Conhecido como o Lobo Solitário da música brasileira, Edvaldo Santana acaba de lançar seu novo single. A canção, intitulada “O Meu Tio”, tem como mote a liberdade, uma palavra essencial para nossas vidas. Porém, o novo som é apenas uma prévia de um possível álbum a ser lançado em 2022, e que irá se somar à extensa carreira do músico e compositor de origens nordestinas nascido na periferia de São Paulo.
Edvaldo Santana já gravou e lançou três singles nessa fase de pandemia. “Toque de Avançar”e “Voo Iluminado” foram as duas faixas que antecederam “‘O Meu Tio”, produzida e gravada com músicos de Rio Preto. Ele conta a origem da música. “É a história de um parente que ficou preso no Carandiru por mais de 12 anos. Após cumprir pena, retomou sua vida de maneira bacana e contemplou sua liberdade. Fiz esta canção há dois anos, como homenagem a esse familiar que já faleceu”, relata Edvaldo.
Ele destaca que as novas gravações foram realizadas com músicos que recentemente se tornaram parceiros. “Ajustamos a sonoridade e gravamos boa parte online. Foi muito interessante, houve entrosamento em todo o processo de gravação, mixagem e tudo mais. Gostei do resultado.” Além da voz e do violão de Edvaldo, a gravação deste samba contou com as participações de Esdras Nunes no teclado, Maurício Zacharias no trombone, João Pazzini no baixo e Zé Augusto na bateria. A capa é uma criação de Paulo Stocker. A assistência de produção e mixagem ficaram a cargo de Fernando Hernandes, e a direção geral do projeto foi feita por Márcio Jacovani.
A canção realça as fusões do agreste, do urbano e da periferia, que se encontram nos contornos caipiras e em outros elementos da obra de Edvaldo. “Já tenho várias canções. Sem dúvida, “O Meu Tio” é uma das faixas que vão estar no álbum que eu penso lançar em março de 2022”, sinaliza.
Vale destacar que o single foi gravado no estúdio Bonamix em outubro, com recursos do prêmio Nelson Seixas, programa de incentivo a cultura da Secretaria de Cultura de São José do Rio Preto. Distribuído pela Tratore, estará disponível em todas as plataformas digitais a partir de 3 de dezembro.
Durante o período pandêmico, o músico ficou resguardado em sua casa no interior de São Paulo, e de certa forma continua assim. Porém, as atividades foram intensas.
“Apesar de tudo que vivenciamos, só tenho agradecer pelas ações artísticas e pessoais que ocorreram. Iniciei quieto, mas minha família me motivou a realizar lives e os resultados foram ótimos. Geramos vídeos com alto índice de visualizações no YouTube, fiz muitas participações e estou trabalhando até agora.”
De São Miguel Paulista até o Rio de Janeiro
Edvaldo nasceu em 17 de agosto de 1955, e foi criado em São Miguel Paulista, um bairro “nos fundões” da cidade, em suas próprias palavras. Foi o primeiro de oito filhos do piauiense Félix e da pernambucana Judite, nordestinos que vieram tentar a sorte na cidade grande. O contato com a arte se deu em casa, através do velho violão do seu pai, no final da década de sessenta. As influências variavam desde Manezinho Araújo e Jackson do Pandeiro até Torquato Neto, Hendrix e toda a contracultura que entrava em cena nesse período.
“Sou um representante de São Miguel Paulista, bairro de onde também surgiram outros artistas, como o cantor Antonio Marcos. A arte era muito presente em casa e no bairro. Havia Música e cordel, entre outros elementos. A quebrada era diferente naquela época. Existia malandragem, mas as pessoas se respeitavam. Ainda dava pra dialogar. Hoje está tudo diferente.”
Com o decorrer do tempo, Edvaldo começou a participar de vários festivais estudantis e criou seu primeiro grupo, o Caaxió. Nessa época, a necessidade de ajudar a família o conduziu ao seu primeiro emprego numa fábrica de brinquedos. Os finais de semana se destinavam aos ensaios com a banda, mas sempre manteve o objetivo de alcançar a profissionalização como músico.
Em 1974, no teatro de Arena, o Caaxió apresentou o show “Casca de vento”. Edvaldo Santana era o cantor e compositor, e os amigos Fernando Teles, Luciano Bongo e Zé Bores completavam o grupo. Numa época onde a censura era comum, o show teve dez músicas cortadas do seu repertório. Em meio a essa guerra pela sobrevivência, conseguiram um contrato com a gravadora Top-Tap. A gravadora impôs a condição de mudarem o nome do grupo, que passou a chamar-se Matéria Prima.
“Um ano antes da gravação do primeiro disco do Matéria Prima conheci Tom Zé, que nos convidou para acompanhá-lo em alguns shows. Ele morava no bairro de Perdizes. Nós atravessávamos a cidade para ensaiar na casa dele, era longe. Nós já chegávamos cansados, famintos e Tom Zé já era macrobiótico. Pensa numa banda (de jovens periféricos) morrendo de fome! Ele pedia à empregada para fazer uns pratos bem servidos para os meninos (risos), uns bifes e tudo mais”, lembra.
Edvaldo aponta esta fase de convivência com Tom Zé como muito importante para sua formação. “O Tom Zé é um artista diferenciado. A desconstrução das suas canções é algo totalmente inusitado em nossa música. Foi um aprendizado muito relevante na minha carreira, fizemos ótimos trabalhos. Foi um privilégio poder tocar ao seu lado.”
O primeiro disco do Matéria Prima saiu pela Chantecler, e a música “Maria Gasolina” foi muito executada nas rádios. A banda conseguiu espaço na mídia graças ao sucesso e apresentou-se em programas de grande audiência na época como Silvio Santos, Flávio Cavalcante e Fantástico. Em 1978 saiu o segundo disco pela gravadora CBS, e a música de trabalho foi “Entranhas do Horizonte”.
Outro marco importante na carreira do Lobo foi o ressurgimento dos movimentos populares e sindicais em todo país, no final dos anos setenta, com destaque para as greves do ABC que sinalizaram a abertura política e o fim da Ditadura militar. Atentos ao cenário, Edvaldo, seu grupo e outros amigos músicos, poetas e artistas plásticos de São Miguel Paulista, resolvem se mobilizar e criam o Movimento Popular de Arte (MPA) que promovia eventos com música, teatro, poesia e oficinas de cultura.
“Foi um trabalho espontâneo e pioneiro, que serviu como orientação para muitos outros projetos de casas de cultura em São Paulo. Severino do Ramo, Pedro Peres, Osnofa, Sacha Arcanjo, Akira Yamasaki são alguns dos nomes de grande importância no movimento”, destaca. Após mais de cinco anos de existência, o movimento começou a apresentar um certo desgaste, e conflitos causados por interferências político-partidárias marcaram o fim do MPA.
Em 1986, Edvaldo Santana parte para a carreira solo. Mudou-se para o Rio de Janeiro e se instalou em Santa Tereza, onde vivia entre o futebol com a rapaziada e o foco em suas composições e apresentações.
“Foi uma fase de amadurecimento na minha trajetória. Havia uma boa efervescência cultural. O posto 9, na praia de Ipanema, tinha virado ponto de encontro de personagens como Luís Melodia, Cazuza e Ferreira Gullar, por exemplo”, lembra.
De volta a São Paulo, a descoberta de novas parcerias
Em 1989, ao retornar a São Paulo, conheceu o poeta curitibano Paulo Leminski por meio do amigo e parceiro, também poeta, Ademir Assunção. Estas duas parcerias — além daquelas protagonizadas por com Tom Zé, Haroldo de Campos e Arnaldo Antunes — são marcas relevantes de sua carreira.
Mas foi com “Lobo Solitário”, seu primeiro disco solo, pela Gravadora Camerati, em 1993, que o músico ampliou seus voos dentro do cancioneiro brasileiro. Sucesso de crítica, o título do álbum gerou sua alcunha artística.
O segundo disco, “Ta ́assustado?” veio em 1995, agora pela gravadora Velas, com a participação de Duofel e de Arnaldo Antunes. Gravou no centro da cidade de São Paulo o clipe de uma das faixas, “Caximbo”, que foi trabalhado na programação da MTV Brasil. Os shows do “Tá assustado?” percorreram o Brasil junto com algumas apresentações em festivais de blues, um público já conquistado pelo artista. A faixa “Caximbo” foi regravada por Arnaldo Antunes, e até hoje faz parte do repertório do ex-Titã.
Com uma bagagem de oito discos solos até hoje, a seqüência do seu trabalho sempre foi muito focada e elaborada. Edvaldo sempre esteve bem acompanhado de músicos e parceiros nas composições, gravações e shows. Zélia Duncan, Tetê Espíndola, Chico César, Lenine, Rita Ribeiro, Nuno Mindelis, Quinteto Preto e Branco, Thaíde e Rappin’ Hood, entre tantos outros nomes relevantes da cultura brasileira, participaram desta estrada.
Ao misturar, blues, samba e cultura nordestina, Edvaldo Santana se destaca pela peculiaridade artística e pessoal. Sua música popular inventiva, sofisticada e singular, e o amor pela periferia que traz na alma e na voz, asseguram a sua obra requintada a admiração dos amantes da cultura brasileira.
Ouça a íntegra da conversa com o Lobo Solitário no Podcast Unesp
Foto acima: divulgação