No último dia 31 de maio de 2022, um ano se completou da morte do jornalista e divulgador científico Maurício Tuffani. Lembro-me bem da data. Eu estava justamente começando a escrever um artigo para o seu site, o Direto da Ciência, quando entro nas redes sociais e fico sabendo que Tuffani acabara de falecer, aos 63 anos, após sentir-se mal em sua casa, na Zona Norte da capital paulista. Tomei um susto. Um grande susto. Não esperava aquela morte repentina de alguém que eu admirava tanto, sem que eu sequer tivesse tempo de conhecê-lo pessoalmente.
Tive poucas oportunidades de falar com ele, por telefone. Mas foram momentos que considero preciosos. Lembro-me da primeira vez em que ele me telefonou. Eu havia enviado um artigo para o Direto da Ciência, como colaborador, e ele ligou para elogiar o material e dar uma previsão de publicação. Mais do que isso, se desculpou pela demora em me dar retorno. Nem precisava, porque eu não esperava retorno, menos ainda por meio de uma ligação. Nesses tempos apressados, falta de retorno é algo frequente.
O telefonema, o elogio, o pedido de desculpas desnecessário, tudo isso causou em mim uma percepção bastante positiva de Tuffani como uma pessoa bem atenciosa e gentil. Ninguém nunca havia me ligado para falar a respeito de um artigo meu. “Por que um jornalista renomado como ele, com um projeto tão relevante como o Direto da Ciência, se daria ao trabalho de telefonar para elogiar e dar algum tipo de satisfação a um Zé Ninguém igual a mim, com quase nada publicado?”, pensei. Pois ainda há esse detalhe: Maurício Tuffani foi um dos primeiros profissionais a abrir espaço para o meu trabalho em um grande veículo de divulgação científica.
A segunda ligação foi um pouco mais constrangedora, mas nada que fosse incontornável. Eu estava na fila de uma loja, segurando um monte de produto, quando toca o meu celular. Como um bom residente no estado do Rio de Janeiro, quando olho a tela do celular e vejo que a ligação vem de São Paulo, já penso que é telemarketing e atendo ressabiado (na maioria das vezes nem atendo). Para piorar, demorei a ouvir meu interlocutor do outro lado da linha, o que me fez perder a paciência: “alô, alôôô!”, gritava eu na fila, aborrecido e desajeitado com os produtos. Até que finalmente ouvi a voz de Tuffani, se apresentando e falando sobre um mais recente artigo que eu havia enviado para publicação em seu site: elogio, previsão de publicação etc. A mesma atenção, o mesmo cuidado. Aí eu que tive que me desculpar pela recepção não muito simpática ao telefone. Se bem que ele nem aparentou ter notado isso.
Em tempos de velocidade, de dispersão, de infodemia e desinfodemia, fazer uma ligação para um desconhecido prestando-lhe esclarecimentos é um baita gesto de consideração, atenção e respeito. Não é todo mundo que se dá a esse trabalho.
Quem foi Maurício Tuffani?
Com sólida formação acadêmica e trajetória no jornalismo, Maurício Tuffani passou pelos jornais do Grupo Estado (O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde) a partir do fim da década de 1970, ocasião em que estudava Matemática e Filosofia na Universidade de São Paulo (USP) e dava aulas de matemática e física para o ensino médio. Especialista na cobertura de ciência, meio ambiente e ensino superior, na década de 1990, foi repórter, colunista e editor de ciência na Folha de S. Paulo. Entre 2000 e 2003, foi redator-chefe e editor-chefe da revista Galileu. Em seguida, foi editor-executivo de portais do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e da ONU no Brasil. Nos anos de 2015 e 2016, assumiu o cargo de editor-chefe de outra grande revista brasileira de divulgação científica, a Scientifc American Brasil, e, ainda em 2016, fundou o site Direto da Ciência, por meio do qual o conheci.
Tuffani também trabalhou nos setores de comunicação de instituições públicas, como a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo e a Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho (Unesp), onde fundou a revista Unesp Ciência.
Sua morte foi amplamente repercutida e lamentada no meio científico e da divulgação científica: “Todos da equipe do Jornal da Unesp estão desolados pela partida do nosso querido amigo, jornalista e editor-chefe, Maurício Tuffani (…) um dos mais respeitados jornalistas de ciência do Brasil, um intelectual, além de um excelente colega de trabalho. Fará muita falta. Nossos sinceros sentimentos a todos os familiares e amigos.”, publicou o veículo, em nota.
A Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC) também publicou uma nota lamentando a sua morte. “Era um grande amigo e parceiro da APqC. Em 2018, a convite da entidade, promoveu uma palestra aos pesquisadores intitulada ‘Os desafios da visibilidade da pesquisa científica’, realizada no Instituto Biológico, em São Paulo. Na ocasião, afirmou que ‘em tempos obscurantistas, cuja tendência é desqualificar a informação científica, os cientistas têm o dever de sair de sua zona de conforto e dar as caras nas mídias sociais para ajudar a combater as chamadas fake news e tornar acessível o resultado de suas pesquisas’”.
Nas redes sociais também houve muita homenagem de colegas de trabalho. O repórter da TV Globo Álvaro Pereira Júnior disse: “Maurício Tuffani era um nome estelar do jornalismo, caso muito raro de quem abraçou o jornalismo de ciência e meio ambiente como uma espécie de sacerdócio, como causa. Gentil, solidário.” Certamente Álvaro Pereira Júnior se referiu a mesma gentileza que eu também pude perceber em apenas duas ligações, em conversas muito curtas com Tuffani.
“Um dia triste para o jornalismo de ciência, que perde uma referência, um cara genial, de olhar certeiro e capacidade de análise rara. Que seu legado nos ajude a fazer com que a informação qualificada em ciência seja sempre a tônica da divulgação científica, mais importante hoje do que nunca. Obrigado por tudo, Tuffani.”, declarou a Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência (RedeComCiência), nas redes sociais.
Controvérsias
Mas as redes sociais não são um mar de rosas (não mesmo!) e no mesmo dia em que soube, por meio delas, da morte do jornalista (o primeiro susto), tomo ainda o segundo susto, ao ler um post com uma crítica bem negativa a Tuffani, que acabara de falecer. Além da falta de timing da postagem (“A decência humana recomenda esperar o cadáver esfriar antes de começar a chutar”, rebatia um outro importante jornalista brasileiro de ciência, nos comentários do post), a crítica tinha viés notoriamente político. E é curioso como no debate político (inclusive no debate político-científico e na própria divulgação científica) aqueles que mais chamam atenção para viéses políticos alheios estão, eles próprios, encharcados de ideário político, ainda que mal disfarçado por um verniz de isenção e neutralidade (vide o Movimento Escola “sem Partido”, exemplo mais literal de todos). Esse verniz pode vir em forma de tecnocracia, em debates sobre gestão e políticas públicas, ou de ceticismo e objetividade, em assuntos de ciência.
Não vou aqui detalhar a crítica do post feita a Maurício Tuffani, pois seria dar espaço a quem não o merece, mas a cito por duas razões: primeiro, para lembrar que unanimidade não existe e que Tuffani não foge à regra. Ainda mais em tempos de redes sociais, que parecem engajar mais pelo conflito do que pela concordância. Segundo, porque a crítica me levou a um exercício que me fez refletir sobre o quanto é necessário criarmos e aprimorarmos mecanismos de filtragem a respeito dos conteúdos espalhados pela internet, dada a quantidade de formadores de opinião e “intelectuais de redes sociais”.
Lendo as notícias sobre a morte de Tuffani, me dei conta da trajetória robusta desse profissional que nos deixou, iniciada no fim dos anos 1970, passando por polos produtores de ciência, instituições de renome e grandes redações. Por curiosidade, fui pesquisar sobre o autor da postagem ácida para conhecer seu currículo, trajetória profissional, portfólio. Não me surpreendeu perceber que era alguém que não tinha nada a oferecer para além das redes sociais com uma fanpage panfletária disfarçada de cética. Não consegui deixar de fazer comparações entre Tuffani e o autor da nota vergonhosa com seu currículo medíocre, repleto de quase nada e salpicado com irrelevância.
A crítica fora motivada pelo perfil editorial do Direto da Ciência, que era, de fato, um veículo de divulgação científica com um espaço maior para as decisões políticas, bastidores e conflitos internos envolvidos nos assuntos científicos quando comparado a outros veículos que temos por aí. Essas coisas fazem parte do jogo e não dá para fazer de conta que elas não existem (basta pensar nos impactos das decisões políticas no enfrentamento da pandemia e todo o negacionismo estimulado por gestores públicos). E Maurício Tuffani era um jornalista que sabia que o exercício da divulgação científica envolve muito mais do que reportar descobertas; inclui, também, apresentar temas que deem a ideia da inserção da ciência no cotidiano, de como ela impacta na vida das pessoas e de como o jogo político interfere em sua produção.
E aí não tem jeito. Claro que as críticas vão surgir. Ainda mais em tempos de acirramento das tensões políticas. A questão é, além de analisarmos os argumentos das críticas, sabermos identificar de onde elas partem, quais os alinhamentos políticos-ideológicos de seus responsáveis e questionar todos aqueles que se autoproclamam “neutros”, “isentos”, “objetivos”, “racionais” e “céticos” quando flagrantemente eles não são nada disso. É o que eu chamo de puxar o fio de um novelo sociopolítico que contextualiza muita coisa e desbarata as pretensões de objetividade de muita gente.
Poucas semanas após Tuffani nos deixar, o site Direto da Ciência saiu do ar, tornando indisponível um acervo riquíssimo (ao menos até onde tentei acessá-lo) e deixando uma lacuna na divulgação de ciência com ênfase em política científica e na relação entre os contextos políticos e científicos. A perda desse acervo me fez pensar no quanto é volátil e inseguro esse mundo digital da internet, de redes sociais, de núvens e de frágeis HDs que frequentemente dão problema. Um desafio e tanto para historiadores, arqueólogos e, por consequência, para a memória social no futuro.
Para além das redes sociais
Tuffani teve uma trajetória que já era robusta antes das redes sociais e que permaneceu robusta para além delas. Em tempos em que qualquer um com uma conta no Facebook e Twitter ou um canal no Youtube diz qualquer coisa e faz um estrago danado, julgo importante ressaltar a solidez dessa trajetória, como é importante também sugerir mecanismos de filtragem para o que consumimos de informação nas redes. Precisamos usar como filtro aquilo que os produtores de conteúdo têm de realizações para além da internet. Precisamos nos interessar pela trajetória, obra, currículo das personalidades digitais para além do mundo digital. Ainda é importante ver se a pessoa tem alguma formação ou experiência profissional ligada ao conteúdo que aborda. Não é uma fórmula perfeita, mas fica aqui apenas a sugestão. Pois é impressionante como a internet está cheia de gente que só tem relevância nela própria, com muito pouco ou nada a demonstrar de si mesma no mundo não virtual. Falar nas redes (inclusive falar bonito) é fácil. Difícil é ser um Maurício Tuffani.
Ao noticiar o falecimento de Tuffani, o Jornal da Unesp chamou-o de “Gigante do jornalismo e da divulgação científica” em texto reproduzido também pelo Jornal da USP. Por todo o exposto, pelos tempos em que vivemos e pelos desafios dos fluxos de informação e, mais especificamente, de informação em ciência, acho necessário acrescentar que ele foi um gigante do jornalismo e da divulgação científica para além das redes sociais!
Tuffani nos deixou em meio à pandemia, justamente no momento em que a divulgação científica do Brasil vivia possivelmente a maior efervescência de sua história. Sua foto em seu perfil do Facebook, na ocasião de seu falecimento, era a de um jacaré, um deboche contra uma declaração negacionista do presidente da República.
Não pude conhecer o Maurício Tuffani pessoalmente. Mas fica aqui o meu muito obrigado a ele, em forma de artigo.
Alexandre Freitas Campos é doutorando em História Social (Uerj), Mestre em Mídia (UFF), especialista em Sociologia Política (Ucam) e em Comunicação Pública (UGF), graduado em Jornalismo e em Cinema e Audiovisual (UFF). É assessor de Comunicação da Prefeitura de Angra dos Reis/Instituto Municipal do Ambiente de Angra dos Reis (Imaar) e pesquisa divulgação de história, ciência e tecnologia. .