“No começo, o Brasil tinha tudo para ser um exemplo no combate à pandemia”

Ganhador de prêmio da Associação Pan-Americana de Infectologia, Alexandre Naime analisa erros e acertos de países no enfrentamento da covid-19

No início de agosto, o médico Alexandre Naime recebeu a Medalha Dr. Isidro Zavalia, concedida pela Associação Pan-Americana de Infectologia (API) a jovens infectologistas das Américas. O prêmio foi entregue durante o congresso realizado pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) na República Dominicana, onde o professor da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB), da Unesp foi convidado a apresentar a palestra “Tratamento Precoce vs Medicina Baseada em Evidências”. 

Naime é um dos especialistas da Unesp que se destacaram ao longo da pandemia de covid- 19, dividindo o tempo de suas atividades acadêmicas e científicas com entrevistas, participações em lives, consultoria a jornalistas e outras iniciativas para informar a sociedade sobre o que a ciência já sabe a respeito do novo coronavírus. 

Estudioso das terapêuticas para tratamento de doenças contagiosas, Naime se sente à vontade para criticar discursos negacionistas, ao mesmo tempo que é a favor do tratamento precoce. “Mas desde que haja medicações que tenham eficácia. O que não admitimos é fazer publicização de tratamentos sem eficácia”, afirma.     

 Nesta entrevista concedida ao Jornal da Unesp, Naime avalia a resposta brasileira à pandemia, compara nossos resultados aos dos demais países americanos e destaca positivamente a atuação independente e competente de institutos e universidades públicas brasileiras.  

Qual é o objetivo da Medalha Dr. Isidro Zavalia? 

Alexandre: Essa premiação é um reconhecimento que a Associação Panamericana de Infectologia (API) faz a cada dois anos, durante o Congresso Panamericano de Infectologia, aos jovens infectologistas de até 45 anos que se destacaram na área em relação à atuação profissional, mas também em relação à pesquisa e liderança nas Américas. A API é uma instituição que coordena as sociedades nacionais, desde o Canadá até a Argentina, e existe um protagonismo que as pessoas vão exercendo dentro da instituição. Essa atuação me garantiu essa visibilidade, e a medalha “Dr. Isidro Zavalla” é um reconhecimento disso, e um estímulo para o futuro.  

Por exemplo, [durante o congresso] tivemos reuniões entre os delegados para que se forme de fato uma aliança no continente. Isso promove a troca de experiências no enfrentamento de doenças infecciosas, mas também promove interação no campo das pesquisas. O continente americano é muito grande, e muitas vezes se pode notar que há pouca união. Mas no campo da infectologia é diferente, o nível da pesquisa na América como um todo é muito bom. Os EUA estão um pouco à frente mas, mais importante do que isso, há bastante colaboração. Isso é fundamental. Um dos motivos pelos quais me deram o prêmio é pela expectativa de que eu continue esse trabalho de integração.  

Esse envolvimento é algo que trouxe da Faculdade de Medicina de Botucatu. Desde quando fui aluno e residente, via os docentes incentivando essa colaboração de sociedade médicas e a interação com outras instituições. Isso está no meu DNA por conta dessa formação na Unesp. 

No evento você foi convidado a proferir uma palestra sobre tratamento precoce e negacionismo. Sobre o que você falou, exatamente? 

Alexandre: Essa palestra está bastante ligada com um artigo que nós publicamos recentemente pela Associação Médica Brasileira, reunindo a Sociedade Brasileira de Infectologia com a Sociedade Brasileira de Pneumologia em que fizemos uma revisão sistemática com metanálise da literatura desses tratamentos que alegadamente funcionam contra a Covid-19.  

 Na minha área pesquiso principalmente as terapêuticas para a doença. Por isso me chamaram para falar sobre o que há de evidência científica no tratamento precoce. O mote foi dizer que todos nós somos a favor de um tratamento precoce, mas desde que haja medicações que tenham eficácia. O que não admitimos é fazer publicização de tratamentos sem eficácia. Além de ser, por si só, uma falácia científica, isso dá uma falsa sensação de segurança. Existe ainda a questão possível de toxicidade e o aspecto do custo. Na apresentação, mostro fotos de venda de ivermectina em liquidação, por exemplo. Existe um custo nessa publicização, e por trás tem gente ganhando dinheiro com isso.  

Você foi premiado como principal infectologista jovem em um país onde a resposta à covid-19 deixou a desejar. Não soa como algo um pouco contraditórioí? Se temos bons recursos humanos, por que tivemos essa resposta no país? 

Alexandre: Não é uma contradição. O que aconteceu no Brasil foi reflexo justamente de as sociedades científicas não serem ouvidas. A ciência não foi ouvida.  

No início tivemos o ministro Luiz Henrique Mandetta que, apesar da parte política, estava fazendo uma gestão excelente. Quando me perguntavam naquela época, entre março e abril, como seria a pandemia no Brasil, eu disse que o Brasil tinha tudo para ser um ótimo exemplo para o mundo. Estávamos vendo o que acontecia na Europa, estávamos tendo os primeiros casos por aqui e o ministro estava sendo atuante. Mas ele apareceu demais e por isso foi posto para fora. Depois colocaram outro muito bom, o Nelson Teich, que passou a fazer um trabalho técnico. Mas se opôs a essa loucura que foi o gabinete paralelo, um grupo que insistia em uma bala mágica e achava que iam ter sucesso. E foi a ciência brasileira, e em grande parte a Sociedade Brasileira de Infectologia, quem se opôs a isso. E, por não se ter ouvido adequadamente a ciência, não foi feito o enfrentamento adequado, que incluiria a maximização das regras de prevenção.  

 O isolamento social foi muito importante, salvou muitas vidas. Mas poderia ter sido feito de uma forma melhor. Houve um erro no final da primeira onda, entre setembro e outubro, quando avisamos que não era se deveria banalizar a flexibilização. Mas isso aconteceu entre dezembro e janeiro e os resultados vieram em fevereiro, março e abril. Foi essa banalização que criou a variante P1 (Gama), que matou milhares de pessoas. 

Além de ser contra o isolamento social e promover drogas sem eficácia, houve ainda um terceiro erro, que foi o atraso na compra de vacinas. O governo só correu atrás das vacinas porque o Governador João Dória, muito bem assessorado e ouvindo a ciência, adotou medidas de isolamento social, foi em busca da vacina e alcançou protagonismo. Só depois o governo Federal foi correr atrás das vacinas.  Vejo uma série de pesares políticos no Doria, mas ele não é burro. Foram muitas oportunidades que o Brasil perdeu para adquirir vacinas, e isso teve um preço calculado em torno de 300 a 400 mil óbitos. Isso foi dito pelo epidemiologista Pedro Hallal na CPI. Talvez, se o Brasil seguisse uma linha mais científica, as sociedades [médicas e científicas] nem precisassem ficar defendendo a ciência.  

Nessa resposta à covid-19 atuaram também outros atores, como institutos, universidades, etc. Como avalia as respostas dessas instituições? 

Alexandre: Os institutos de pesquisa científica tiveram uma atuação perfeita. O Instituto Butantan e a Fiocruz, que são institutos de pesquisa públicos e independentes, foram atrás do que interessa: cooperação para vacina, estudos epidemiológicos e promover informação de qualidade.  

A Fiocruz batalhou a favor das informações científicas em relação à necessidade de medidas de isolamento, de adquirir vacinas, e foi protagonista na parceria com a Oxford/Astrazeneca. O Butantan foi atrás de outra plataforma, a de vírus inativado, porque tinha um parque tecnológico para a manufatura desse tipo de produto. A própria Unesp assumiu um protagonismo, com os exames de PCR para todos os sintomáticos, as pesquisas desenvolvidas em diversos câmpus, os estudos da vacina Oxford/Astrazeneca desenvolvidos com o professor Carlos Fortaleza, e manifestando-se a favor das medidas de isolamento juntamente com o nosso comitê de enfrentamento a Covid-19, indo contra os discursos negacionistas.  

 As universidades públicas e os institutos de pesquisa tiveram um papel muito importante, mas por outro lado, estavam isoladas. Pessoas foram colocadas no Ministério da Saúde com um discurso premeditado. O Pazuello era um papagaio que só falava o que era pedido, e completamente perdido. A Mayra Pinheiro, que tem ambições de ser senadora pelo estado dela, sabia que esse discurso convence muita gente.  

Vivemos junto da pandemia uma infodemia. Se você pega uma informação e massifica, muitas pessoas vão acreditar. Esse discurso negacionista só está mais fraco agora porque ficou indubitável o valor da vacina. Se provou, no mundo real, que as vacinas estão salvando milhares de vidas e foi a única coisa que conseguiu derrubar a média móvel de óbitos. Contra fatos não há argumentos. Mas a ciência já tinha esses dados antes.

  

A América do Sul como um todo, não teve uma boa resposta à covid-19. Você vê elementos em comum entre a forma como o Brasil e os demais países do continente atuaram?  

Alexandre: Nas Américas como um todo, incluindo-se aí os EUA, nós tivemos poucos exemplos de bons enfrentamentos por causa da falta de seriedade na tomada de decisão. Poucos países fizeram um isolamento que se possa considerar efetivo. Mas, ainda que o isolamento não tenha sido bem feito, o presidente Trump pelo menos comprou vacinas. Ele até ameaçou defender a hidroxicloroquina, mas recuou e percebeu rápido que a solução seriam as vacinas. Então os EUA fecharam a fábrica da Moderna e compraram a sua produção. O Trump é doido, mas não é burro.  

Considerando-se o número de mortes por 100 mil habitantes, o Chile, até pela questão geográfica, teve uma boa resposta. A Argentina também é um país isolado, que tem facilidade de fechar fronteiras. Já no Brasil é muito difícil. Esse talvez tenha sido um dos erros fundamentais não só do Brasil como do mundo. Quando teve início a pandemia na China e Europa, deveríamos ter estabelecido restrições. A doença se espalhou e não fizemos isolamento. No mundo, poucos países tiveram aquilo que a gente pode chamar de resposta adequada. A maioria desses são geograficamente favorecidos, como Nova Zelândia, Austrália, Singapura e outros mais isolados, que possuem apenas um ou dois aeroportos de entrada internacional.  

E há o fator político. Falamos muito desse assunto aqui durante o Congresso. A América do Sul é muito instável. Não há uma linearidade de políticas assertivas. Nós temos muitas gestões populistas. Até países da Europa que foram contra o isolamento social, como a Suécia, acabaram pagando um preço enorme. A pandemia veio mostrar que, infelizmente, questões políticas se sobrepõem à ciência ainda hoje. Achávamos que estávamos num certo estágio de desenvolvimento, descobrimos que estávamos enganados.  

Recentemente, durante participação em um programa de TV em que se comentava a morte do ator Tarcísio Meira, você mencionou dados do InfoTracker da USP/Unesp mostrando que 91,5% dos óbitos por covid-19 no Brasil entre maio e julho de 2021 ocorreram em pessoas não imunizadas, ou que receberam imunização incompleta. Como explicar o significado desta estatística para uma pessoa leiga? 

Alexandre: Mesmo em um cenário de predomínio da variante Gama e chegada da variante Delta, o que importa é ter as duas doses de vacina.

Uma pessoa completamente vacinada tem quase 10 vezes menos chances de ter um episódio fatal de covid-19 do que uma pessoa não totalmente imunizada, mostrando que é isso o que importa.

A vacinação protege de forma expressiva. Pessoas imunizadas têm 90% de proteção contra casos graves e óbitos. Mas é importante lembrar que, como nenhuma vacina tem 100% de eficácia, as regras de proteção devem ser mantidas mesmo para vacinados. Isso é, devemos seguir usando as máscaras, mantendo o distanciamento social para evitar aglomeração e higienizar as mãos com frequência.  

Imagem acima: arquivo pessoal