “Precisamos ampliar a oferta de terrenos para produzir mais habitação. Nos eixos não existe espaço para incorporação”, defende Maurício Eugênio, especialista em marketing imobiliário. “O governo não pode determinar o produto que vamos fazer. O plano ficou muito restrito.” As associações de bairro querem justamente o contrário: brecar as mudanças – que estão em curso e são irreversíveis.

“Há um abuso construtivo”, diz Rosanne Brancatelli, coordenadora do Pró-Pinheiros, que começou representando os moradores da Vila do Sol, quadrilátero formado pelas Ruas dos Pinheiros, Mateus Grou, Arthur de Azevedo e Doutor Virgílio de Carvalho Pinto, no ano passado. “Quando chegou a vacina e começamos a sair de casa, foi um choque. Os arredores estavam cheios de tapumes e obras”, conta ela. A Vila do Sol é uma espécie de bolha residencial de casas, cercada de prédios. No ano passado, Rosanne recolheu 2 mil assinaturas para evitar a verticalização do local.

A Cyrela foi a primeira construtora a especular, mas recuou por causa da associação. “Atualmente outra empreiteira vem fazendo o mesmo, mas por baixo do pano.” Até o pequeno comércio de rua do bairro está sob ameaça. Muitos fecharam para dar lugar a prédios, que para compensar a interferência passam a oferecer espaço para serviços e comércio no térreo. O projeto segue a mesma concepção de edifícios icônicos como o Copan, no centro da cidade, e o Conjunto Nacional, na Avenida Paulista. Essas construções deveriam absorver os comerciantes locais. “Mas isso não acontece porque os custos do lojista são maiores dentro do prédio do que na loja de rua, pois a infraestrutura como segurança e limpeza, entre outros serviços oferecidos pelos edifícios, encarece a instalação do negócio”, diz Rosanne.

Para o construtor, a chamada fachada ativa é um bom negócio, porque a área não entra no cálculo do coeficiente de aproveitamento da construção e paga menos pela outorga onerosa –contrapartida das empresas pelo espaço aéreo ocupado. “O plano diretor está sendo mal aplicado”, diz Beatriz Messeder, arquiteta urbanista, coordenadora do Conselho de Política Urbana (CPU) da Associação Comercial de São Paulo. “Falta fiscalização.”

Docente da Faculdade de Ciências, Tecnologia e Educação da Unesp, câmpus de Ourinhos, o docente Marcio José Catelan tem realizado estudos de campo no bairro de Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo, como parte de um projeto de pesquisa. “O plano diretor precisa passar a enxergar a cidade da periferia para o centro, e não apenas do centro para a perfiferia. É uma distorção a ser corrigida”, diz. Ele conta ter observado que a cidade tem se tornado cada vez mais fragmentada, mas não apenas no plano do espaço. “Em São Paulo, em algumas situações, o pobre e o rico até moram próximos, mas não convivem. A relação centro-periferia vem sendo substituída pelo paradigma da fragmentação sócioespacial, uma separação por segmentação social, por estilos e escolhas de vida.” 

Em menor escala, verticalização chegou à periferia

Catelan diz que as distorções com base nas orientações estabelecidas pelo plano diretor da cidade ocorrem, principalmente, já na fase de aprovação da proposta junto à Câmara de Vereadores. É neste momento que são travadas discussões políticas com o objetivo de influenciar o processo, no sentido de atender a interesses econômicos principalmente do mercado imobiliário. “O plano diretor é um plano geral. Ele indica caminhos e estabelece algum norte, mas tem outras camadas de leis que também são importantes, como a Lei de zoneamento”, explica.

Catelan diz que também na periferia da cidade a verticalização está se verificando de forma intensa. Mas, mesmo quando atuam nestas áreas, as construtoras miram um público diverso, com maior poder aquisitivo. “O mercado imobiliário se apropria desta lógica da verticalização para fatiar os lançamentos por segmento social. São construídos prédios de apartamentos nas periferias, o que é algo bom. Mas não são os moradores dessas localidades que vão morar nesses prédios novos, e sim pessoas que vêm de outros bairros”, diz.

Outro problema que deveria ser beneficiado pelas orientações do plano diretor mas que tem apresentado poucas melhorias é o da mobilidade urbana. Catelan observa moradores da periferia que chegam a gastar seis horas por dia em deslocamentos de ida e volta ao trabalho. “O plano diretor precisa enfrentar esse problema. Seja promovendo melhores condições de mobilidade, seja trazendo essas populações de baixa renda para o centro”, diz.

Ele avalia que o poder público tem falhado em assegurar o acesso à terra para a população urbana pobre. Para que isso ocorresse efetivamente, seria preciso estabelecer o reconhecimento da terra urbana como um direito, a partir da perspectiva do interesse social. “O plano diretor tem cumprido  com o princípio da função social da propriedade, assegurado pela Constituição de 1988? A resposta é não. E se a prefeitura nao fizer isso, a população mais pobre não vai ter onde morar”, avalia.

De acordo com a lei, a revisão do plano diretor deveria ter acontecido em 2021, mas, devido à pandemia, o ministério público recomendou que fosse adiada para julho deste ano. “Adensar não significa desconsiderar e destruir bairros e vilas com interesse histórico, cultural, urbano, afetivo e ambiental”, diz Bonduki. “É possível adensar sem adotar uma verticalização sem limites.” Basta agora, com a revisão tão esperada, descobrir como isso pode ser feito.

Foto acima: edifício Platina 220, no bairro do Tatuapé, que será o mais alto da cidade. Crédito: Porte Engenharia e Urbanismo.