Do sushi ao #MeToo: a luta para diminuir desigualdades entre homens e mulheres busca renovar sociedade japonesa

Iniciativas incluem primeira escola feminina para chefs especializadas no alimento tradicional, surgimento de nova literatura e até políticas públicas para aumentar o número de executivas em empresas. Mas valores tradicionais machistas são forte obstáculo a mudanças

O ancestral mito de criação do Japão que narra o surgimento da vida na Terra envolve uma história de amor. Izanami era uma deusa que certo dia encontrou-se com seu irmão, o deus Izanagi. Izanami tomou a iniciativa de uma aproximação romântica entre os dois, que resultou na geração de uma criança. O bebê, porém, nasceu imperfeito; a moral do mito é que uma mulher não deve fazer o primeiro movimento, mas obedecer ao homem. Historiadores situam a primeira versão desta lenda no longínquo ano de 712, mas os valores que ela transmite continuam vivos no imaginário do Japão de hoje. Daí os muitos atritos e controvérsias que estão surgindo, na mais diversas esferas da vida social, em resposta aos esforços de ativistas e autoridades para, aos poucos, introduzir novos padrões de vida e de comportamento que sejam menos opressores para as mulheres.

Um destes episódios ganhou projeção global graças a um documentário da Netflix intitulado Jiro Dreams of Sushi. Lançado em 2011 e disponibilizado inclusive no Brasil, tinha como tema o chef nonagenário Jiro Ono, que à época estava à frente do célebre restaurante Sukiyabashi Jiro, em Tóquio. Embora foque a trajetória da família Ono como um todo, em nenhum momento a produção destaca as figuras femininas. A verdade é que, no Sukiyabashi Jiro, elas passam longe das facas de sushi. Yoshikazu Ono, o filho e herdeiro de Jiro Ono, por ocasião do lançamento do filme, declarou em entrevista ao diário The Wall Street Journal que os homens fazem sushis melhores porque a temperatura de suas mãos é mais baixa e mais estável. Já no caso das mulheres, a temperatura das mãos oscilaria conforme o ciclo menstrual, o que provocaria alterações no sabor das delicadas peças de peixe cru que se unem ao arroz para compor um dos maiores símbolos culinários do Japão.

“Mulheres menstruam. Ser profissional significa oferecer um sabor estável no alimento servido. Mas, devido ao ciclo menstrual, mulheres têm um desequilíbrio no gosto e é por isso que mulheres não podem ser chefs de sushi”, declarou Ono na entrevista ao jornal norte-americano.

Este argumento não tem qualquer base científica. Basta lembrar que as mulheres japonesas historicamente são as maiores responsáveis pela cozinha dentro de casa — inclusive o preparo de sushis e sashimis para toda a família. E não há registro de reclamações por conta de variação de gosto de acordo com o período do mês. Segundo estudo da economista japonesa Noriko Tsuya, da Keio University, em Tóquio, mulheres que trabalham mais de 49 horas semanais fora dedicam mais de 25 horas semanais aos afazeres domésticos; homens contribuem com menos de 5 horas.

Na verdade, o falso argumento que Ono sacou é um reflexo do histórico de papéis atribuídos a gênero no país asiático, onde caberia ao homem a condição de “mestre” de uma arte tradicional (portanto alavancado à posição de “chef” no contexto da alta gastronomia) e, ao mesmo tempo, o papel de líder responsável por sustentar uma família. A mulher destina-se a ser “do lar” (logo circunscrita a afazeres domésticos como limpar, lavar e, voilà, cozinhar). Esta dinâmica permite que o homem possa ser um chef celebrado fora de casa enquanto a mulher, esquenta a barriga no fogão como se não fizesse mais do que sua obrigação. Em outras palavras, eles se consolidaram como os protagonistas da História, parte de tradições que são transmitidas de pai para filho; elas, por sua vez, foram relegadas a coadjuvantes e dedicadas a tarefas tidas como menores, um aprendizado que deveria ser passado de mãe para filha.

Só em 2010 foi inaugurado o primeiro restaurante do tipo liderado por mulheres, o Nadeshico Sushi, da sushiwoman Yuki Chidui, em Tóquio. Pré-pandemia, em 2019, ela abriu a Nadeshico Sushi School para ensinar a outras mulheres não só a arte do sushi, mas também a lidar com questões de gênero no trabalho.

Yuki Chidui, primeira Chef dona do próprio restaurante de sushi e fundadora de uma escola que ensina o ofício a mulheres. Crédito: Yuki Chidui.

“O argumento cientificista para justificar quem pode fazer o melhor sushi é apenas a ponta do iceberg. A lógica de pensar atribuições de gênero atravessa diversas dimensões da vida e vai se espraiando, desde as questões do cotidiano da casa até a desigualdade salarial no mercado de trabalho, que é muito marcante no Japão”, assinala o antropólogo Victor Hugo Kebbe, ex-fellow de Japanese Studies da Japan Foundation e editor do site japanologia.com. “Supõe-se que um gênero deve ser dominante. Esse pensamento está enraizado na sociedade japonesa de um modo muito profundo, influenciou livros e leis ao longo da história e se faz presente até os dias atuais”, diz Kebbe, doutor em antropologia pela Universidade Federal de São Carlos e que recentemente ministrou curso sobre culinária e cultura japonesa na plataforma Momonoki.

Igualdade perante a lei só depois da Segunda Guerra Mundial

A ideia de família japonesa é denominada ie, que significa casa, e remete a um sistema familiar organizado na Era Meiji (1868-1912) administrado por unidades domiciliares, com o koseki, que ilustra o poder patriarcal. A ideia era indicar a linhagem familiar a partir do sobrenome do chefe da família, um homem. O sistema ie foi dissolvido no pós-guerra, mas se mantém até hoje como o ponto de partida para o que se compreende como família no Japão. Para que um descendente de japoneses possa solicitar visto de residência no país, por exemplo, é preciso indicar a ascendência e o koseki é um dos documentos necessários até hoje.

Na Era Meiji firmou-se o slogan ryosai-kenbo para se referir à mulher idealizada como mãe e esposa sábia — foi então que as mulheres passaram a ter oportunidade de estudar, mas principalmente para cumprir o propósito de voltar para casa e educar os filhos. Inexistia, na época, a ideia de igualdade de gênero.

Só depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) a lei japonesa passou a incluí-las com todas as letras. “Todas as pessoas são iguais perante a lei e não deverá acontecer discriminação nas relações políticas, econômicas e sociais por causa de raça, credo, gênero, posição social ou origem familiar”, diz o artigo 14 da Constituição de 1947.

De lá para cá, a legislação japonesa avançou a passos tímidos. Em 1968 foi aprovada a Lei de Igualdade de Oportunidade de Emprego. A lei foi revisada e décadas depois, em 1999, incluiu a previsão de punições para quem descumpri-la e discriminar mulheres no mercado de trabalho. Também foi em 1999 que a estrategista Kathy Matsui, da multinacional financeira Goldman Sachs, cunhou a expressão womenomics (neologismo para indicar a junção de women e economics) para se referir a um conjunto de políticas pensadas para reduzir o gap de gênero na economia do Japão.

Womenomics se tornou, tempos depois, o mote de uma política de 2013 do Primeiro-Ministro Shinzo Abe, que governou o país entre 2006 e 2007 e depois entre 2012 e 2020. Seu governo promulgou até leis com o objetivo de estimular a inclusão feminina no mercado, até que se alcançasse a cifra de 30% de cargos de liderança ocupados por mulheres até 2020. Porém, diante das dificuldades encontradas para atingir a meta, o prazo foi prorrogado para 2030.

Atualmente, estima-se que, para cada 100 ienes remunerados a um funcionário regular do sexo masculino, uma funcionária regular do sexo feminino recebe cerca de 74,8 ienes; um funcionário homem não-fixo, por sua vez, recebe 55,7 ienes, e uma funcionária mulher não-fixa, 50,4 ienes. Entre 1984 e 2011, indica estudo da acadêmica japonesa Mari Miura, o número de empregados regulares caiu de 90% para 75%, ao passo que os empregados irregulares subiram para 25%. Isso quer dizer que mais mulheres entraram no mercado de trabalho, mas com salários menores e sem posições de liderança. Segundo o Global Gender Gap Report 2020, organizado pelo Fórum Econômico Mundial, o Japão está na 121a posição num ranking de 153 países sobre igualdade de gênero.

Mulheres passaram a questionar tais disparidades com mais intensidade nos últimos tempos, marcados pelas primaveras feministas. Ainda que mais timidamente – o movimento #MeToo, por exemplo, que reuniu diversos depoimentos de mulheres vítimas de violência sexual ao redor do mundo, no arquipélago se focou em apenas um caso: o da jornalista japonesa Shiori Ito, que relatou ter sido drogada e estuprada pelo executivo Noriyuki Yamaguchi quando era estagiária da agência Reuters.

Shiori Ito, jornalista que denunciou estupro de que foi vítima, e que obteve a até agora a única vitória do movimento #Metoo no país. Crédito: Hanna Aqulin

Vieram as primaveras, mas também os invernos. Paralelamente às articulações de movimentos feministas questionando condições relegadas à mulher em uma sociedade sexista, não faltaram manifestações machistas, inclusive na organização de um evento que posicionou o Japão sob os holofotes da imprensa internacional, as Olimpíadas.

“Mulheres adoram competir umas contra as outras. Se uma pede a palavra, as outras pensam que também devem se expressar. O comitê organizador tem sete mulheres, mas elas sabem ficar no seu lugar”, declarou o presidente da comissão organizadora dos Jogos Olímpicos de Tóquio e ex-Primeiro-Ministro do Japão Yoshiro Mori, em fevereiro de 2021. Sob pressões, ele viria a renunciar dias depois.

O machismo não é velado

“Persiste o ideal de uma mulher japonesa tímida, submissa, sempre num papel de passividade”, critica Joy Nascimento Afonso, professora de língua e literatura japonesa da Unesp no câmpus de Assis. Foi convivendo e ouvindo mulheres japonesas, durante uma temporada na Kyoto University, entre novembro de 2019 e março de 2020, que ela notou contrastes entre o Japão antigo e o atual, da literatura ao mundo “real”.

“Que mundo é este? Não é mais o século 11 no Japão, uma época em que se retratava nos romances um herói pelo qual a mulher estava à espera, um príncipe por quem se apaixonava e ficava de enfeite para nobres. Também não é a Era Edo [1603-1868], quando se idealizou o papel de mãe, uma mulher que deveria construir um bom casamento, saber cozinhar e cuidar do marido, filhos, família.”

Ao longo do século 20, mulheres passaram a publicar mais e a demarcar posições questionando tais papéis. Na virada para o 21, destacaram-se autoras trazendo a perspectiva feminina com mais intensidade, abordando, nas ficções, as identidades de mãe (Sayaka Murata), mãe solo (Yu Miri), mulher trans (Banana Yoshimoto), indica Afonso. “Muitas autoras estão sendo traduzidas para a língua portuguesa atualmente, mas ainda está longe do ideal. Muitas vezes, portanto, ainda prevalece certa idealização da mulher asiática, visto que se privilegia a tradução de livros escritos por homens”, comenta.

Viajando num trem-bala de Quioto a Tóquio no inverno passado, convidada para dar uma palestra sobre mulheres na contemporaneidade, a pesquisadora não pôde deixar de notar uma passageira japonesa com um bebê pendurado no sling, trabalhando com um celular em uma mão e um laptop na outra. Um bom retrato da sobrecarga de trabalho para mães japonesas, o que foi acirrado pela pandemia, declarada em março de 2020: com o fechamento de creches e colégios nos primeiros estados de emergência decretados no país, muitas mulheres se viram forçadas a faltar ao trabalho para ficar com os filhos e foram as primeiras a perder empregos, reportou o diário Asahi.

Os ex-Primeiro-Ministros Shinzo Abe (dir.) e Yoshiro Mori. Este último teve de abandonar a organização dos Jogos Olímpicos devido aos comentários machistas.

Para mães solo, a situação foi ainda mais complicada, aponta a socióloga Yumi Garcia dos Santos, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Elas vivem uma “situação de fronteira”, isto é, são chefes de uma família monoparental e vivem entre a conquista de autonomia econômica, de um lado, e as pressões da precarização do trabalho, de outro. “Elas estão sozinhas. A maioria trabalha, mas a renda média é menor”, diz Santos, doutora em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e atualmente pesquisadora do Laboratório Misto Internacional – Social Activities, Gender, Markets and Mobilities from Below.

De acordo com um levantamento da ONG Single Mother Forum, de Tóquio, 70% das mães solo ouvidas disseram que seus empregos eram instáveis e 54% tiveram ou esperavam queda na renda, noticiou a NHK. Além de tudo, acumularam trabalho dentro de casa, inclusive cozinhar.

“Voltando ao sushi, é interessante notar como o discurso patriarcal que tenta proteger uma posição privilegiada para homens não é velado. O machismo se manifesta de um modo muito singular no Japão, onde há certa coesão social e são esperados comportamentos conforme os papéis atribuídos, isto é, saber ficar ‘no seu lugar’. É a ideia, literal, de que o homem deve andar na frente e a mulher três passos atrás”, exemplifica Yumi Santos.

“Mulheres mudaram muito: desde as décadas de 1980 e 90, muitas estudaram e se profissionalizaram, divorciaram-se ou preferiram não casar e nem ter filhos, às vezes escolheram sair do país. Em outras palavras, buscaram saídas pela tangente. Isso porque ainda há um peso que dificulta mudanças estruturais”, explica. É como se fosse preciso puxar um iceberg para frente, um passo por vez.

Foto acima: casal enverga roupas tradicionais durante casamento. Crédito: Al Soot/Unsplash