No mês da conscientização mundial sobre o autismo, especialistas da Unesp debatem desafios da inclusão escolar

Apesar de legislação avançada, alunos com TEA ainda enfrentam obstáculos como dificuldades de matrícula, preconceito de colegas, professores sem formação adequada e falta de uma perspectiva mais inclusiva por parte dos gestores. E proposta de nova política nacional de educação especial pode levar ao aumento da segregação.

,

A cada mês de janeiro, por todo o Brasil, pais e mães se movimentam intensamente pela rede escolar de suas cidades, em busca dos melhores estabelecimentos, públicos ou privados, onde possam matricular seus rebentos para o ano que se inicia. Porém, infelizmente, ainda é comum que os pais de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA) enfrentem dificuldades em encontrar escolas que ofereçam as condições necessárias para atender seus filhos de forma satisfatória. E às vezes até mesmo conseguir fazer a matrícula pode se revelar um processo demorado e doloroso, ou mesmo impossível. Só em janeiro deste ano, jornais e TVs de lugares tão variados quanto Juiz de Fora (MG), Aracaju (SE), Curitiba (PR) e Ananindeua (PA) noticiaram a saga de famílias de crianças com TEA em busca de uma vaga na rede escolar.

Em Curitiba, uma mãe relatou negativas de três escolas, inclusive uma confessional, a seu desejo de matricular seu filho de 5 anos. Em Aracaju, foi um pai que contou ter ouvido uma resposta assertiva por telefone, para posteriormente ver a direção da escola voltar atrás no momento da matrícula. Uma situação semelhante ocorreu em Juiz de Fora, envolvendo uma das escolas mais tradicionais da cidade. Inconformados, os pais acionaram a polícia militar e prometem processar a instituição. O caso gerou uma manifestação unânime em defesa da família por parte da Câmara de Vereadores e chegou ao Ministério Público.  No Pará, a notícia da recusa de uma escola em aceitar a matrícula de um menino de 6 anos repercutiu na  capital do estado. Uma comissão formada por deputados estaduais chegou a convocar representantes dos pais e do sindicato de escolas particulares para conversarem na Assembleia Legislativa, mas a mobilização não resultou em nenhuma forma de compromisso.

Para celebrar o abril azul, o mês de conscientização sobre o autismo, o Jornal da Unesp produziu esta reportagem especial para investigar as causas por trás das dificuldades das instituições de ensino para atender, de forma abrangente e com qualidade, os milhares de alunos com TEA que anualmente batem às suas portas ou passam pelos bancos escolares. Um direito, aliás, já assegurado à população pela legislação e até pela Constituição Federal, mas que ainda está longe de se materializar na forma como foi concebido pelos autores das leis. E que, ainda mais preocupante, sofre a oposição alguns educadores que favorecem uma visão de escola segregada, um retrocesso em relação a uma política de inclusão e convívio que tem sido tão duramente conquistada nas últimas décadas.

 

Direito previsto em lei

Tanto a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB 9394/96) quanto a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI 13146/15) e a própria Constituição Federal determinam a educação como um direito. Também está diretamente expresso na LDB 9394/96 que cabe ao Estado garantir o atendimento educacional especializado (AEE) gratuito aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento (o que inclui justamente os transtornos do espectro autista) e altas habilidades. De forma ainda mais específica, a Lei 12764/12 estabeleceu a política nacional de proteção aos direitos da pessoa com transtorno do espectro autista.  Essa lei proíbe que se negue a matrícula escolar à pessoa com TEA, sob pena de multa para o estabelecimento.

A LDB estabelece que é dever dos sistemas de ensino “assegurar currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específicos”. Também menciona a atuação de “professores com especialização adequada em nível médio ou superior, para atendimento especializado, bem como professores do ensino regular capacitados para a integração desses educandos nas classes comuns”. E afirma que o atendimento deve ocorrer preferencialmente na rede regular de ensino; o recurso a escolas especiais é possível, mas não deve ser a opção prioritária.

Pais de estudantes com TEA em reunião com deputados na Assembleia Legislativa do PA para debater dificuldades de acesso ao ensino

Ou seja: segundo a legislação brasileira, é proibido a qualquer escola  recusar a matrícula de alunos público-alvo da educação especial. “É importante que os pais procurem o Ministério Público e denunciem as escolas que estejam negando o acesso à matrícula”, diz Vera Capellini, docente do Departamento de Educação da Faculdade de Ciências de Bauru (FC-Unesp). Ela integra o Observatório Internacional de Inclusão, Interculturalidade e Inovação Pedagógica, e lidera um grupo de pesquisa sobre inclusão de pessoas com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades e superdotação.

Desafio é enxergar o aluno como integrante da escola

“Um dos maiores obstáculos para que o estudante com TEA permaneça nos estudos e se desenvolva está na dificuldade dos gestores escolares em enxergá-lo como alguém que é integrante da escola, e não da educação especial”, diz Capellini. “A escola precisa pensar, planejar e desenvolver atividades que atendam a todos os alunos. Parece algo utópico, mas é o que diz a lei: a escola deve ser inclusiva, para todos e cada um”, diz.

Um dos maiores obstáculos para que o estudante com TEA permaneça nos estudos e se desenvolva está na dificuldade dos gestores escolares em enxergá-lo como alguém que é integrante da escola, e não da educação especial.

Vera Capellini

Mas há outros pontos problemáticos. Ela cita a escassez de políticas públicas que pensem a educação especial em uma perspectiva inclusiva, além da distância entre as políticas vigentes e o cotidiano da escola. Por exemplo, falta articulação entre as escolas e os órgãos das áreas de saúde e de serviço social. Muitas vezes, pode ser recomendado que o estudante com TEA receba algum tipo de acompanhamento terapêutico para estimular o seu desenvolvimento, como um trabalho com uma fonoaudióloga, por exemplo. “É muito importante o apoio dos profissionais da área de saúde. Mas infelizmente isso nem sempre acontece.  Os alunos mais vulneráveis do ponto de vista econômico não obtêm esse acesso, só os com mais recursos. Deveria haver centros multidisciplinares que prestassem esse apoio”, diz. Capellini.

A formação inicial especializada para professores também é insuficiente. Pouquíssimos centros oferecem cursos que formem docentes com qualidade para atuar no segmento AEE.  E a qualidade, muitas vezes, deixa a desejar. “Os professores ficam à mercê de uma formação apressada, na modalidade de ensino à distância, sem experiências práticas. Muitos não chegam a ver ou a conviver com pessoas com TEA. E aí permanece aquela visão de ‘coitado’, do sentimento de pena”, diz. Outro efeito negativo é a crença que se forma em alguns professores de que o aluno com TEA é alguém que apresenta comportamentos estereotipados o tempo todo. “E isso não é verdade, cada aluno é de um jeito.”

O resultado, diz ela, é que sem esse professor especializado, o aluno com TEA que frequenta uma classe comum muitas vezes está fadado à própria sorte. “O professor não especializado muitas vezes acha que o jovem está na classe apenas para socializar. Então, se ele estuda ou não, tanto faz”, diz. Ela cita como uma dificuldade adicional a difusão de crenças equivocadas sobre o estudante com TEA no ambiente escolar. Essas crenças incluem o temor de que o TEA possa de alguma forma ser transmitido por contágio, de que o aluno seja mal-educado ou simplesmente incapaz de aprender. “Tudo isso são mitos. O aluno com TEA é capaz de aprender, desde que receba o ensino adequado”, diz.

Lucia Pereira Leite, professora do Departamento de Psicologia da Faculdade de Ciências da Unesp, campus de Bauru, que faz parte da Rede de Pesquisa em Acessibilidade, Diversidade e Inclusão da Unesp (REPADI), estuda a temática da inclusão escolar há cerca de quase duas décadas. Ela já conduziu e orientou diversas intervenções práticas em escolas a fim de capacitá-las para lidar melhor com a inclusão de alunos com deficiência, categoria na qual as pessoas com TEA estão inseridas desde 2012.  “Vejo que o número de alunos com TEA aumentou muito em relação ao que era no passado”, diz. “É claro que a capacidade diagnóstica também mudou. Alguns casos que são classificados como TEA hoje talvez anteriormente não fossem.” Ela cita estudos feitos nos EUA que embasam a estimativa de que a proporção de pessoas com TEA no Brasil pode chegar a 1 a cada 100 habitantes. “Algo como dois milhões de brasileiros poderiam estar neste grupo. É um número bastante alto”, diz.

Ela conta que desde que a LDB estabeleceu que a educação de alunos com deficiência deveria se dar preferencialmente no ensino comum, teve início um lento processo no qual o número de estudantes matriculados em instituições especiais caía, enquanto crescia o de inscritos em escolas regulares. O ano de 2008 foi o da virada, isto é, aquele em que o número de matrículas de estudantes com deficiência no ensino comum se tornou maior. 

Leite avalia que na educação pública há uma preocupação quanto à necessidade de se oferecer atendimento especializado ao aluno com TEA. Mas que ainda existem problemas na forma como esse atendimento ocorre. “É comum escutar dos professores que eles se sentem despreparados para receber alunos com autismo. Seja porque não tiveram formação para lidar com tais alunos, ou porque não há um suporte oferecido pela unidade de ensino”, diz. Ela também ressalta a importância da colaboração de psicólogos e profissionais de serviço social nas escolas para ajudar a atender esse público —  algo inclusive previsto em lei (Lei 13.935) mas ainda não concretizado na prática.

Ela acha que é difícil apontar todos os pontos que se precisa aperfeiçoar para obter uma escola mais inclusiva. “Depende de cada caso. Pode haver um contexto onde os professores possuem capacitação, mas ainda assim existe preconceito, a comunidade não é muito acolhedora”, diz.

É importante falarmos bastante sobre as diferenças humanas, incluindo o autismo. Mesmo que algumas pessoas possuam comportamentos diferenciados, nada disso é motivo para afastá-las do convívio comum.

Lúcia Pereira Leite

Atualmente, os cursos de pedagogia incluem disciplinas obrigatórias enfocando temas como deficiência e inclusão. E no caso de alguns cursos, como psicologia e fonoaudiologia, além dos cursos de licenciatura, também há portarias recomendando que os currículos  passem a oferecer disciplinas abordando esses temas. Porém, em geral, são ementas bastante amplas, nas quais os conteúdos sobre TEA compõem apenas uma parte. Leite, porém, considera que seria mais adequado preparar o professor para lidar com estes alunos ao longo da carreira.  “Durante sua trajetória profissional, os professores da rede pública participam de diversas formações continuadas. Acho que deveríamos atuar neste espaço”, diz.

Laudo, só na Universidade

A história de Marcos Moretti, 23, aluno da Faculdade de Engenharia  do câmpus de Ilha Solteira, ilustra os problemas que os estudantes com TEA podem enfrentar ainda hoje no Brasil, e também mostra como já existem recursos para auxiliá-los a se desenvolverem de forma adequada.

Nascido em Pereira Barreto (SP), ainda criança, Moretti foi reprovado no segundo ano do ensino fundamental por não saber escrever, embora se destacasse nas aulas de matemática. Além das dificuldades no aprendizado, enfrentava atribulações na convivência com os colegas. Ao longo de anos, sofreu diversos episódios de bullying físico e emocional, chegando até  a ter um braço quebrado num desses eventos. Não recebia manifestações de apoio e acolhimento por parte dos professores e gestores das escolas. Na transição para o ensino médio chegou a ficar um ano sem estudar, porque não conseguiu se adaptar ao estudo em período integral.

Marcos Moretti, aluno de engenharia mecânica da Unesp em Ilha Solteira

A custo, Moretti conseguiu ingressar no curso de Engenharia Mecânica na Faculdade de Engenharia da Unesp do câmpus de Ilha solteira. Mesmo assim, continuou enfrentando dificuldades de adaptação, vindo a reprovar em diversas disciplinas. Ao cursar uma das disciplinas, conheceu Silvia Regina Vieira da Silva, docente do Departamento de Matemática. Ao longo da convivência nas aulas, ela foi constatando que o comportamento do jovem requeria uma atenção maior por parte dos docentes e gestores. “Marcos não possuía laudo, e por isso não recebia o acompanhamento adequado, o que trouxe muitas dificuldades”, diz Silva. “Já nas primeiras conversas descobri que ele havia recebido um laudo equivocado de Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDHA) e inclusive usou medicação erroneamente”, diz.

Silva então mobilizou a Universidade a ajudá-lo a conseguir um laudo, que confirmou o TEA. Com o laudo em mãos, o rapaz teve direito a receber acompanhamento por fonoaudiólogo, terapeutas ocupacional e psicólogo, no Centro de Reabilitação Especializado de Ilha Solteira (CER). a docente conta que no início da faculdade, Moretti tinha muita dificuldade de entender, por exemplo, por que uma resposta sua por escrito não era suficiente para justificar a solução de um exercício.

Após a convivência com Moretti, a docente interessou-se pelo tema da educação inclusiva e, desde 2019, esta passou a ser sua linha de pesquisa, trabalhando junto ao Laboratório de Tecnologias para o Desenvolvimento e Inclusão de Pessoas da Unesp, câmpus de Bauru. Ela estabeleceu também uma parceria com a secretaria Municipal de Educação de Ilha Solteira, e organizou um evento no município sobre educação especial em parceria com profissionais da Unesp de Bauru, através da professora Eliana Zanatta. A colaboração com a prefeitura evoluiu para um projeto de extensão custeado pela Unesp com foco na capacitação de professores da rede municipal de ensino do município de Ilha Solteira. Com o acompanhamento adequado, mesmo que tardio, a performance acadêmica de Moretti melhorou muito. Ele cursa atualmente o oitavo período.

Nova política de educação especial foi suspensa pelo STF

Nos últimos anos, tem sido levantado, nas mais altas esferas da educação brasileira, o debate em relação à pertinência da inclusão dos alunos da educação especial em escolas regulares em contraposição ao recurso às chamadas ‘escolas especializadas’, onde não haveria interação com colegas sem deficiências, transtornos globais do desenvolvimento ou altas habilidades.

A discussão teve início com instituição da nova Política Nacional da Educação Especial, por meio de Decreto do governo federal, em setembro de 2020, a qual deu mais ênfase ao papel da família na decisão da “alternativa educacional mais adequada” aos seus filhos, apontando as escolas especializadas como opções “aos educandos da educação especial que não se beneficiam, em seu desenvolvimento, quando incluídos em escolas regulares inclusivas e que apresentam demanda por apoios múltiplos e contínuos”.

Devido à reação adversa por parte de educadores e especialistas da área, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu o decreto pouco mais de dois meses após sua publicação, alegando que a nova política “contraria o modelo de educação inclusiva, ao deixar de dar absoluta prioridade à matrícula desses educandos na rede regular de ensino”. Dias depois, o STF formou maioria a favor de manter a suspensão, que segue até os dias de hoje.

Já em agosto de 2021, o então ministro da Educação Milton Ribeiro falou sobre o tema em entrevista ao programa Sem Censura, da TV Brasil. Na ocasião, ele afirmou que a criança com deficiência “atrapalhava” o aprendizado dos outros e não aprendia nas turmas regulares. “A criança com deficiência era colocada dentro de uma sala de alunos sem deficiência. Ela não aprendia. Ela ‘atrapalhava’, essa palavra falo com muito cuidado, ela atrapalhava o aprendizado dos outros porque a professora não tinha equipe, não tinha conhecimento para dar a ela atenção especial”, declarou Ribeiro, que deixou o ministério semana passada depois que vazou um áudio onde ele prometia tratamento especial junto ao ministério para prefeitos que fossem encaminhados por dois pastores sem nenhuma ligação formal com o órgão.

Frontispício de publicação com apresentação da Política Nacional de Educação Especial

Eliana Zanata, também do Departamento de Educação da Faculdade de Ciências da Unesp, câmpus de Bauru, e especialista em educação especial e inclusiva, alerta que tais movimentações recentes do governo federal podem representar um ‘retrocesso sem tamanho’. Segundo Zanata, as escolas especializadas devem ser destinadas somente às pessoas com TEA severamente comprometidas, e que não possam se beneficiar por meio de uma escola regular. Entretanto, nos casos de crianças pequenas diagnosticadas com TEA que ainda nem sequer experimentaram o convívio social, mesmo que sua comunicação seja não verbal e que apresentem diversos tipos de comportamentos estereotipados, não se deve privá-las da oportunidade de estudar em uma escola regular.

“Não significa que a criança com TEA não aprenda, ela só aprende de um jeito diferente. Ela precisa de outros recursos e outras estratégias de acolhimento, e também precisa brincar e interagir com todo mundo. Apesar de a interação não ser o papel principal da escola, que seria a educação formal, hoje a gente pensa a escola como formação global do indivíduo. E conviver com o outro também é um processo formativo para as demais crianças”, diz.

A docente ressalta a importância da inclusão do aluno com TEA na escola regular para os demais colegas, como um processo de formação do cidadão para a convivência com a diversidade. “Quem na educação básica teve colegas com essa condição desenvolve  um outro olhar para essas pessoas na vida cotidiana pós-escola. Agora, se as crianças com TEA ficarem reclusas às escolas especializadas e, depois, frequentarem restaurantes, igrejas e o mercado do trabalho, como é que os demais vão ter a sensibilidade e o acolhimento pra lidar com elas? Nem a própria pessoa foi preparada adequadamente e nem os outros. A inclusão é uma formação de mão dupla”.

Quem na educação básica teve colegas com essa condição desenvolve um outro olhar para essas pessoas. Se as crianças com TEA ficarem reclusas às escolas especializadas, como é que os demais vão ter a sensibilidade e o acolhimento pra lidar com elas? Nem a própria pessoa foi preparada adequadamente e nem os outros. A inclusão é uma formação de mão dupla.

Eliana Zanata

“Existe uma ideia equivocada quanto a um padrão do que é ser normal, e como a pessoa com TEA se afasta desse padrão, entende-se que ela deveria ser afastada do convívio”, diz Leite.  “Para mudar isso, é importante falarmos bastante sobre as diferenças humanas, incluindo o autismo. Mesmo que algumas pessoas possuam comportamentos diferenciados, nada disso é motivo para afastá-las do convívio comum”, diz. 

Imagem acima: Deposit photos