Atualmente, 33 milhões de brasileiros não têm o que comer. O dado foi revelado pelo 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da pandemia (Vigisan) e chocou o país por pintar um quadro de perigoso retrocesso. Entre 2004 e 2013, políticas públicas de erradicação da pobreza e da miséria haviam reduzido o índice para o equivalente a 4,2% dos lares brasileiros. Hoje o patamar está em 15,5%.
O mapeamento foi realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), com execução do Instituto Vox Populi, e apoio da Ação da Cidadania, ActionAid, Fundação Friedrich Ebert, Ibirapitanga, Oxfam e Sesc São Paulo.
Os resultados do relatório apontam o quadro de pobreza e as consequências das várias crises pelas quais passa o país. Em média, considerando todas as regiões, 3 em cada 10 famílias relataram incerteza quanto ao acesso a alimentos. Os indicadores, porém, são piores nas regiões Norte e Nordeste, nos domicílios rurais, e aqueles chefiados por negros e mulheres. A deterioração das condições também caminha a passos largos. Em dois anos, a fome dobrou nas famílias com crianças menores de 10 anos, passando de 9% em 2020 para 18% em 2022.
Questões alimentares motivam pesquisas e ações da Unesp
As questões sociais estão no cerne das universidades públicas e o tema da fome tem monitoramento permanente. “A Unesp é uma universidade bastante preocupada com as questões alimentares. Somos a maior escola de estudos agrários do Brasil, com 4 mil alunos e cerca de 700 professores na área. Isso nos permite sermos fortes na pesquisa do tema, com variados grupos e professores altamente especializados”, explica o Pró-Reitor de Extensão e Cultura da Unesp, professor Raul Borges Guimarães.
A Pró-Reitoria de Extensão e Cultura já vinha observando a ampliação do problema nos últimos anos, resultado dos desmontes nas políticas públicas de proteção social, e algumas medidas estavam sendo tomadas. “Procuramos incentivar ações integradoras entre nossas diversas unidades, com a estratégia das redes temáticas, que reúnem docentes e expertise de diferentes grupos, não só da área de agrárias, mas também de humanidades. As redes permitem uma ação mais efetiva para impactar essa realidade dramática que estamos vendo – e enfrentar os problemas que virão”, aponta Guimarães.
Além das redes, há ainda inúmeros projetos de extensão na Unesp voltados a questões de alimentação como a valorização de experiências com hortas urbanas, agroecológicas, preservação de sementes crioulas, estoques de sementes e alimentos saudáveis.
A mais recente iniciativa é a rede em Resíduos Sólidos, Soberania Alimentar e Sustentabilidade Socioambiental (Realssam), criada em fevereiro, e reúne 15 unidades da Unesp e 50 professores. Com ampla atuação, abrange desde questões de reciclagem de resíduos até ações de educação e organização entre os produtores familiares no processo de produção ou transição agroecológica.
O coordenador geral da Realssam, Fernando Sérgio Okimoto, explica que a rede tem várias frentes de ação, tendo sido aprovados recentemente 49 planos de trabalho. Entre os objetivos do grupo está contribuir para a promoção da soberania alimentar, fortalecendo a produção de alimentos de base agroecológica produzidos de forma familiar. “Em 2020, em plena pandemia, conseguimos captar recursos com o Ministério Público do Trabalho para aquisição de cestas agroecológicas, apoiando a agricultura familiar regional, e entregamos a catadores de resíduos recicláveis. Esse trabalho, que é só um dos exemplos do que fazemos, entra agora em nova fase, para continuar a apoiar essa população que já era fragilizada – e agora ainda mais no atual contexto econômico”, relata o professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT) do câmpus de Presidente Prudente.
Apoio às comunidades tradicionais
O olhar atento às comunidades tradicionais, em especial os indígenas Guaranis e Tupis, caiçaras e quilombolas é foco da rede Pindorama, coordenada pelo professor Davis Gruber Sansolo, do Instituto de Biociências do câmpus Litoral Paulista. O processo de urbanização do litoral trouxe uma série de impactos socioambientais que causaram a insegurança alimentar dessa população. Os pesquisadores atuam, entre ouras coisas, no estabelecimento de hortas comunitárias e na transição agroecológica visando à manutenção da sustentabilidade, conta Sansolo.
“A rede Pindorama deriva de uma série de projetos de pesquisa já desenvolvidos no litoral de São Paulo e sul fluminense desde 2013. Há também o Projeto Redes, com financiamento da Petrobras, para educação ambiental em 111 comunidades pesqueiras que habitam uma região compostas pelos municípios potencialmente impactados pela atividade de exploração de petróleo e gás – Mangaratiba, Angra dos Reis, Paraty, Ubatuba, Caraguatatuba, São Sebastião e Ilha Bela. A ideia é integrar a Rede Pindorama à Redes num processo de construção de conhecimento baseado em um diálogo de saberes, com intuito de promover um desenvolvimento territorial inclusivo e sustentável”, diz Sansolo.
Já bastante consolidado e com inúmeras ramificações em atuações diversificadas, o Grupo Integrador do Ensino, Pesquisa e Extensão em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Gissan) atua desde 2016, e tem vínculo com o Centro de Ciência e Tecnologia para Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Interssan), que reúne 42 pesquisadores da Unesp vinculados a diferentes projetos. O centro é coordenado pela professora Maria Rita Marques de Oliveira, do Instituto de Biociências do câmpus de Botucatu.
“Especificamente em relação à essa questão urgente da fome, estamos assessorando o Ministério Público Federal na identificação de 20 municípios com maior número de crianças desnutridas. São números inadmissíveis. Estamos articulando um projeto de apoio a esses municípios para que tenham um plano de ação de segurança alimentar”, ressalta a professora.
O Interssan articula uma rede de atores internacionais, promove cursos e engloba outras associações, como a rede Sans – de defesa e promoção da alimentação saudável, adequada e solidária; a rede Latino-Americana de fortalecimento das políticas de soberania e segurança alimentar e nutricional; e o mecanismo de facilitação da participação das universidades no Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (MU-CONSAN-CPLP).
“O trabalho em rede, em especial aqui no hemisfério sul, representa uma saída de fortalecimento mútuo para enfrentamento da crise em que estamos atravessando. Apesar das nossas diferenças, os desafios de enfrentamento das iniquidades são muito semelhantes”, conclui a professora Maria Rita.
Aliando a experiência de seu corpo de docentes, pesquisadores e alunos, e sua base diversificada de atuação, a Unesp tem comprometimento com as questões sociais e de impacto da sociedade, e o alerta para a questão da fome é ainda mais urgente. “Percebemos que é realmente um compromisso da instituição, e sempre recebemos diretrizes para alinhamento aos objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS) da ONU. Assim, temos sempre esse olhar, seja nas pesquisas, disciplinas, ou nossos projetos de extensão”, expõe o professor Fernando Okimoto.
Foto acima: Fernado Okimoto acompanha o carregamento das cestas agroecológicas e comerciais para distribuição por prefeitura no interior de São Paulo. Crédito: acervo pessoal.