O biólogo, professor, jornalista e escritor moçambicano Mia Couto recebeu na tarde desta terça-feira, 7, o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho em sessão solene do Conselho Universitário da universidade. Trata-se da mais elevada honraria concedida pela Unesp, e destina-se a prestigiar o trabalho de personalidades nacionais e internacionais que se destacaram por suas contribuições para a arte, a cultura, a sociedade e a promoção dos direitos humanos. Mia Couto é autor de mais de trinta livros, ganhador do principal prêmio literário da língua portuguesa, o Camões, em 2013, e seu romance “Terra sonâmbula” é considerado um dos doze melhores livros africanos do século 20. Após a cerimônia de outorga, o autor tornou-se a décima nona personalidade agraciada com o título.
A cerimônia contou com a participação de cerca de 150 pessoas, entre autoridades e docentes da Unesp e representantes de outras instituições, como a Fundação Vunesp, a Academia Brasileira de Letras, a Universidade de São Paulo, a Universidade Federal de São Paulo, a Universidade Estadual de Campinas, a Universidade Presbiteriana Mackenzie, a Universidade Virtual do Estado de São Paulo e a Universidade Zumbi dos Palmares, além de leitores e admiradores do autor, incluindo estudantes dos cursos de letras da Unesp. O evento seguiu protocolos para o controle da covid-19, como o distanciamento e uso de máscaras, e foi transmitido on-line pela TV Unesp.
O evento teve início com a entrada do Cortejo dos Membros da Congregação. A seguir, formou-se a mesa diretora que conduziu o evento, integrada pelo Reitor da Unesp, Pasqual Barretti, pela Vice-Reitora Maysa Furlan, pelo Secretário Geral, Erivaldo Antônio da Silva, e pelo presidente do grupo administrativo do câmpus de Botucatu, Luiz Fernando Rolim de Almeida. Mia Couto entrou no recinto acompanhado pela comissão de honra protocolar, composta pelo diretor da Faculdade de Ciências Agronômicas de Botucatu, Dirceu Maximino Fernandes, pela diretora da Faculdade de Medicina de Botucatu, Maria Cristina Pereira Lima, pelo diretor da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia de Botucatu, Cezinande de Meira, e por Marize Mattos Dall Aglio Hattnher, representando o Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas de São José do Rio Preto.
O Reitor Pasqual Barreti declarou aberta a sessão e foram executados os hinos nacionais de Moçambique (de cuja letra Mia Couto é um dos autores) e do Brasil. O professor Luiz Fernando Rolim de Almeida saudou a chegada do homenageado em nome dos diversos cursos de ciências biológicas da Universidade, uma referência à atuação de Couto como professor e pesquisador da área em Moçambique. A saudação a seguir foi enunciada pela diretora do Centro Brasileiro de Estudos da América Latina, Luciana Latarini Ginezi.
Na sequência, o escritor Ignácio de Loyola Brandão, que também é Doutor Honoris Causa pela Unesp, dirigiu-se à plateia como representante da ABL. “É uma emoção muito grande para mim estar neste momento junto a Mia Couto, um expoente e um dos maiores escritores da Língua Portuguesa”, celebrou o ocupante da Cadeira 11 da ABL. “Vou ficar muito feliz no dia em que eu estiver ao teu lado na Suécia, com o segundo prêmio Nobel da Língua Portuguesa. Estarei muito feliz e muito invejoso, mas é o que você merece”, brincou. “Esse título a Mia Couto honra o autor, honra a Unesp e é um grande momento para a literatura em língua portuguesa”, disse ele ao Jornal da Unesp.
Penetrar no espírito do tempo
Ocorreu então o pronunciamento panegírico, feito pelo secretário geral da Unesp, Erivaldo Antônio da Silva. Ele leu um texto de autoria do professor Trajano Sardenberg, autor da proposta de concessão do título de Doutor Honoris Causa que não pôde estar presente na cerimônia por estar se recuperando da covid-19. A fala celebrou a obra de Mia Couto e a sua capacidade de “por meio de seus livros, consegue penetrar na alma da África e não esquecer os seus fantasmas”.
“Ler os romances do escritor Mia Couto é penetrar no espírito do tempo da África colonial, da África das guerras de libertação, da África das guerras civis e da África da reconstrução dos países, das vidas humanas e das escolhas. É o caminho para conhecer profundamente o impacto do domínio de uma nação estrangeira em um país na África, explicitada na trilogia As Areias do Imperador. A luz para entender a devastação da guerra civil de Moçambique e como resistir espiritual e fisicamente pode ser vivenciada no romance Terra Sonâmbula”, diz o texto de Trajano lido por Silva.
Após a leitura do panegírico seguiu-se a entrega do diploma e da placa comemorativa, que ocorreu à frente da mesa diretora. O autor recebeu a placa com a homenagem das mãos da Vice-Reitora, Maysa Furlan. A seguir, a contralto Rosana Lamosa e o pianista Achille Picchi, ambos professores do Instituto de Artes da Unesp, apresentaram duas canções, intituladas “Para ti” e “Tradutor de chuvas”. As duas são parte de uma obra de autoria do professor Picchi, que musicou cinco poemas de autoria do próprio Mia Couto e do também poeta moçambicano Jorge Cravinhos, intitulada Suíte Moçambicana .
Um médico que prescreve o bálsamo da poesia
Em sua fala de agradecimento, Mia relembrou um pouco da sua trajetória pessoal, narrando seu sonho de juventude de formar-se médico. Após dois anos apenas, abandonou o curso, por não poder “mais viver o meu sonho em um país onde as pessoas morriam mais de miséria que de doença”. “Hoje sou escritor, sou biólogo e muitas vezes me ocorre que não estou tão longe do meu sonho de adolescente. Não cheguei a completar o curso de Medicina, mas às vezes sinto que o escritor se aproxima do médico, que prescreve por meio da palavra o bálsamo da poesia”, comparou.
O autor disse sentir-se honrado pela distinção e agradeceu a presença de todos na cerimônia. “Mas tenho certeza que o que mais nos une aqui é algo bem mais interior, bem maior; a paixão pela ciência, o amor pelo saber, a defesa da universidade como uma instituição livre e libertadora. O que nos faz estar aqui é o respeito pela democracia, pelo civismo, pela diversidade.”
“Não existe grau acadêmico maior que o gosto de construir uma nação isenta de medo e da prepotência. Muito mais que uma instituição de ensino, a universidade é um centro de produção da cidadania. Essa cidadania não pode ser hoje apenas uma palavra. Ela tem que ser gesto, tem que ser ação. Nenhuma universidade pode assistir passivamente à defesa da exclusão, à exaltação do ódio e à celebração da ignorância”, declarou.
Na etapa de encerramento, o Reitor Pasqual Barretti fez um pronunciamento enfocando o autor e sua obra. “Não há como definir de maneira precisa Mia Couto e seu estilo”, disse. “Nem tão pouco isso me parece necessário. Sua pátria é sua infância, sua pátria é sua língua, sua pátria é o bairro em que cresceu, sua pátria é Moçambique.” “Como contador de histórias que é, escreve em prosa poética e, mais importante, acha mais relevante contar histórias que escrevê-las. Contar histórias exige a escuta de alguém. Tão difícil num mundo apressado, globalizado e materialista. Escutar o outro é também sinal de generosidade”, analisou.
“Foi militante da liberdade de seu país e hoje é militante da Lingua Portuguesa. Como biólogo indisciplinado foi capaz de pedir aos cientistas que não tentem explicar tudo. Enfim, como definir Mia Couto? Possivelmente, Mia é um biólogo contador de histórias que as conta por meio da poesia. Isto é, com ritmo, sons e o encanto e a plumagem das palavras”, concluiu.
Foto acima: Martha Martins de Morais