Mesmo com as chuvas que têm voltado a cair nas últimas semanas, a situação dos reservatório e usinas hidrelétricas do país ainda é delicada, e o Brasil ainda não superou a quadro de escassez que se instalou ao longo do ano. Foi o que afirmou na quarta-feira passada Luiz Carlos Ciocchio, diretor-geral do Operador Nacional do Sistema Elétrico, o órgão do governo Federal encarregado de administrar as instalações elétricas do Sistema Interligado Nacional. “Nossas projeções e análises mostram ainda um 2022 bastante preocupante, temos que estar mobilizados para enfrentar a estação seca do ano que vem”, disse Ciocchi.
A mesma visão é sustentada pelo professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental do Instituto de Energia e Ambiente da USP, Pedro Côrtes. Ele, porém, oferece uma explicação mais ampla para o fenômeno: a diminuição no volume anual de chuvas, observada nos últimos anos, “é consequência do desmatamento da Amazônia”. Por isso, “a redução nas chuvas é uma tendência que deve se manter pelos próximos anos”, diz.
Mas a associação entre danos ambientais e redução dos recursos hídricos está longe de ser um problema exclusivo do Brasil. O relatório mais recente do IPCC (sigla em inglês para Painel Intergovernamental de Mudança do Clima da ONU), divulgado em agosto, é contundente. Na situação atual, em que a Terra está em média 1oC mais quente na comparação com 1900 – um mundo onde os resultados climáticos da intervenção humana inexistiam – a chance de uma seca ocorrer será 1,7x maior daqui a uma década. E o futuro pode, inclusive, vir a ser mais preocupante, projeta o estudo.
Em um cenário em que o planeta venha a aquecer em média mais 0,5oC, as estiagens graves e prolongadas tendem a dobrar de frequência, também dentro de um período de dez anos. É exatamente nessa rota que todos se encontram agora, caso as nações não consigam reduzir de forma significativa as emissões de gases de efeito estufa antes de 2050.
O Brasil está secando
Em agosto, a ONG MapBiomas divulgou um estudo sobre as variações nos recursos hídricos no Brasil entre 1985 e 2020. O resultado foi preocupante.
“O Brasil está secando”, resumiu o engenheiro florestal Tasso Azevedo, coordenador geral do projeto MapBiomas.
O fenômeno ainda não tem uma explicação única, e muitos estudos precisam ser feitos a partir dos dados gerados agora pelos sofisticados modelos computacionais. Mas, segundo os responsáveis pela pesquisa, a crise climática sem dúvida desempenhou um papel central para que chegássemos a esse quadro.
Entre os biomas brasileiros mais atingidos pela seca das últimas décadas está o Pantanal, na região central do país. Se entre 1991 e 2020 o Brasil perdeu 15,7% da superfície de água que tinha, o equivalente a 3,1 milhões de hectares, apenas no bioma Pantanal, 71% da área passaram de alagada para seca. Os dados impressionaram até os analistas, que refizeram as contas algumas vezes para checar se havia erros. Mas os números estavam certos. E as temporadas de incêndio na região, tanto em 2020 quanto agora em 2021, são um sinal claro da relação que existe entre mundo real e os dados processados nas modelagens climáticas (veja gráficos ao longo deste texto).
Carlos Souza Jr. coordenador do MapBiomas Água, diz que o resultado é bastante preocupante porque o sinal de tendência de redução de água no Brasil, a partir dos dados de satélites, é bem claro. “As evidências vindas do campo já indicam que as pessoas já começaram a sentir o impacto negativo com o aumento de queimadas, impacto na produção de alimentos, e na produção de energia, e até mesmo com o racionamento de água em grandes centros urbanos”, alertou ele quando o estudo foi lançado .
“Está claro que houve uma redução nas chuvas na região central do Brasil e a tendência é que esse processo se agrave mais nos próximos anos”, afirma Pedro Côrtes. Ele diz que o fenômeno está relacionado também ao desmatamento da floresta Amazônica.
O impacto do desmatamento sobre os rios voadores
Côrtes explica que uma intensa evaporação acontece na região Equatorial do Atlântico, por conta das altas temperaturas que são registradas na região. Todo esse vapor d’água sobe para atmosfera e é empurrado pelos ventos em direção à floresta, e desagua lá na forma das típicas tempestades tropicais. No chão, a água é drenada do subsolo pelas grandes raízes das árvores da Amazônia, que a liberam novamente na atmosfera, retroalimentando o ciclo hidrológico. Como o vento continua soprando de Leste para Oeste, uma grande quantidade de umidade chega até a região dos Andes e, ao encontrar as grandes montanhas da América do Sul, sua trajetória se curva em direção ao Brasil central.
O fenômeno dos rios voadores é um processo conhecido dos cientistas que relaciona, de forma inequívoca, a região amazônica com o resto do Brasil e até da América do Sul. Na verdade, o termo “rios voadores” é uma expressão popular para os verdadeiros cursos de água atmosféricos, formados por massas de ar carregadas de vapor de água, muitas vezes acompanhados por nuvens, que são empurradas pelos ventos. Essas correntes de ar invisíveis passam em cima das nossas cabeças carregando umidade, desde a Bacia Amazônica para o Centro-Oeste, o Sudeste e o Sul do Brasil. Essa umidade, nas condições meteorológicas propícias — como uma frente fria vinda do sul, por exemplo — se transforma em chuva.
“Goiás e Minas Gerais praticamente dependem dos chamados rios voadores que são empurrados pelos ventos da Amazônia. Na região central do país estão grandes hidrelétricas geradoras de energia como Furnas, Emborcação, Serra da Mesa e Nova Ponte”, afirma Pedro Côrtes.
Estudos promovidos pelo INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia) mostraram que uma árvore com uma copa de 10 metros de diâmetro é capaz de bombear para a atmosfera mais de 300 litros de água, em forma de vapor, em um único dia – ou seja, mais do que o dobro da água que um brasileiro usa diariamente. Uma árvore maior, com copa de 20 metros de diâmetro, pode evapotranspirar bem mais de 1.000 litros por dia. Como a estimativa é que existem algumas centenas de bilhões de árvores na floresta, a quantidade de água bombeada a cada 24 horas é imensa. Mas é exatamente essa verdadeira “bomba d’água” amazônica que está ficando emperrada pela crise climática e pelo desmatamento. Uma vez que o desmatamento resulta na conversão de extensas áreas da Amazônia em uma espécie de savana, a consequência é que o volume de umidade que alcança o Brasil Central diminua cada vez mais futuramente. E, como mostram as recorrentes crises hídricas e de energia (o apagão do início do século também se encaixa nesse contexto) todo esse processo pode já estar experimentando mudanças definitivas.
Avaliações feitas por vários grupos de pesquisa— entre eles o liderado pelo pesquisador Paulo Artaxo, que também integra o IPCC — mostram que um eventual bloqueio total dos rios voadores pode eliminar, em média, 25% das chuvas do território nacional. O que os cientistas identificaram, entretanto, é que mesmo a floresta em pé, preservada, não vai ser suficiente para garantir a manutenção da água do agronegócio nas próximas gerações, por exemplo, se a queima de carbono não baixar imediatamente. Ou seja, se nada for feito, a mudança climática tende a provocar um possível quadro de colapso na região amazônica, esteja a floresta em pé ou não. E, com isso, todo o regime de chuvas será definitivamente atingido, principalmente do Brasil Central.
O desafio da adaptação a uma realidade com menos água disponível
Roberto Braga, do Instituto de Geociências e Ciências Exatas do Câmpus de Rio Claro da Unesp, pondera que é à luz desse quadro climático mais amplo que se deve analisar as crises hídricas vividas entre 2014 e 2015 — que afetaram principalmente o Estado de São Paulo — e a atual emergência, que atinge o Sudeste e o Centro-Oeste do Brasil.
“A questão energética não pode ser desconectada da crise climática. Como mostram os recentes estudos e relatórios do IPCC, a questão da estiagem, do déficit de chuvas, é uma das tendências esperadas. Diante disso, principalmente em relação às adaptações, nada está sendo feito. Precisa haver uma mudança de mentalidade tanto do governo, por meio das políticas públicas, quanto na própria sociedade”, afirma Braga. “Temos que ter mais presteza na questão da mitigação”, diz o geógrafo, especialista em planejamento regional.
No caso específico da produção de água — um recurso fundamental tanto para a sobrevivência das pessoas quanto para o setor produtivo industrial e para o agronegócio — uma das necessidades mais imediatas é a de coibir o desmatamento, em todos os biomas, diz Braga. “Não apenas no caso da Amazônia. No nível local, a destruição das matas ciliares, por exemplo, precisa ser drasticamente reduzida. E a restauração florestal do bioma da Mata Atlântica é muito importante para que se possa produzir água com qualidade”, afirma. O pesquisador é crítico também do modelo atual de gestão dos setores elétrico e de saneamento que, segundo ele, segue uma lógica de mercado, quando deveria adotar uma lógica mais voltada para o interesse público. “Não dá para colocar a culpa só no clima. Não pode haver uma prioridade imediatista, de lucro. Temos que pensar no médio e longo prazo. Termos uma visão integrada, a questão do acesso à água e à energia intensifica ainda mais a desigualdade social no Brasil”, afirma. “Temos que adotar políticas públicas de fato, fugir dessa abordagem mais abstrata do problema”.
A perspectiva de continuidade da crise hídrica durante o primeiro semestre de 2022 coloca no horizonte a possibilidade de um racionamento, principalmente de abastecimento energético, caso não ocorram chuvas acima da média ou se adotem políticas efetivas de redução de demanda. Neste contexto, o uso racional de energia se mostra como uma estratégia essencial, a ser adotada não apenas agora, mas principalmente no longo prazo. É o que sustenta José Antonio Perrella Balestieri, professor da Unesp de Guaratinguetá, que estuda há 30 anos o tema. “Causa algum desgosto ver que perdemos, enquanto sociedade, muito tempo e oportunidade para fazer algo que realmente valha a pena nesse país”, diz.
Segundo o especialista em planejamento energético, a sequência da receita mais razoável a seguir, em termos de uso inteligente dos recursos energéticos, já é bem conhecida pelos pesquisadores do setor. O primeiro passo, explica Balestieri, é eliminar os desperdícios. O segundo, atuar na racionalização do uso de energia para adequar o consumo aos níveis e padrões mínimos que garantam a qualidade de vida das pessoas. E, em terceiro lugar, mas igualmente importante, é atuar na implantação de sistemas mais eficientes de geração de energia. “Temos que dar preferência às tecnologias ambientalmente amigáveis e que sejam sinérgicas em relação à produção simultânea de muitos produtos, tais como os sistemas duplo propósito de cogeração e dessalinização, que produz eletricidade e água, os chamados sistemas de poligeração”, afirma o pesquisador da Unesp em Guaratinguetá.
A valorização dos resíduos das cadeias de produção, após os processos de reuso e reciclagem, também é uma parte importante do todo, segundo o engenheiro. “Ações voltadas para a produção de bens com menor intensidade do uso de energia e recursos, com menores deslocamentos de pessoas e produtos, por exemplo, precisam ser consideradas.” Balestieri é a favor que o trio conceitual “Valores-Atitudes-Comportamentos” seja propagado por toda sociedade de forma pedagógica. “Precisamos agir em prol da racionalidade do uso da energia, dos demais recursos e do meio ambiente”, afirma.
Apesar de saber o que deve ser feito, o planejamento do setor energético poderia também ter avançado mais, segundo o pesquisador. Ainda mais diante das crises que têm ocorrido desde o início do século. “As usinas hidrelétricas com reservação foram projetadas para acomodar, no médio prazo, as intercorrências pluviométricas. Mas além disso, as termelétricas, incorporadas desde o apagão de 2001 deveriam estar em melhores condições de serem despachadas. Poderíamos ter feito mais investimento nas energias eólica e solar, assim como na geração termelétrica. E, em especial, no modelo de cogeração com biomassa, aproveitando um subproduto do setor agroindustrial que é hoje o carro chefe da economia do país”.
O país está “brincando com fogo”
Balestieri lamenta que as crises anteriores, algumas bem recentes, não tenham levado a nenhuma mudança significativa de rota. “Alguém se lembra de alguma campanha continuada de uso racional de energia ou água, lembrando que recentemente tivemos crise hídrica no estado de SP, para manter a população informada e incentivá-la a usar adequadamente os recursos hídricos? Alguém incentiva a aquisição de equipamentos com selo de eficiência energética A, que são os mais eficientes?”, questiona.
Sem tempo para grandes mudanças de comportamento ou a adoção de políticas públicas robustas, a saída é, mais uma vez, o Brasil administrar a severa crise de seca que afetam hoje o Brasil Central. “Geralmente os gestores só correm atrás dos problemas depois que eles surgem”, afirma Didier Gastmans, pesquisador da Unesp de Rio Claro e especialista em águas subterrâneas. Como exemplo, ele aposta que, para superar a crise atual, parte da população irá desencadear “uma corrida maluca na perfuração de poços. Como falta água superficial, os usuários correm atrás das águas subterrâneas. Ou seja, trabalhar para apagar incêndios”, diz. “O que falta no Brasil é planejamento de médio e longo prazo. Sabemos que essas soluções imediatas nunca são as mais adequadas e as mais ambientalmente sustentáveis” explica o pesquisador da Unesp.
Diante das previsões do IPCC, Gastmans avalia que o Brasil está rumando para o chamado contexto da tempestade perfeita. “Os dados são claros: o Brasil está brincando literalmente com fogo ao queimar suas florestas, especialmente na região amazônica. As soluções são sempre imediatistas, ou seja, estamos construindo um cenário perfeito para o caos ambiental e o desastre da sustentabilidade hídrica. Não existe resiliência capaz de suportar tamanhas agressões”, afirma.
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