Quando o vírus SarsCov-2 tomou o mundo de assalto, no começo do ano passado, Roberto Kraenkel formou na linha de frente dos primeiros pesquisadores que mergulharam nos poucos dados então disponíveis com o intuito de acompanhar a evolução da doença no Brasil. Professor do Instituto de Física Teórica da Unesp, Kraenkel abordou a epidemia (posteriormente promovida a pandemia) a partir dos seus conhecimentos de modelagem matemática, aperfeiçoados ao longo de anos conduzindo estudos nas áreas de ecologia e epidemiologia. De conversas com colegas da área que partilhavam as mesmas inquietações diante da doença, aos poucos estruturou-se uma rede de pesquisas: o Observatório Covid-19 Br. De março de 2020 para cá, o Observatório cresceu até englobar 85 pesquisadores de 27 instituições, e Kraenkel passou a aparecer frequentemente na mídia, inclusive de fora do Brasil, comentando as diversas fases da pandemia. E a covid-19 se tornou foco de seu trabalho acadêmico, e objeto de diversos artigos divulgados e publicados desde então. Esta semana, a revista Communications Medicine, do grupo Nature, trouxe mais um deles: um estudo de caso da cidade de Manaus analisando o período entre novembro de 2020 e janeiro de 2021, quando a cidade bateu recordes de infecções e mortes.
Nesta entrevista, organizada por tópicos, Kraenkel explica as contribuições que os modelos matemáticos trouxeram para o entendimento da pandemia no Brasil, relata as dificuldades para que as observações dos cientistas resultem em políticas públicas de saúde, lamenta a falta de um sistema efetivo de vigilância genômica no país e ressalta que a vacinação não é garantia de que a pandemia esteja no fim. “Há países que depois da vacinação viveram uma situação que parecia muito boa e voltaram a ter casos”, diz.
O estudo sobre a crise em Manaus
“Esse artigo publicado na Communications Medicine surgiu em março, em forma de pré-print. A pesquisa procurou entender quais eram as características da variante gama que levaram à situação que houve em Manaus entre novembro e janeiro, com alto número de casos e mortes. Anteriormente já havia ocorrido uma grande incidência de covid-19 em Manaus. Será que estávamos observando uma ressurgência? Vimos que, com a entrada de uma nova variante, isso pode acontecer. Através de estudos de modelagem, chegamos à conclusão de que a transmissibilidade dessa variante era 2,5 vezes maior do que a da variante que existia antes. Isso fez com que a epidemia apressasse o passo, de certa forma, pois o potencial de infecção entre pessoas é muito maior.
O segundo fato que o estudo determinou foi uma estimativa de que ao redor de 28% dos casos de covid entre início de novembro e o fim de janeiro foram reinfecções, atingindo pessoas que já haviam sido infectadas antes. Lembrando que, naquela época, não havia vacinas. Então o artigo chamou atenção por isso: a gente conseguiu aquilatar a força relativa entre a reinfecção e a maior transmissibilidade da variante gama. E esses são temas importantes. A gama é uma das variantes que causa preocupação mundial.”
As deficiências no sistema de vigilância genômica no Brasil
“Depois do aparecimento da variante gama e da tragédia em Manaus, era de se esperar que fosse se espalhar para outros lugares, por ser muito mais transmissível. E o que foi feito quanto a isso?
Não há uma vigilância genômica eficiente no Brasil. Ela é lenta. Ano passado, depois que a variante gama havia sido detectada em alguns estados, quando os primeiros resultados de estudos genômicos foram divulgados constatou-se que a nova variante já respondia por mais da metade dos casos. É uma vigilância genômica que não antecipa as coisas, só vê o que já ocorreu.
Não houve articulação, nem no nível nacional, nem nos níveis estaduais, para instituir uma vigilância genômica que pudesse responder duas questões básicas. A primeira é monitorar se uma certa variante de preocupação poderia estar se aproximando antes que ela chegasse. A outra é determinar quais são as variantes atualmente em circulação num dado local. Mas isso exigiria uma coordenação com a secretarias de vigilância epidemiológica, sanitária. E basicamente não temos isso.
Em cada estado, os momentos mais difíceis da epidemia ocorreram em períodos diferentes. Aqui em São Paulo, acho que foi em abril ou maio. Era uma situação em que se poderia pensar para antecipar quais medidas a serem adotadas, mas isso não foi feito. E depois não tem jeito; é preciso correr para tentar salvar o máximo de vidas. E, muitas vezes, não há uma política de contenção da epidemia.
Em muitos estados brasileiros, inclusive em São Paulo, uma das principais políticas é a de disponibilizar leitos. É claro que ter leitos é importante. A pessoa que precisa de um leito e não encontra um tem mais chances de morrer. Mas ter acesso a leitos não mitiga a transmissão do vírus. O que funciona é a redução do contato e o uso de máscaras, medidas não farmacológicas. O índice de internação hospitalar é importante. Mas o fato de que este índice possa estar bem não quer dizer que está tudo bem. Simplesmente quer dizer que você pôs à disposição um monte de leitos. Mas não se interrompeu a cadeia de contágio, que é o que segura a pandemia.”
As relações entre a comunidade de pesquisa e as autoridades públicas
“Não se espera que um prefeito leia artigos científicos ou saiba avaliar o conteúdo deles, até porque há vários artigos onde se fala besteira. Existe toda uma mediação entre o saber científico e as camadas do estado brasileiro através das suas secretarias municipais e estaduais de saúde, e das fundações de pesquisa que dão suporte a tomada de decisão por governantes. Elas estão em contato com as pessoas da academia, de uma forma geral.
Mas não é que se publique um artigo e no dia seguinte as autoridades digam: “veja só o que eles descobriram”. Existe todo um debate público que, além da academia, envolve médicos, epidemiologistas e outras pessoas que atuam em órgãos de saúde pública. Mas as tomadas de decisão são sempre políticas. Isso não é uma crítica. Um prefeito, ao tomar uma decisão, leva em conta as pesquisas científicas, mas também variáveis de ordem política, econômica, social.
Precisamos encontrar uma forma institucional de se fazer essa mediação no Brasil. Há uma instituição que me parece que poderia fazer isso: a Fiocruz. Mas, dado que ela é federal, e o governo Federal é negacionista, acaba sendo complicado. É importante que haja órgãos que façam tanto pesquisa quanto forneçam orientações e sejam de confiança do Estado, para que não haja esse desfile de coisas ridículas que nós vimos. Como chamar determinada médica porque ela gosta da cloroquina. Ou chamar um virologista que é famoso, mas está completamente maluco… E essas pessoas são usadas politicamente. Esses são exemplos de como a ausência de mediação institucional leva a besteiras.”
Desafios de modelar a covid-19
“Essa situação [da pandemia em andamento] não é tão comum. Muitas vezes, se busca modelar uma epidemia ou um surto que aconteceram no passado. Por exemplo, no caso da dengue, ou da malária ou do sarampo, muitas vezes o interesse está em entender o que gerou aquele evento anterior. Foi algo ligado ao clima, ou foram fatores socioambientais?
Trabalhar com algo que está em andamento é bem diferente. Não há dados consolidados do que está acontecendo hoje, nem do que aconteceu ontem ou anteontem. Não se sabe exatamente o que está acontecendo agora. As bases de dados que se tornam de domínio público, e são atualizadas toda semana, contêm atrasos causados por notificação, por digitação e outras razões. E conhecer os dados é importante para que se possa desenvolver modelos capazes de se ajustar aos dados passados, para que, eventualmente, esse modelos permitam que se formulem cenários futuros.
Um dos grandes desafios então é desenvolver um tratamento de estatística de dados que permita inferir qual é a situação epidêmica atual. O Observatório conseguiu desenvolver um sistema assim, um sistema de nowcasting. Esse termo já existe, é uma brincadeira com a expressão em inglês forecasting, que significa prever o futuro. Mas a gente precisa prever o presente.”
Uso adequado e inadequado dos modelos
“É necessário ter consciência de quais são as limitações no uso dos modelos, e para que servem. Por exemplo, no caso do nosso trabalho a respeito da variante gama em Manaus, o modelo não foi feito para prever nada. A gente sabia qual era a situação. Usamos os dados disponíveis, inclusive dados de grupos que faziam sequenciamento, para chegar ao resultado sobre o número de reinfecções e a maior transmissibilidade da variante. Não fizemos previsões.
A ideia de fazer previsões é falha quando se aborda um sistema complexo. E certamente uma epidemia [se desenvolvendo] em uma sociedade é um sistema com muitos elementos não controlados, que não seguem leis naturais, mas sim princípios desconhecidos: por exemplo, o grau de proteção que as pessoas irão buscar individualmente. Ou como sociedade, através do seu governo que adota, por exemplo, intervenções não farmacológicas. Boa parte da curva epidêmica em 2020 se deveu ao abrir e fechar do comércio e das escolas, e das intervenções não farmacológicas que foram adotados por diferentes governos, em diferentes níveis. A ideia de que isso pudesse ter sido previsto não cabe.
O que cabe é projetar cenários, que possam apoiar decisões de curto ou médio prazo. Isso permite comparar, por exemplo, o quanto a adoção de uma dada política pública —como intervenções não farmacológicas, ou vacinação etc. — pode trazer um resultado melhor do que optar por outra política. Outro exemplo é tentar descobrir qual a forma otimizada para fazer uma campanha de vacinação de duas doses onde o suprimento de vacinas é limitado. Tudo isso pode ser visto com modelos matemáticos. Mas a ideia de que o modelo vai fazer uma previsão da mesma forma como se faz a previsão do tempo ou a previsão da órbita dos planetas, não cabe.
Houve grupos sérios que, no começo da pandemia, divulgaram previsões. Mas é mais uma questão de comunicação e de política; envolve determinar se eles deveriam ou não ter divulgado seus números da forma como fizeram. Porque eram previsões do tipo “se não fizermos nada, o resultado será esse”. E eram previsões catastróficas. Mas é claro que não existe “não fazer nada”: toda sociedade reage. Era uma previsão obviamente pensada para ser não ser verdadeira, mas que mostrava o quanto as coisas poderiam ficar ruins. Deste ponto de vista, ela faz sentido. Mas as pessoas a encararam de forma literal.”
Problemas em pesquisas de modelagem divulgadas durante a pandemia
“Aqui no Brasil houve uma cacofonia. Apareceram grupos neófitos de modelagem, estatística e análise de dados chegando a conclusões que estavam incorretas. Mas, devido à avidez por notícias, muitas dessas pessoas acabaram alcançando alguma proeminência na mídia, e esses trabalhos chegaram às manchetes de jornal algumas vezes. E esses trabalhos estavam errados. Isso continua acontecendo, temos esse problema inclusive na nossa universidade. E houve gente que sequer é da academia fazendo previsões que, obviamente, eram do seu próprio interesse. É difícil para os jornalistas conseguirem saber quem está falando coisa com coisa e quem não está. E mesmo órgãos como secretarias muitas vezes têm dificuldade em discernir, sobretudo quanto aos resultados obtidos por modelagem, o que foi feito de maneira séria e o que não.”
O atual momento da pandemia
“O número de casos no mundo voltou a crescer. Há situações dramáticas como na Rússia e na Ucrânia. E há situações preocupantes, por exemplo, na Alemanha, e a França começa a gerar preocupação. Alemanha e França são populações vacinadas. No caso do Leste europeu há pouca cobertura vacinal, o que significa uma população totalmente apta a ser infectada.
No Brasil, o maior motivo para otimismo é a vacinação. Porém, a população não está totalmente vacinada. Além disso, as vacinas não são totalmente eficientes, e podem surgir outras variantes. E isso não quer dizer que as vacinas não sejam boas! Então esse é um momento de otimismo cauteloso, pois temos ainda um número alto de casos e de mortes por semana.
Por exemplo, se você fizer uma comparação de mortes semanais causadas por síndrome respiratória aguda grave no Brasil, que pode ser gerada pela covid mas também por outras doenças, verá que ainda estamos com um número de casos cinco vezes maior do que o que existia antes da pandemia.
Até nos lugares onde o número de casos baixou muito, não se chegou a zero. Existe um nível de endemicidade que persiste, e não sabemos qual deve ser o patamar desejável. Faltam elementos para estudar isso.
Outra questão importante para o futuro é saber se há perda de imunidade, seja entre as pessoas vacinadas, sejam entre as pessoas que tiveram a doença. Saber se elas mantém um nível de imunidade, um nível de proteção suficiente pra pelo menos não ter nenhuma doença grave. Isso é uma coisa que ainda vem sendo estudada aos poucos, porque não houve tempo.
Nesse momento, estamos efetivamente em uma situação melhor. Mas a gente deve olhar também para o resto do mundo. Há países que estavam numa situação que parecia muito boa e voltaram a ter casos. Veja-se o Chile, que tem uma grande cobertura vacinal, maior do que a brasileira, está com o número de casos crescendo. Não se sabe muito bem o porquê. Mas a composição do tipo de vacinas oferecidas lá, e a pirâmide etária, são diferentes das do Brasil. Não se pode necessariamente fazer transposições. Por isso falo em otimismo cauteloso: existem exemplos onde a coisa não andou tão bem assim, onde há ressurgência.”
A divulgação científica durante a pandemia de covid-19
“Não há um panorama homogêneo na divulgação científica. Existem ilhas de excelências, mas também pessoas bem- intencionadas, porém sem noção, e pessoas desonestas.
Há um movimento de divulgação cientifica muito bom, grupos bem informados fazendo divulgação de excelente nível. O Átila [Lamarino] é muito bom, a Luíza Caires, a Mariana Varela… Eles não procuram produzir resultados, são exclusivamente divulgadores.
Mas há pessoas que obtém resultados de pesquisa errados, e os divulgam. Há um famoso cálculo do número de reprodução efetiva, feito por um grupo, que já recebeu bastante atenção, inclusive da grande mídia em alguns momentos. É usado até por universidades, e é um cálculo errado. Isso não é um problema de divulgação cientifica! Existem pessoas atuando com a melhor das intenções, mas que acabam cometendo erros. E por estarem fora da comunidade cientifica que debate estes temas, não tem um filtro claro para perceber seus erros.
Houve problemas com pessoas cuja seriedade pode ser posta em duvida, como economistas que participam de programas de TV, mas isso está na cara que não é sério. E existe um setor com pessoas que não se declaram como divulgadores científicos, mas que são de extrema direita e propagam teorias erradas sobre coisas que não existem. Os médicos defensores da cloroquina, por exemplo, têm suas ações de divulgação e o seu público. E aí temos um problema.”
Foto acima: acervo pessoal