Cobrança de mensalidade não é a solução para o financiamento da universidade pública

Congresso discute PEC que manteria gratuidade do ensino superior apenas para pessoas carentes. Porém, análise de dados socioeconômicos de estudantes da Unesp, como renda familiar e número de integrantes da família, mostra que medida implicaria risco de que alunos venham a desistir dos estudos por incapacidade de arcar com despesas

Mais uma vez, volta ao debate acerca de fontes de financiamento para as universidades públicas a ideia de cobrar mensalidades de quem possa pagar, ou seja, dos alunos que pertencem às famílias mais ricas.

 Proposta de Emenda à Constituição (PEC 206/19) permite que universidades públicas cobrem mensalidades dos alunos.  A gratuidade seria mantida apenas para estudantes comprovadamente carentes, definidos por comissão de avaliação da própria universidade, com base em valores mínimo e máximo estabelecidos pelo Ministério da Educação

Após muito debate na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, os deputados, por acordo, aprovaram um requerimento para a realização de uma audiência pública sobre o tema. Apenas depois da audiência, ainda sem data marcada, a proposta deverá retornar à pauta.

Esta questão há muito tempo vem sendo abordada nos marcos da teoria neoliberal que, entre suas várias sugestões de políticas governamentais de caráter privatizante e de redução dos gastos públicos, propõe a cobrança de mensalidades nas universidades públicas.

Também o Banco Mundial tem insistido nesta questão referindo-se particularmente ao Brasil.  Relatório do Banco Mundial publicado em 2017 afirmava que:

A grande maioria de brasileiros matriculados no ensino superior estudam em universidades privadas. Em 2015, dos aproximadamente 8 milhões de estudantes universitários, apenas cerca de dois milhões estavam em universidades públicas. A pequena minoria de estudantes que frequentam universidades públicas no Brasil tende a ser de famílias mais ricas que frequentaram escolas primárias e secundárias privadas. Ainda assim, o gasto por estudante nas universidades públicas no Brasil é consideravelmente mais alto do que em outros países com PIB per capita similar”.

“Em média, um estudante de universidade pública no Brasil custa de duas a três vezes mais do que um estudante de universidade privada. Entre 2013 e 2015, o custo médio anual por estudante em universidades privadas sem e com fins lucrativos foi de aproximadamente R$ 12.600 e R$ 14.850, respectivamente. Em universidades federais, a média foi de R$ 40.900. Universidades públicas estaduais custam menos do que as federais, mas ainda são muito mais caras do que as privadas, custando aproximadamente R$ 32.200. O custo por aluno dos institutos federais é de aproximadamente R$ 27.850. O custo por aluno em universidades federais é de duas a três vezes superior ao custo em instituições privadas.”

É necessário qualificar e quantificar os argumentos

Há, por parte da sociedade, uma grande aceitação desses argumentos utilizados pelo Banco Mundial com o objetivo justificar a adoção do ensino pago nas universidades públicas.  Para um debate sério é necessário qualificar e quantificar os argumentos a favor da cobrança de mensalidades.

 Em primeiro lugar, é falsa a afirmação que a maioria dos estudantes que frequentam as universidades públicas são de famílias mais ricas que frequentaram escolas privadas.

 Para a análise da capacidade de pagamento de mensalidade por parte dos alunos e do montante de receita que se conseguiria arrecadar com a cobrança, vamos tomar como referência a renda familiar dos alunos ingressantes na UNESP no ano de 2020. Naquele ano, 7.500 alunos ingressaram nos vários cursos de graduação existentes na universidade. Desse total:

– 17,9% tinham renda familiar mensal até 1,9 salário SM (salário mínimo) ou R$ 1.985,50.

– 42,06% com renda familiar mensal de 2,0 a 4,9 SM ou R$ 1.996,00 a R$ 4.989,00.

– 24,6% de 5,0 a 9,9 SM ou R$ 4.990 a R$ 9.979.

– 8,6% de 10,0 a 14,9 SM ou R$ 9.980 a R$ 14.969.

– 3,4% de 15,0 a 19,9 SM ou R$ 14.970 a R$ 19.959.

Outro dado importante para a análise e que baliza a capacidade de pagamento de mensalidades por parte das famílias é o fato de que:

– 83% dos alunos pertencem a famílias com mais de três pessoas; e,

– 58% são de famílias de quatro a seis pessoas.

O número de pessoas da família é uma informação importante uma vez que o valor que pode ser gasto para pagar a mensalidade de uma universidade para um ou mais de seus membros está diretamente relacionado ao montante da renda familiar mensal e ao número de integrantes da família.

É razoável supor que a renda familiar mensal e o número de membros da família dos alunos ingressantes em 2020 mantêm a mesma distribuição percentual para todos os alunos de todos os anos dos cursos de graduação.

Partindo deste suposto, no ano de 2020, 40.000 alunos matricularam-se nos cursos de graduação da UNESP. Desse total:

– 7.160 alunos (17,9%) tinham renda familiar mensal até 1,9 salário;

– 16.824 (42,06%) com renda familiar mensal de 2,0 a 4,9 SM;

– 9.840 (24,6%) com renda familiar de 5,0 a 9,9 SM;

Ou seja, 86% têm uma renda familiar entre R$ 2.000,00 e 10.000,00 e têm mais de 3 pessoas na família. Dá para sustentar uma pessoa estudando fora de casa?

– 3. 440 (8,6%) com renda familiar de 10,0 a 14,9 SM;

– 1. 360 (3,4%) com renda familiar de 15,0 a 19,9 SM.

É tarefa complexa estimar o montante da renda familiar que permite pagar mensalidade no ensino superior para um ou mais de seus integrantes. Como já observado, a capacidade de pagamento está diretamente associada ao valor da renda familiar mensal e ao número de membros da família.

Considerando o valor médio das mensalidades vigente no ensino superior privado é possível afirmar que as famílias com renda mensal até 1,9 SM não têm capacidade de pagar sequer para um de seus membros. Especialmente se a família for numerosa. Isto se aplica também às famílias com renda mensal entre 2,0 e 4,9 SM.

No entanto, com o objetivo de reduzir a margem de arbítrio contida na afirmação acima vamos admitir que metade (21,03%) das famílias com renda entre 2,0 e 4,9 SM sejam capazes de arcar com a mensalidade.

 Sendo assim, em 2020 teríamos um percentual de 57,63% dos alunos dos cursos de graduação cujas famílias teriam capacidade de pagar mensalidade no ensino superior. Ou seja, 23.052 alunos.

Poucos estudantes poderiam pagar as mensalidades

Os dados obtidos em universidades privadas mostram que o valor médio das mensalidades em 15 cursos de graduação das quatro áreas de conhecimento (Ciências Humanas e suas Tecnologias, Ciências da Natureza e suas Tecnologias, Linguagens, Códigos e suas Tecnologias e Matemática e suas Tecnologias) é de R$ 900,00. Evidentemente que alguns cursos, como Medicina e Odontologia, estão acima ou muito acima deste valor.

Assim, admitindo que 23.052 alunos pagassem mensalmente R$ 900,00, teríamos: 23.052 X R$ 900,00 X 12 meses = R$ 248.962.000,00 obtidos com as receitas de mensalidades. Valor que, no caso da UNESP, corresponde a 9% da execução financeira no ano de 2020 e que seria suficiente para pagar 11% das despesas de pessoal no mesmo ano.

No entanto, a suposição de que 23.052 alunos têm condições de pagar mensalidade dificilmente encontra correspondência na realidade. A hipótese mais próxima do real é de que as famílias com renda superior a 5,0 SM têm essa condição.

Assumindo este pressuposto, teríamos que 38,15% dos alunos, ou seja, 15.260 pertencem a famílias com renda suficiente para o pagamento de mensalidade no ensino superior.

Assim, 15.260 x R$ 900,00 X 12 meses = R$ 164.808.000,00. Este montante de receita corresponde a 6% da Execução Financeira e 7,3% das Despesas de pessoal do ano de 2020.

 Por fim, admita-se que os alunos pertencentes às famílias com renda entre 10,0 a mais de 20,0 SM pagassem uma mensalidade de R$ 1.500,00. Teríamos: 5.448 alunos X R$ 1.500,00 X 12 meses = R$ 98.064.000,00. Valor que permitiria pagar apenas 4,3% do salário do pessoal ativo da UNESP.

As hipóteses trabalhadas acima permitem afirmar que somente no primeiro caso seria obtida uma receita anual satisfatória.  Ou seja, 15.260 alunos pagando R$ 900,00 de mensalidade permitiria arrecadar um valor que financiaria 6% do total da despesa. Porém, um número bastante reduzido de famílias com renda entre 2,0 e 4,9 SM teria condições de arcar com as despesas mensais de um curso superior pago. O que, portanto, eliminaria 61,85% dos alunos (24.740) da graduação cuja renda familiar não seria suficiente para custear as mensalidades de uma universidade. 

Para finalizar, duas observações: 1) também é razoável supor que no perfil socioeconômico dos alunos da UNESP seja muito próximo dos ingressantes nas universidades públicas brasileiras.; 2) fica para um próximo artigo a questão da diferença do custo/aluno nas universidades públicas e privadas. Os números utilizados no relatório do Banco Mundial são falaciosos.

José Murari Bovo é docente aposentado do Departamento de Economia da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP – Campus de Araraquara.

Os artigos de opinião assinados não refletem necessariamente o ponto de vista da instituição.

Foto acima: Deposit Photos.