Nossa voz sobre o clima

Moradores das periferias estão na Escócia para participar das discussões sobre as mudanças no clima na 26ª conferência mundial, e cobram um olhar para os impactos que a mudança climática causa nos bairros pobres de cidades como São Paulo. Reportagem da Agência Mural de Jornalismo das Periferias

Lideranças de todas as partes do mundo se reúnem nesta semana em Glasgow, na Escócia, para discutir propostas de como conter o aquecimento global e retardar as mudanças climáticas, na COP26 (26ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas), principal cúpula da ONU (Organização das Nações Unidas) para o clima. 

Os debates começaram neste domingo (31) e vão até 12 de novembro. Mas como essas discussões afetam as periferias? 

Este ano, o evento contará com ativistas das quebradas de São Paulo e de outras partes do Brasil que garantem que trarão para o debate questões como racismo ambiental, descolonização do sistema e justiça climática do ponto de vista de quem convive com esses problemas.

Agência Mural conversou com alguns deles sobre como as discussões globais afetam as periferias e a importância da participação nesse debate.

Contar a nossa história

Entre os jovens periféricos que estarão na conferência global está a ativista climática Amanda da Cruz Costa, 24. Ela conta que até os 21 anos, não entendia muito bem o que era a crise climática e a importância de defender o meio ambiente. 

“Era muito distante da minha realidade, saca? Eu pensava que os ambientalistas eram os ‘abraçadores de árvores’”, conta. Um debate distante da sua realidade, mas com impactos sentidos de perto.

“Sabe quando você está voltando do trabalho e o ônibus fica parado um tempão porque as ruas alagaram e não dá pra passar?”, questiona e dá outro exemplo, como o corte de água em fases de seca. “Quando a gente vai analisar questões territoriais, não era a água do Morumbi, ou da Faria Lima, avenida Paulista, que eram cortadas, é primeiro na quebrada”, afirma.

Amanda vive na zona norte de São Paulo e aponta a necessidade de trazer os impactos das periferias para a discussão sobre o clima | Arquivo Pessoal

Moradora do Jardim Almanara, na região da Brasilândia, zona norte de São Paulo, ela passou a acompanhar mais o tema quando ganhou uma bolsa para representar a juventude brasileira na COP23, em 2017, na Alemanha, e encontrou um espaço onde não se viu representada.

“O que eu via eram homens brancos, héteros, cisgêneros e ricos dominando a narrativa e se apropriando da minha vivência”, diz.

“Eles falavam bastante sobre como a crise climática vem impactar os territórios vulnerabilizados, os povos periféricos, e aquilo me gerou esse desconforto”, relembra. “Perguntei para mim mesma: por que será que eu não estou com o microfone? Por que eles não me dão essa palavra?”

“Percebi que se a gente não se apropriar dessa narrativa, outras pessoas vão contar a história e vão nos colocar um padrão ‘neocolonizador’.”

Descolonizar

O termo “neocolonizador”, que Amanda comenta, diz respeito ao processo de dominação política e econômica das grandes potências sobre países emergentes, como o Brasil. 

“Descolonizar”. Quem também chega com esse lema do sul global e das periferias para a COP26 é o ativista Marcelo Rocha, 24,  representante do Fridays for Future no Brasil. 

“Essa é uma COP para a gente levar nossas vozes, trazer posicionamentos justos”, diz o morador do Jardim Pirituba, também na zona norte da capital.

Marcelo Rocha enfatiza importância de trazer as periferias para o debate do clima | Arquivo Pessoal

Nas periferias de São Paulo, enchentes são recorrentes, e a previsão é de que as mudanças climáticas agravem esses eventos extremos, cujos impactos serão mais sentidos nos espaços vulnerabilizados, de acordo com Marcos Buckeridge, diretor do Instituto de Biociências da USP (Universidade de São Paulo) e coordenador do programa USP-Cidades Globais.

“O que acontece nas periferias é que esses são os lugares mais afetados por esses eventos, tanto os eventos extremos, quantos eventos crônicos”, diz, mencionando a questão das enchentes e a topografia. 

Ele dá como exemplo o fato de que muitas pessoas sem acesso à moradia adequada acabam construindo casas em regiões inclinadas, mais suscetíveis a deslizamentos, resultado de fortes chuvas e erosão do solo.

“Eles ocorrem porque as periferias são onde o poder público menos atua do ponto de vista de fazer um planejamento estratégico para evitar que esses problemas ocorram.”

Segundo o relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima), no qual Buckeridge colabora como um dos autores, estima-se que as atividades humanas tenham aquecido a terra 1,0°C acima dos patamares pré-industriais e, mantendo o crescimento no nível atual, a expectativa é de que chegue ao 1,5°C entre 2030 e 2052.

O que é aquecimento global?

O especialista explica que aquecimento global não quer dizer só o aumento da temperatura, mas também tem relação com eventos extremos, como ondas de calor e frio acima do normal, tempos de estiagem e outros de chuva em excesso, que trazem danos ao meio ambiente e, consequentemente, à qualidade de vida das pessoas.

“Uma onda de calor pode chegar a 50°C, a essa temperatura, muitas pessoas podem morrer, principalmente pessoas mais velhas e muito mais jovens. Você tem um efeito sobre a saúde e sobre essa questão dos desastres.”

Para Marcelo, do Fridays for Future, o problema é ainda maior quando se olha para a questão social envolvida em todo o debate acerca das mudanças climáticas.

“Quando a gente leva nossas vozes, a gente ainda está falando do direito a viver, do direito a conseguir respirar”, conta, ressaltando questões como a poluição, falta de água e construção de lixões e usinas de incineração nas periferias. “Ainda estamos lutando por dignidade humana, que é o saneamento básico, que é conseguir sobreviver.”

Favela Piracuama em 2018, no distrito do Campo Limpo, na zona sul de São Paulo | Léu Britto/Agência Mural

No ano passado, a Agência Mural falou sobre como o marco do saneamento afeta as periferias e o esgoto a céu aberto, cujo direito é garantido pela Constituição, mas não chega a todos, de acordo com a pesquisa do Instituto Trata Brasil em parceria com a FGV (Fundação Getulio Vargas).

O estudo  mostrou que as periferias das grandes capitais têm menos rede de esgoto para suas populações em comparação com áreas centrais.

Recentemente, o Conselho de Direitos Humanos da ONU reconheceu o acesso a um meio ambiente limpo, saudável e sustentável como um direito humano. A nova resolução foi considerada um “marco para a justiça ambiental” e contou com o apoio do PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente).

“O mundo já entendeu que a gente está vivendo uma emergência climática, mas ainda não entendeu que dentro dessa tempestade estamos em barcos diferentes. Nós, enquanto populações periféricas, estamos no meio do oceano em uma jangada, e tem gente vivendo a mesma crise dentro de um cruzeiro”, diz Marcelo.

Amanda, que além de ativista também é jovem embaixadora da ONU, concorda que os impactos do aquecimento global não afetarão a todos de forma igualitária e que as periferias já enfrentam muitos problemas decorrentes das mudanças climáticas. 

“Quando a gente pensa ‘Quem está na ponta? Quem vai sofrer os principais impactos?’, não é a pessoa rica da Faria Lima que vai ter a sua casa alagada por conta de enchente”, diz Amanda. “Vai ser a galera da periferia.”

Cenário do Brasil

Formada em Relações Internacionais, Patricia Zanella, 25, membro do Conselho Consultivo de Jovens do Dia Mundial dos Oceanos e fundadora da EcoCiclo, acrescenta que ações individuais por si só não bastam. 

“A gente precisa de um governo que seja comprometido com a causa ambiental”, diz Patricia, que mora na Vila Rosa, bairro da zona norte de São Paulo.

Patricia Zanella aponta dificuldades sobre o tema nos últimos anos no Brasil | Divulgação

O presidente da República, Jair Bolsonaro (Sem Partido), não está participando da COP26, em Glasgow, mas deixou uma mensagem afirmando que o Brasil é “parte da solução para superar esse desafio global”.

Para Patricia, não há mais no país “espaço para continuar perdendo mata, continuar aceitando indústrias que não possuem responsabilidade ambiental atuando e muito menos para uma educação que não aborda educação ambiental”.

O governo de Bolsonaro, assim como a gestão da pasta do Meio Ambiente sob seu mandato, tem sido marcado por escândalos relacionados à temática ambiental. 

Em abril do ano passado, o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles declarou durante uma reunião ministerial que o período de pandemia deveria ser utilizado para ir “passando a boiada” em relação a mudanças nas regras ligadas à proteção ambiental e agricultura, uma vez que a imprensa cobria a crise sanitária. Salles deixou o cargo em junho deste ano.

De acordo com dados de satélite do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), no ano passado, a extensão de área desmatada na Amazônia Legal bateu um recorde visto pela última vez somente em 2008, com 10.851 km² desmatados em 2020, ante 12.911 km² treze anos atrás.

No entanto, em discurso na Cúpula do Clima de abril deste ano, Bolsonaro se comprometeu a combater o desmatamento ilegal até 2030 e a zerar as emissões de carbono até 2050.

Novas gerações

Jahzara Oná atua desde a infância sobre a questão ambiental

Aos 17 anos, Jahzara Oná, moradora da União de Vila Nova, na zona leste de São Paulo, conta que desde os 8 anos está engajada na luta contra as mudanças climáticas. A motivação? Sua própria realidade.

“Quando vi que o que estava passando era porque eu era mais vulnerável, que era (por conta do) racismo ambiental, da crise climática, eu resolvi lutar por isso, pelos jovens que aqui estão comigo.”

Mencionado por Amanda, fundadora do Perifa Sustentável, como um dos pilares de reivindicação do ativismo periférico pelo clima, o “racismo ambiental”, comentado por Jahzara, é um termo utilizado para descrever a injustiça ambiental dentro de um contexto racializado. 

“A crise climática vai impactar todo mundo, mas dentro desse escopo tem um grupo que vai ser mais impactado, que é o grupo (dos mais) vulnerabilizados. Ou seja, pessoas pretas, indígenas, quilombolas, ribeirinho”, afirma Amanda. “Não tem justiça ambiental sem justiça racial”. 

Jahzara também aborda a “equidade intergeracional”, que é a luta pela garantia de que as futuras gerações tenham os mesmos direitos das gerações passadas em questões de acesso ao meio ambiente e à diversidade ambiental. 

Em outubro, a jovem ativista participou da pré-COP26 em São Paulo, evento promovido pela prefeitura da capital para debater temas e políticas ambientais que estarão presentes durante a conferência em Glasgow.

Gabriel, primeiro na direita, em evento prévio da COP realizado em São Paulo | Arquivo Pessoal

Ela esteve junto a outros jovens, como o ativista socioambiental, Gabriel Mendes, 19, morador de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo, que também iniciou no ativismo com base em sua realidade na periferia. 

Questionado sobre as expectativas para a COP26, ele diz: “Só espero que essas ações sejam abrangentes o suficiente, que cheguem à minha realidade”, sinalizando interesse em participar da próxima conferência, a COP27, em 2022, no Egito.

“A juventude global não vai aceitar acordos fracos, pouco ambiciosos. O desafio é grande, é complexo, é um super rolê, (risos) mas estou comprometida com a causa e eu estou conectada com pessoas que também são comprometidas com essa temática”, afirma Amanda, enquanto Marcelo diz acreditar que “pela primeira vez a gente está indo com muitos grupos de periferia” e está trazendo como lema a descolonização do sistema.

“A gente precisa de justiça climática alinhada aos processos de transição da sociedade.”

Para os mais novos que pretendem lutar para deixar um futuro às próximas gerações, o olhar é de admiração e esperança. “As lideranças periféricas que vão estar lá são maravilhosas, assim, o Marcelo, a Amanda, estão presentes”, diz Jahzara. ”Esse debate eurocêntrico sempre acontece muito e eles estão lá para intervir nisso, para debater o lado que realmente precisa ser visto, é maravilhoso.”

Reportagem publicada originalmente pela Agência Mural de Jornalismo das Periferias e reproduzida por meio de parceria de conteúdo com o Jornal da Unesp.