A queda na cobertura vacinal de imunizantes oferecidos pelo Plano Nacional de Imunização (PNI), que já vinha sendo registrada desde 2015, se acentuou durante a pandemia de covid-19, em virtude da baixa procura por serviços de saúde e pela concentração de esforços no atendimento aos pacientes acometidos pela doença causada pelo coronavírus. E, segundo contam os especialistas, além destes ingredientes já conhecidos para a baixa procura vacinal, outro relativamente novo ganhou força no período: a disseminação de notícias falsas e a atuação de grupos antivacina.
O resultado é um cenário sanitário que gera preocupação pela possibilidade de surtos de doenças anteriormente controladas, como o sarampo, especialmente no momento em que os estudantes voltam a se reunir em aulas presenciais após passarem praticamente dois anos em isolamento.
Criado em 1973, o PNI brasileiro tornou-se referência mundial em saúde pública, e tem entre seus grandes méritos a erradicação de males como a poliomielite e a rubéola, além da redução no número de casos de diversas enfermidades, como a febre amarela e a difteria. Em 2016, o país recebeu da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) o certificado de eliminação do sarampo.
Lamentavelmente, já em 2018 o país perdeu essa certificação ao registrar mais de 10 mil ocorrências da doença, além de 12 óbitos. A principal causa deste retorno foi a queda na cobertura vacinal do país, explica o médico infectologista Alexandre Naime Barbosa, professor da Faculdade de Medicina da Unesp, no câmpus de Botucatu. “É paradoxal, mas quanto mais nós vacinamos, menos as pessoas se preocupam em ser vacinadas”, explica. “Quando as pessoas não enfrentam um período de circulação dos patógenos, ela não ficam doentes. Aparentemente, isso faz com que a população se torne menos atenta e preocupada” com a vacinação, diz ele. Nos últimos anos, surtos das doenças classificadas como imunopreveníveis, ou seja, que podem ser evitadas por meio de vacinação, também foram registrados na Europa e nos Estados Unidos.
Em queda desde 2015
De acordo com dados do Sistema Único de Saúde (SUS), a cobertura vacinal das duas doses da vacina tríplice viral (que também oferece proteção contra a rubéola e a caxumba), administrada em crianças a partir dos 12 meses, vem caindo desde 2015, assim como a maioria dos imunizantes oferecidos no PNI. Presidente do Departamento de Imunologia da Sociedade Brasileira de Pediatria, o médico Renato Kfouri afirma que a entidade vem se debruçando há anos sobre esses números. “Como é uma doença que não está eliminada em quase nenhum lugar do mundo e é a mais transmissível delas, o sarampo é a primeira a dar as caras”, explica.
Kfouri diz que o Ministério da Saúde está prestes a concluir um estudo em 23 capitais cujo objetivo é obter uma noção mais precisa da cobertura vacinal no país e compreender melhor as causas da queda na vacinação.
Embora os especialistas concordem que a baixa na incidência das doenças proporcionada pela da imunização prejudique a percepção da população quanto à necessidade de se vacinar, em um país de proporções continentais e extremamente heterogêneo, como é o caso do Brasil, outros fatores podem pesar na decisão. Neste sentido, a criação de campanhas de vacinação mais eficientes e com presença em canais digitais, a ampliação do horário de atendimento dos serviços de saúde e o aumento da disponibilidade de imunizantes já foram apontados como estratégias possíveis. “O motivo que leva alguém de São Paulo a não se vacinar pode não ser o mesmo que move alguém no interior da Paraíba. É importante entender melhor as causas, as barreiras e as dificuldades do processo de vacinação para estipular quais as ações de imunização mais adequadas para cada região”, aponta Renato Kfouri.
Se o cenário anterior a março de 2020 já exigia atenção das autoridades sanitárias, a percepção de muitos epidemiologistas é que com a pandemia de Covid-19 o quadro se agravou. A necessidade de isolamento social e a alta demanda por cuidados de saúde mantiveram boa parte da população em casa. Por outro lado, os serviços de saúde se concentraram principalmente no atendimento aos doentes da Covid-19, levando a uma queda na procura por atendimento médico e de saúde em geral.
Uma pesquisa desenvolvida por epidemiologistas da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e publicada na revista científica Vaccine procurou entender o impacto da pandemia na imunização das crianças considerando cinco imunizantes: a vacina BCG, que previne contra a tuberculose, a primeira dose contra a hepatite B, a terceira dose da vacina pentavalente (difteria, tétano, coqueluche, influenza B e hepatite B), terceira dose contra a poliomielite e a primeira dose da vacina tríplice viral.
O trabalho levantou dados do Sistema de Informações do Programa Nacional de Imunizações (SIPNI) e realizou uma pesquisa em 133 grandes cidades brasileiras a respeito da vacinação e concluiu que a pandemia estava associada a uma queda de aproximadamente 20% na taxa de imunização infantil, com maior gravidade na região amazônica em nas crianças oriundas de famílias pobres. “Há urgência de impulsionar as atividades de imunização no país para compensar as doses perdidas e para reduzir as desigualdades geográficas e socioeconômicas”, sugeriu o artigo, que foi publicado em junho de 2021 e contabilizou dados apenas do ano de 2020.
Discurso antivacina cresceu durante a pandemia
Se a queda nas taxas de imunização já representam uma preocupação sanitária, o contexto da pandemia de Covid-19 trouxe ainda uma preocupação relativamente nova: o crescimento da atuação dos grupos antivacina. Embora tais grupos fossem existissem há décadas, principalmente nos Estados Unidos e alguns países da Europa, suas ações no Brasil eram até então discretas. Neste tópico, é importante diferenciar a postura antivacina de um conceito chamado “hesitação vacinal” que, segundo a Organização Mundial da Saúde, se refere à demora na aceitação ou recusa de vacinas, apesar da sua disponibilidade.
Professora da Faculdade de Saúde Pública da USP e autora de pesquisas sobre cobertura vacinal e programas de imunização, Ana Paula Sato explica que a hesitação vacinal é um fenômeno comportamental e de difícil determinação porque pode envolver aspectos culturais, sociais e econômicos, bem como variar ao longo do tempo e do local em que se observa. “O movimento antivacina, por sua vez, tem um perfil ativista, de convencimento, e se coloca totalmente contra a imunização, frequentemente apoiando-se em argumentos pseudocientíficos”, explica.
Foi a atuação desses grupos antivacina que motivou Alexandre Naime a se engajar em iniciativas de divulgação científica e colaborar com a mídia e com agências de checagem no esclarecimento de dúvidas e notícias falsas sobre as vacinas. Nos últimos anos da pandemia, o médico notou claramente que o movimento, ainda incipiente no Brasil em meados de 2015, ganhou força, aproveitando-se da visibilidade que o assunto ganhou na mídia.
“Em geral são pessoas articuladas e com um discurso que, ao olhar mais leigo, parece fazer sentido porque são sempre acompanhados de fotos e relatos pessoais”, diz o professor. Naime aponta que a venda de produtos, curas alternativas ou cursos conjugados ao discurso antivacina muitas vezes é motivada por interesses econômicos. “Este discurso costuma ter mais penetração em grupos de maior poder aquisitivo que adotam um lifestyle ‘natural’. A população mais pobre, que é quem de fato sofre com as doenças imunopreveníveis, costuma se vacinar.”
Renato Kfouri cita a discussão em torno da vacina contra Covid-19 para as crianças como outro momento de projeção de grupos antivacina. Embora seja difícil mensurar o impacto que este discurso teve nas quedas anuais de cobertura vacinal que ocorrem desde 2015, o médico pediatra cita um estudo realizado pela organização Avaaz em parceria com a Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) intitulado As Fake News estão nos deixando doentes?, que tenta traçar este paralelo.
“Nossas descobertas mostram que a pouca circulação de informação confiável sobre vacinas está sendo parcialmente preenchida por conteúdo antivacinação e desinformação postados e compartilhados nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens – e algumas vezes são criados por pessoas que vendem “curas” alternativas junto com o conteúdo antivacinação”, afirma o relatório em sua apresentação. Na mesma linha, o texto afirma que indivíduos que obtêm informações sobre imunizantes principalmente das redes sociais e aplicativos de mensagens parecem ter uma percepção da sua segurança afetada negativamente.
Em um boletim de 2 de fevereiro de 2022, o Ministério da Saúde descreve a situação epidemiológica do sarampo no Brasil em que aponta mais de 20 mil casos da doença em 2019 e uma queda abrupta no número de ocorrências a partir de março de 2020, justamente o início da pandemia de Covid-19. Neste caldo que mistura desinformação, mínimas históricas nas taxas de imunização infantil e quase dois anos de atividades escolares remotas, as crianças e adolescentes começam a retornar às aulas presenciais.
Para Renato Kfouri, este cenário representa risco concreto de recrudescência para várias doenças imunopreveníveis, como difteria, poliomielite, sarampo e outras. “Durante a pandemia, o distanciamento social, o uso das máscaras e a suspensão das aulas presenciais acabou protegendo as crianças e adultos não só da Covid-19, mas de todas essas doenças. A recuperação do calendário do atraso vacinal é muito importante”, afirma. “É uma bomba-relógio”, resume Naime.
Imagem acima: campanha de vacinação contra o sarampo em 2019. Foto: Marcelo Camargo/agência Brasil.