Pagar uma conta. Chamar um táxi. Agendar uma consulta médica. Ouvir um podcast. Descobrir o nome de uma música que está tocando no rádio do carro. Identificar as estrelas no céu noturno. Essas múltiplas demandas do cotidiano moderno podem ser solucionadas recorrendo-se a uma só ferramenta: o smartphone. Que também serve, é claro, para fazer ligações para outros telefones, assim como para compartilhar arquivos de vídeo e texto com outros usuários do equipamento.
Segundo levantamento divulgado em agosto passado, o Brasil ocupa a quinta posição no ranking de países com mais usuários de smartphones. São 118,5 milhões de pessoas, ou o equivalente a 55% da população, que costumam passar seus dias gravando áudios no Whatsapp, surfando nas redes sociais e baixando todo tipo de aplicativo que prometa soluções digitais para problemas concretos. Aliás, o Brasil é o quarto maior mercado mundial em termos de download de aplicativos. Em média, nossos celulares possuem mais de 70 aplicativos instalados, embora não usemos rotineiramente nem a metade deste total. Porém, uma vez que a população brasileira ultrapassa a marca dos 210 milhões, temos hipoteticamente algumas dezenas de milhões que estão navegando pela vida sem poderem recorrer ao Waze ou a outra ferramenta digital para mostra o caminho.
Trata-se de um estilo de vida difícil de sequer ser concebido pelos brasileiros donos de smartphones, que durante o segundo trimestre de 2021 dedicaram a seus celulares uma média diária de 5,4 horas (um crescimento de impressionantes 45% em relação à média de 3,8 horas diárias registrada em 2019). Porém, uma boa conversa com as pessoas que se recusam a incorporar um smartphone à sua rotina pode revelar argumentos e até ganhos práticos envolvendo autonomia, produtividade e privacidade.
Aparelho passou do lazer para o trabalho
O físico Nathan Berkovits, 60, chegou ao Brasil em 1994 para trabalhar com pesquisa e ensino, e hoje é diretor do Instituto Sul-Americano para Pesquisa Fundamental (ICTP –SAIFR), instituição que é fruto de uma parceria entre o Instituto de Física Teórica da Unesp, a Fapesp e o ICTP original, que funciona em Trieste, na Itália. Berkovits é um exemplo de como uma carreira bem-sucedida no campo das ciências pode ser conduzida recorrendo-se basicamente ao email como ferramenta de comunicação com colaboradores, funcionários e chefes. Eventualmente também é possível falar com ele ao telefone fixo, mas não há muito mais opções: o físico também não pode ser encontrado por meio de perfis em redes sociais, como o Instagram, Linkedin, Academia ou o Facebook.
Certas condições práticas contribuem para que ele possa manter esse estilo de vida pouco conectado. O físico não tem filhos, o que diminui a pressão para que esteja disponível para ser acessado imediatamente em casos graves ou emergenciais. Também mora no centro de São Paulo, região fartamente atendida pelo transporte público e onde é fácil encontrar um táxi, o que lhe permite nunca ter precisado acionar um app de transporte. E a infraestrutura bancária da região também o manteve distante das operações bancárias on-line até dois anos atrás. “Antes da pandemia, eu ainda imprimia os boletos e caminhava até o caixa eletrônico para fazer os pagamentos necessários”, conta “Depois, não deu mais”.
O desinteresse de Berkovits pela possibilidade de comunicação via celular começou ainda no período em que o emprego do aparelho era, basicamente, fazer e receber ligações. “Via uma pessoa receber uma ligação no meio de uma reunião importante, por exemplo, e ser obrigada a sair para atender. Não gosto de interromper algo porque alguém quer conversar comigo naquela hora. Prefiro atender o telefone quando estiver em casa, não na rua”, diz.
O desenvolvimento dos demais recursos nos celulares, que terminou por culminar nos smartphones, só o afastou ainda mais. “Sei que os smartphones surgiram associados ao lazer, mas se tornaram ferramentas de trabalho. Vejo as pessoas usando o celular no metrô já de manhã cedo para trabalhar e sinto dó”, diz. “Enquanto mexem nos celulares, elas não estão vendo o mundo. Talvez eu esteja perdendo alguma coisa. Mas estou ganhando o tempo que essas pessoas estão gastando”, pondera.
Ele recorda que, certa vez, uma autoridade acadêmica tentou contatá-lo imediatamente por telefone, e não conseguiu. Quando a conversa finalmente aconteceu, a autoridade disse que o físico deveria adquirir um aparelho. “Pensei que fosse algo urgente, mas ele queria apenas me parabenizar por alguma coisa, e se sentiu contrariado porque não pôde ligar no momento em que quis. Pensei: eu devo ter um celular para que alguém possa me ligar para me cumprimentar quando tiver vontade?”, conta.
Celular jogado fora
Já o diretor do Laboratório de Ecologia Espacial e Conservação do Departamento de Biodiversidade da Unesp no câmpus de Rio Claro, Milton Ribeiro, 51, é um ativo usuário das redes sociais. A conta no Twitter, que recebe umas dez postagens por mês, permite a ele compartilhar as novidades sobre eventos, bolsas e artigos relacionados aos grupos de pesquisa que coordena (além de retweets de vídeos fofos de crianças). Seu perfil no Facebook é abarrotado de fotos tiradas durante sua outra atividade docente, a de mestre de capoeira, círculo onde é conhecido como Miltinho astronauta. Mas nem o desafio de manter estes perfis atualizados revelou-se um motivo bom o suficiente para convencer Ribeiro a carregar um celular no bolso nestes dias.
Nos anos 1990, época em que cursava o mestrado no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais em São José dos Campos, Ribeiro sequer dispunha de um telefone fixo em casa, que dirá um celular; as conversas com a família, que vivia em outra cidade de São Paulo, dependiam do telefone público. Detalhe: a família também não possuía telefone em casa. Todas as ligações eram feitas de um orelhão para outro, em data e hora previamente agendados. Após se casar em 2002, adquiriu um celular que permitiu que se mantivesse em contato com a esposa, especialmente durante o período em que vinha frequentemente à capital paulista para cursar o doutorado em Ecologia na USP, concluído em 2010.
Apesar de dispor do aparelho, porém, nunca chegou a criar qualquer apego, e cita como exemplo um IPhone que chegou a adquirir certa vez, facilitado por um desconto expressivo. “Logo enchi o saco e larguei numa gaveta. Ficou lá até que meu irmão encontrou e pegou”, lembra. Terminou por ganhar de um aluno um aparelho básico, que estava encostado, e passou a usá-lo apenas para fazer e receber chamadas. “Mas nunca gostei muito desse tipo de comunicação”, diz.
Há coisa de uns cinco anos, uma paralisação aérea o surpreendeu em outro estado, para onde tinha viajado a fim de participar de uma banca. O jeito foi voltar de carona com um desconhecido. Já em casa percebeu que havia esquecido o seu celular básico no carro. O motorista entrou em contato e se ofereceu para retornar o aparelho. “Disse: pode doar para alguém ou jogar fora. Não quero mais celular, não”, conta.
Passou então a centrar sua comunicação no email. É graças a essa estratégia que consegue gerenciar a alta quantidade de demandas que recebe diariamente, ligadas aos quatro estudantes de mestrado e dez de doutorado que orienta, aos quatro pós-doutores que supervisiona, aos bolsistas de iniciação científica que estagiam em seu laboratório e, de maneira mais ampla, aos trinta bolsistas que integram os dois grupos de pesquisa que coordena. “ Ao centrar tudo no email consigo selecionar aquilo a que vou dar prioridade. Sei que não vou dar conta de tudo, mas pelo menos não fico sentindo essa pressão que é receber informações e demandas o tempo todo por vários canais. No fim do dia eu desligo o meu computador e consigo me desligar também”, conta.
A decisão teve o apoio da esposa Keila Cornetta Ribeiro, com quem ele compartilha os cuidados com dois filhos com idades de 11 e 13 anos, que não têm celular. “O Milton tem uma tendência a ser workaholic. Antes da pandemia trabalhava 12 horas por dia. Depois, passou a trabalhar 14, 16 horas. Como sei da dificuldade que ele tem em se desligar, acredito que não possuir celular é algo benéfico”, diz.
É claro que viver sem aplicativos pode ser menos cômodo. “Sei que os benefícios existem, mas eu me privo deles”, pondera. Sua abordagem é acessar outros recursos digitais. Se é o caso de pedir comida, acessa o site do restaurante e torce para que eles aceitem pedidos via telefone. Se precisa de um transporte, pede a alguém com celular que peça um táxi ou Uber para ele. E se for necessário dirigir para um lugar que não conhece, o docente imprime um mapa com orientações e se guia por ele. “ As pessoas conseguiam chegar aos locais que queriam antes que existisse o Waze”, diz.
Ele reconhece que, se não fosse sua predileção por emails, a comunicação com os integrantes dos grupos de pesquisa que coordena já teria migrado para o Whatsapp, devido à agilidade do aplicativo. Mas pondera que a opção lhe confere mais tempo para se dedicar às tarefas essenciais, tais como revisar um artigo (seus grupos publicaram mais de 30 no ano passado), escrever um pedido de financiamento ou fazer uma reunião “olho no olho” com um estudante podendo dedicar atenção total à conversa. “Ainda que muitas vezes o estudante fique com um olho no que está recebendo no celular dele durante a reunião”, diz.
Um uso consciente das tecnologias
O geógrafo Paulo Roberto Teixeira de Godoy, professor do Departamento de Geografia e Planejamento Ambiental no câmpus da Unesp em Rio Claro, talvez possa ser classificado na categoria dos usuários recalcitrantes de celulares. O aparelho que ele possui é capaz apenas de fazer e receber chamadas, e foi comprado em 2016, a fim de facilitar o contato com a esposa que foi passar uma temporada de estudos fora do Brasil. O casal reside em um bairro na zona rural de Rio Claro, e assim o uso de celulares também serve como seguro contra alguns riscos do isolamento. Como se trata de um telefone móvel, o combinado é que o professor o leve consigo quando sair. Mas isso na prática não acontece. “Ele termina servindo como um telefone fixo porque saio e me esqueço de levar, não tenho o hábito. Isso é até motivo de reclamação, pois quem quer falar comigo não consegue”, diz.
Quando a saída de casa envolve um trajeto mais longo, como uma viagem até outra cidade, ele se lembra de colocar o aparelho na bagagem. Porém, o trabalho de carregar as baterias e comprar os créditos que permitam seu uso fica a cargo de sua esposa. E mesmo nestes casos as ligações são extremamente raras. Godoy não informa o número do celular a seus alunos, chefes ou colegas, e não atende ligações vindas de números que não conhece bem. “ As pessoas raramente ligam para mim porque sabem que eu não gosto de falar ao celular. Então, se ligam, é só para um recado rápido. Ou desistem de ligar, e mandam um email”, diz.
Godoy não usa smartphones ou redes sociais, e tem uma visão crítica quanto ao papel central que ambos desempenham na vida moderna. “Acho que as novas tecnologias são boas em muitos aspectos, como saúde, transporte ou segurança. Mas seu uso cotidiano pode nos afetar de várias formas, inclusive emocionalmente”, diz.
Ele diz ter percebido uma conexão pouco clara, mas muito atuante, entre celulares e redes sociais. Essa conexão permite que assuntos eventualmente abordados durante uma conversa sejam depois usados como parâmetro para a seleção dos anúncios que são exibidos quando se está navegando pela internet. “O celular e as redes permitem fazer um mapeamento dos comportamentos dos usuários, para posteriormente fazer associações de consumo, oferecer produtos. E eles nunca dormem, estamos sendo monitorados o tempo todo”, diz. “Será então que, diante desse acompanhamento, o usuário do celular realmente está fazendo suas escolhas com autonomia? Quem é que está usando quem?”, diz.
Também lhe chama a atenção a capacidade do aparelho para moldar o comportamento do usuário. Se alguém adquire um novo modelo com diversos recursos, vai imediatamente procurar usá-los, diz ele, aumentando assim o tempo gasto no mundo digital. Esta apego intenso termina por afetar inclusive o aspecto emocional dos usuários. “Para algumas pessoas parece que é um vício. E já observei que se um pai deixa as crianças mexerem em um smartphone por alguns minutos e depois tira, as crianças ficam irritadas, o humor delas se altera”, diz. “Constatar essas coisas me fez adotar a posição de não usar estas tecnologias”, diz.
Assim como Berkovits e Ribeiro, o geógrafo diz que essa opção muitas vezes cobra um preço. “Já houve casos de eventos que me interessaram, mas foram divulgados apenas por redes sociais. Assim, não fiquei sabendo e não pude comparecer”, lembra. Em outra ocasião, ao se inscrever para participar de um importante congresso nacional, deparou com uma ficha de inscrição onde era obrigatório informar um número de celular. “Achei um absurdo. Por que eu deveria ser obrigado a ter um celular para poder participar de um congresso na minha área? Eu era moderador de um grupo de trabalho, inclusive. Mas informei o celular da minha esposa e fui em frente”, diz.
Além de conseguir tocar a vida sem precisar acionar nenhum aplicativo, ele também tem restrições a alguns deles. “Já há estudos mostrando que aplicativos como o Waze produzem a alienação do motorista com relação ao espaço. Como a pessoa não precisa prestar atenção para se orientar, o entorno vai se tornando algo desconhecido. Afeta até a memória do espaço”, diz.
Godoy diz cuidar com apreço de alguns objetos tecnológicos analógicos que guarda em casa, um acervo que inclui mais de uma centena de LPs de vinil e até um rádio de pilha ainda funcional, que usa para escutar certas estações. Mas essa predileção não o impede de empregar recursos digitais para se divertir ou exercer tarefas ligadas à sua atividade profissional, tais como orientar alunos, dar aulas, participar de eventos acadêmicos ou palestrar em lives. “ Como professor, eu também tenho usado cada vez mais essas ferramentas. Mas procuro usar com consciência do que elas podem causar à nossa saúde física e mental”, diz.