No dia Internacional dos Direitos Humanos, brasileiros enfrentam desmonte do campo

Clodoaldo Meneguello, coordenador do Observatório para Educação em Direitos Humanos da Unesp, critica paralisia das políticas públicas para a área no país. "Está havendo uma reorganização da luta pelos direitos humanos desde baixo para cima, a partir da universidade e dos movimentos sociais."

Foi no dia 10 de dezembro de 1948 que a Organização das Nações Unidas adotou oficialmente a chamada Declaração Universal dos Direitos Humanos, numa iniciativa para lançar as bases para uma convivência mais pacífica entre os povos após a catástrofe da Segunda Guerra Mundial. Por isso, a data marca o Dia Internacional dos Direitos Humanos.

Desde 2008, o professor da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp em Bauru, Clodoaldo Meneguello Cardoso, está à frente do Observatório de Educação em Direitos Humanos, que está sediado no câmpus da Unesp em Bauru. Em entrevista ao Jornal da Unesp, Cardoso avalia o panorama institucional dos direitos humanos no Brasil, apontando o abandono das políticas já instituídas e a reação ao desmonte, através da mobilização conjunta de movimentos sociais e de setores da universidade. E explica o conceito fundamental  da educação para direitos humanos: “a base dessa educação é a democracia; ela se opõe ao autoritarismo de qualquer natureza. Sua grande referência é a inclusão em seu sentido mais profundo”.

Hoje, celebra-se o Dia Internacional dos Direitos Humanos. Aqui no Brasil tivemos avanços que nos permitam realmente comemorar esta data?

Clodoaldo: Temos coisas a comemorar e temos coisa a lastimar. O que temos a comemorar é o avanço da consciência quanto à temática dos direitos humanos. Existe hoje na população, principalmente nos movimentos sociais organizados, mais consciência quanto aos seus direitos. Quando comparo com o quadro que havia 50 anos atrás, vejo um avanço significativo. E para isso não haverá retrocesso, o avanço vai continuar.

Do ponto de vista governamental temos uma situação muito triste. Não há o que comemorar. E não é uma questão apenas ideológica, mas de fatos. O que dizer de um governo que congela políticas públicas pelos próximos vinte anos num país com uma profunda desigualdade social, com uma população grande desempregada… Isso é um atentado contra os direitos humanos.

Os direitos humanos têm várias frentes. Vamos citar duas. Uma é a dos direitos civis e políticos. Ela abrange os direitos de liberdade de expressão, de locomoção, de organização e de respeito à diversidade. E há os direitos sociais, econômicos e  culturais, que tratam de outras questões. Por exemplo, como alguém pode ter liberdade de locomoção se estiver desempregado? Qual liberdade de ir e vir que essa pessoa tem? Ela sequer tem liberdade para escolher o alimento que irá comer. Os direitos individuais e os sociais são interdependentes

Nós temos um governo que a cada dia desconstrói os direitos conquistados há muito tempo, como as leis trabalhistas naquilo que chamamos de Estado de Bem-estar Social. Os jovens profissionais de hoje não têm certeza se irão conseguir ter uma aposentadoria. Quando eu era dessa idade, tinha certeza de que isso seria possível. E imagine o caso de alguém que trabalha como entregador de pizza: não tem direito a décimo terceiro salário, não pode ficar doente, não tem férias, não tem descanso semanal remunerado… Vivemos uma situação muito triste com a desconstrução na prática dos direitos fundamentais do artigo 5º da Constituição de 1988.

E não me refiro apenas ao governo central, mas também a quem aprova os projetos que são enviados ao Congresso. Nós temos uma classe política que, em sua grande maioria, está descompassada em relação ao que é dignidade humana e respeito às condições básicas de vida da população.

Desde 2019 deixou de haver uma secretaria no governo Federal especificamente destinada à área dos direitos humanos, e estas questões foram absorvidas pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Como esse arranjo institucional se refletiu no tratamento dado às questões de direitos humanos no país?

Clodoaldo: Houve um reflexo, para pior. Uma coisa é haver leis protegendo os direitos humanos, e outra é formar uma estrutura de defesa deles nos órgãos públicos, com o objetivo de deslanchar políticas públicas. A criação de uma Secretaria Especial de Direitos Humanos com status de ministério foi na época um avanço muito grande. Esse avanço foi desconstruído, a área foi acomodada dentro de outra secretaria e acabou perdendo força. Não existe um plano nacional, não existe mais uma política de promoção dos direitos humanos no Brasil.

A ideia de uma política de direitos humanos em nível de Estado teve início com a Conferência sobre Direitos Humanos da ONU em Viena em 1993. A Conferência proclamou um documento incentivando os Estados-membros a criarem planos nacionais de direitos humanos. Nós tivemos três. O primeiro foi estabelecido durante o governo Fernando Henrique Cardoso, ali pouco depois da saída da Ditadura. E tivemos dois planos durante os dois mandatos do governo Lula. O último plano, apresentado em 2009, era belíssimo. Era fundamentado na Constituição de 88 e contemplava todas as frentes dos direitos humanos: educação, saúde, igualdade racial e daí por diante.

Tudo isso era garantido por uma estrutura que vinha da Secretaria Especial de Direitos Humanos. Hoje se desmontou esse aparato. Aí acabou [a política para direitos humanos]…  O que temos hoje felizmente é a reação dos movimentos sociais. Mas o Plano Nacional de Direitos Humanos tocado até o governo Dilma foi desmontado. Houve um retrocesso muito grande em relação às instituições governamentais.

Uma das metas que esses planos previam era o estímulo às iniciativas de educação em direitos humanos. O senhor atua como coordenador do Observatório de Educação em Direitos Humanos (OEDH). Como tem se desenvolvido este campo?

Clodoaldo: Uma das recomendações da Conferência de Viena foi que se instituísse uma educação voltada para os direitos humanos. Essa proposta de educação no Brasil existiu como política pública. Em 1995, criou-se a Rede Brasileira de Educação de Direitos Humanos, formada a partir das universidades, dos movimentos sociais. Em 2003 foi apresentado o Plano Nacional de Educação e Direitos Humanos, e depois em 2006 houve outra versão. Estabeleceram-se os parâmetros para as políticas públicas, vieram planos estaduais. Mas tudo isso também foi desmontado.

O governo Temer propôs um plano, chamado de Pacto Universitário dos Direitos Humanos, porém sem levar em conta o processo histórico e não resultou em praticamente nada. No OEDH então procuramos trabalhar em outra frente, fazendo parcerias com as organizações sociais. Participamos ativamente, em 2020, da reorganização da Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos , reativada em dezembro passado. Como representante do Observatório de Educação em Direitos Humanos da Unesp participo da Comissão Nacional Coordenadora da organização. Já estamos com quase mil associados em um ano. Fizemos um primeiro encontro nacional da Rede online com mil e setecentas pessoas e nesta terça teve início o segundo encontro nacional da Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos.

Ou seja, está havendo uma reorganização da luta pelos direitos humanos desde baixo para cima, a partir da universidade e dos movimentos sociais.

E onde esta educação aconteceria? Em escolas, universidades

Clodoaldo: A ideia da educação em direitos humanos é proporcionar às novas gerações uma formação em cidadania no sentido profundo da palavra. Uma cidadania crítica, participativa, ativa e  coletiva. Essa cidadania vai passar para a criança a consciência dos seus direitos fundamentais e da necessidade de lutar por eles, e também a responsabilidade que vem com essa cidadania. A ideia é tentar quebrar essa visão individualista de que basta que cada pessoa cuide bem da sua vida pessoal, seja honesta, e limpe a frente da sua casa, para que a cidade mude. Não basta.

Não é bem assim. Existem estruturas que têm que ser mudadas. O cidadão é aquela pessoa que tem a cidade no coração. Quando um adolescente entra em algum movimento para discutir um problema que não é seu, mas que afeta o grupo, a escola, ou a classe, ele está se formando como cidadão. A educação de direitos humanos vai desenvolver essa dimensão de sujeito, humanizando-se e formando um profundo respeito ao diferente e ao coletivo.

A base dessa educação é a democracia; ela se opõe a qualquer tipo de autoritarismo. E a democracia é um regime que está em contínua transformação, não é algo pronto. Essa educação inclui fazer com que a criança, desde pequena, participe dos problemas que envolvem o coletivo. Aprenda a ouvir e falar democraticamente, a respeitar o outro, a cuidar da natureza da qual fazemos parte.

A educação de direitos humanos só trabalha com valores comuns ao bem-estar de todos. Os valores pessoais, de uma ou outra religião, por exemplo, não objetos da educação em direitos humanos. Ela é laica, e trabalha os pontos comuns da ética e da moral, e sempre  seguindo esses parâmetros da coletividade, da igualdade, da democracia. A questão é encontrar maneiras para que ela possa avançar nas escolas. Para que isso seja possível, a educação em direitos humanos deve ser parte essencial do Projeto Político-Pedagógico de cada escola. Essa é a meta. Os pais, ao matricular seu filho na escola, devem saber que ela tem os valores dos direitos humanos. E como estes valores estão respaldados na Constituição, não deve haver problema de rejeição. A educação em direitos humanos tem uma pretensão universal, no sentido de incluir todos. A inclusão é sua grande referência ética.

Por que foi criado o Observatório de Educação em Direitos Humanos?

Clodoaldo: O Observatório de Educação em Direitos Humanos foi criado a partir da proposta de educação em direitos humanos apresentada pela Associação das Universidades do Grupo de Montevideo (AUGM), da qual a Unesp faz parte. A AUGM, atendendo ao chamado da ONU, na Conferência de Viena, criou esse projeto chamado Observatório de Educação em Direitos Humanos, que foi assinado por 23 universidades. Em dezembro de 2007, a Reitoria deu início ao Observatório aqui no âmbito da Unesp. Temos uma sede física em Bauru e recebemos um apoio muito grande dos colegas professores em suas ações, mas a estrutura do OEDH é muito pequena. O Observatório possui um site mostrando tudo o que foi realizado nestes anos todos. Desenvolvemos muitos projetos, temos uma revista acadêmica que está no décimo sétimo número e o Observatório desenvolve um trabalho muito significativo com crianças e adolescentes em Bauru, na Rede Municipal de Ensino, em parceria com a Secretaria Municipal da Educação, onde coordena o Núcleo de Educação em Direitos Humanos .

O Observatório tem avançado no âmbito da Unesp, mas ainda não tanto quanto queríamos. Ele precisa ser transformado numa política institucional da universidade. Seu surgimento aconteceu muito a partir da vontade do Reitor da época. Depois, a cada novo Reitor empossado, nós íamos até lá e apresentávamos o projeto. O Reitor então encampava o projeto e assim avançamos. Mas o que queremos é que a educação em direitos humanos seja uma política da universidade e não apenas de uma reitoria.

Para isso, encaminhamos uma proposta à Reitoria de criação de uma “Coordenadoria de Educação em Direitos Humanos”. A Unesp também está criando uma “Coordenadoria de Diversidade e Equidade” na Universidade; essa coordenadoria está praticamente estabelecida e atuando em ações afirmativas. Isso já é um avanço.  A coordenadoria proposta pelo Observatório vai tratar especificamente da educação em direitos humanos, analisando como trabalhar questões de direitos humanos que sejam pertinentes às especificidades de cada área de ensino.  Por exemplo, na área de agronomia poderia debater o direito à alimentação para todos e assim por diante. Existe algo semelhante em outras universidades do Brasil, que alcançaram um respaldo institucional maior. Mas estamos avançando.